Arquivos BOCA MIGOTTO - Rede Sina https://redesina.com.br/category/portal/convidados/bocamigotto/ Comunicação fora do padrão Sun, 25 Feb 2024 12:26:52 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.4.4 https://redesina.com.br/wp-content/uploads/2016/02/cropped-LOGO-SINA-V4-01-32x32.jpg Arquivos BOCA MIGOTTO - Rede Sina https://redesina.com.br/category/portal/convidados/bocamigotto/ 32 32 MAR ABERTO | Foi ao cinema e salvou a história https://redesina.com.br/mar-aberto-foi-ao-cinema-e-salvou-a-historia-2/ https://redesina.com.br/mar-aberto-foi-ao-cinema-e-salvou-a-historia-2/#respond Sun, 25 Feb 2024 12:26:52 +0000 https://redesina.com.br/?p=120893 Por I. Boca Migotto* Durante boa parte do século XX uma das principais atividades populares de lazer era ver um filme. No Brasil, os italianos sempre tiveram a tradição de investir no ramo do entretenimento e, por isso, consequentemente, também apostaram no cinema. Os irmãos Alfonso, Pasquale e Gaetano Segreto, por exemplo, oriundos de Nápoles, …

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Por I. Boca Migotto*

Durante boa parte do século XX uma das principais atividades populares de lazer era ver um filme. No Brasil, os italianos sempre tiveram a tradição de investir no ramo do entretenimento e, por isso, consequentemente, também apostaram no cinema. Os irmãos Alfonso, Pasquale e Gaetano Segreto, por exemplo, oriundos de Nápoles, são até hoje referencias importantes para a história do audiovisual brasileiro do início do século XX. Em Porto Alegre, assim como ocorria em São Paulo e Rio de Janeiro, os italianos foram os pioneiros no negócio de exibição cinematográfica. Cedo ou tarde, consequentemente, os italianos também se envolveram com a produção dos filmes. Não por nada, o homem por trás da principal produtora gaúcha da primeira metade do século XX, a Leopoldis-Som, era um imigrante italiano, Italo Majeroni e outro produtor de sobrenome italiano, que marcou o cinema gaúcho daquele período, foi Itacir Rossi, da Interfilms. Ambos trabalharam com Vitor Mateus Teixeira, o Teixerinha.

No entanto, essa relação dos italianos com o cinema não começou no Brasil. É quase tão antiga quanto a própria história dessa arte – e indústria – que nasceu no final do século XIX, na França. Mas foi durante e após a Segunda Guerra Mundial que a Itália deu sua maior contribuição à história do cinema. O Neorrealismo Italianoinfluenciou europeus e americanos e contribuiu para com o surgimento de outro movimento determinante na história do cinema mundial, então na França, a Nouvelle Vague. Os principais realizadores do Neorrealismo, como Roberto Rossellini, Victorio de Sica, Michelangelo Antonioni e Luchino Visconti, influenciaram toda uma geração de diretores italianos que vieram a seguir como Pior Paolo Pasolini, Federico Fellini e Bernardo Bertolucci os quais, muitos, inclusive foram trabalhar em Hollywood.

É de Bertolucci, provavelmente, o filme que melhor explica a Itália pós-imigrações. Novecento (1976), é um épico que aborda a história da Itália desde o início do século XX até o término da Segunda Guerra e, ao longo desse período, contextualiza o nascimento e fortalecimento das lutas trabalhistas num país ainda desfragmentado o qual, apenas há alguns poucos anos, havia promovido uma das maiores diásporas do mundo moderno, obrigando milhões de italianos a buscar esperança em outras terras, principalmente nas Américas. Essa mesma miséria generalizada, que expulsou os imigrantes e, décadas depois, contribuiu para com a ascensão do Fascismo e do próprio Benito Mussolini, foi muito bem retratada por outro filme; L’albero degli Zoccoli (1978), dirigido por Ermanno Olmi. Ao compor todo o elenco por camponeses reais da província de Bergamo, Olmi dialogou com o Neorrealismo e chamou a atenção do mundo para a diáspora italiana ao ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1978.

Já na vida real, quando nossos antepassados aqui chegaram, foram apresentados a uma região montanhosa, de mata fechada e animais selvagens, no extremo sul do Brasil. Portanto, diferentemente daqueles italianos dos centros urbanos, pioneiros do entretenimento, os colonos que subiram a Serra Gaúcha não tinham como prioridade o cinema e o lazer. Ao contrário, o único objetivo era sobreviver.

Lembro do relato, para o meu documentário Pra ficar na História (2016), da historiadora da UCS – Universidade de Caxias do Sul – Loraines Slomp Giron, uma das primeiras a pesquisar e escrever sobre os imigrantes italianos na Serra Gaúcha, quando ela comenta, em uma conversa com o personagem principal do filme, o Luiz Henrique Fitarelli, que “ninguém se interessa pela história dos pobres e os imigrantes italianos que chegaram no Brasil, eram, na sua época, apenas miseráveis desgarrados, sem pátria, sem terras e sem posses”. Essa afirmação da professora e pesquisadora de Caxias do Sul ajuda a explicar um pouco o que pretendo contextualizar a seguir[1].

É facilmente perceptível que a produção de obras audiovisuais com temática acerca da imigração italiana e/ou que se utilizam das paisagens da Serra Gaúcha, é intensificada por volta, apenas, dos anos 2000. Antes dos anos 1990, por exemplo, a produção pode ser considerada tão efêmera ao ponto de conseguirmos citar apenas algumas poucas obras como, por exemplo, o curta-metragem As colônias italianas do Rio Grande do Sul (1975), de Antonio Carlos Textor, além de filmagens domésticas como aquelas realizadas por Oscar Boz, nos anos 1950, as quais renderam, em 2003, devido justamente à raridade de tais imagens, um curta-metragem homônimo dirigido por Jorge Furtado. A já citada Leopoldis-Som, conhecida pela realização de inúmeros cinejornais que revelam a sociedade e as cidades gaúchas ao longo da primeira metade do século XX, produziu um documentário sobre a Festa da Uva, em 1937. Inclusive, este foi o primeiro registro sonoro realizado no Estado. Além disso, é bem possível que existam inúmeros outros registros domésticos perdidos, destruídos ou até desconhecidos.

 Eu mesmo, dirigi meu primeiro curta-metragem na Serra Gaúcha, apenas em 2008. Rio das Antas – Vale da Fé, foi um episódio da série Na Trilha dos Rios, realizada para a RBS TV. A partir de então, entretanto, foram 13 obras entre curtas-metragens, séries de TV e um documentário longa-metragem, o qual nasceu como um projeto de curta-metragem para a mesma RBS TV e se ampliou a partir da parceria com a Globo Filmes e Globo News. Esse fenômeno pessoal ajuda a ilustrar um pouco a relação da Serra com a produção audiovisual. Por isso, se num primeiro momento a dificuldade é citar títulos anteriores aos anos 1990, num segundo momento, a quantidade de obras é tão vasta que um texto de 3000 palavras, como este, não é suficiente para elencar todos os inúmeros títulos realizados na região a partir da virada do século. E, para tal fenômeno, existe uma explicação.

Acontece que a relação entre a preservação do patrimônio arquitetônico, que faz parte também do que chamamos “paisagem da Serra Gaúcha”, e o resgate da história e da memória local, são elementos cruciais para a viabilidade turística que ganhou força, especialmente, a partir dos anos 1990. Foi o turismo, por uma necessidade de negócio, que ajudou a salvar a história dos colonos italianos. História a qual, por causa da vergonha do passado miserável, era preciso apagar da memória. Portanto, tal sentimento incentivou e justificou a destruição de milhares de documentos e fotografias dos imigrantes, bem como, contribuiu para com a demolição das primeiras construções dos italianos que aqui chegaram e, até, o esquecimento forçado do próprio dialeto vêneto. No entanto, quando as pessoas ligadas à produção vitivinícola perceberam que os turistas não se deslocariam para a região apenas para comprar uma garrafa de vinho, mas o que os atraia – e atrairia cada vez mais – era ver as velhas casas de pedra e de madeira erguidas na paisagem montanhosa da Serra, o jeito do descendente italiano falar, as comunidades rurais onde o passado parecia ter estacionado no tempo, ficou claro que o diferencial da região não era apenas a qualidade do bom vinho local mas, sobretudo, justamente aquilo que os descendentes tentaram apagar e destruir com a máxima força e rapidez possível ao longo das últimas décadas. O vinho, o turista poderia comprar em qualquer supermercado do centro do país, mas a experiência de viver um pouco daquela história, somente deslocando-se para a região da Serra Gaúcha.

Se dependesse apenas do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –, que apesar do excelente trabalho, sempre esbarrou nas limitações orçamentárias, o processo de preservação não teria sido tão eficaz. Portanto, a percepção de que o sucesso econômico do turismo local estaria diretamente associado à preservação do patrimônio histórico-social contribuiu para com a desaceleração desse processo de destruição enquanto que, paralelamente, promoveu o inicio de um trabalho de resgate de todo o universo do imigrante italiano. É bem verdade, também, que o turismo patrocinou heresias em nome dessa “italianização” muitas vezes exagerada, mas foi essa conscientização, pelo bem e pelo mal, que despertou o interesse das produtoras em filmar as paisagens serranas inaugurando, assim, um circulo virtuoso que aproximou o turismo e a produção audiovisual. Esse processo, o qual se intensificou a partir dos anos 2000, teve início nos anos 1980, com o projeto de modernização e qualificação do vinho da região mas, também, com a realização do filme O Quatrilho, em 1995.

Para que o projeto vitivinícola do Vale dos Vinhedos – primeira Região de Denominação para o vinho brasileiro – surtisse efeito, além de melhorar a qualidade da bebida, era preciso também preservar a memória dos imigrantes, pois um conceito estava diretamente relacionado ao outro. No entanto, devido ao rápido processo de apagamento da memória, mais do que resgatar, era preciso salvar essa história. Um dado que ajuda a reforçar tal afirmação vem da própria UCS. Apesar da relação direta da instituição com a história da Serra Gaúcha, as primeiras pesquisas acadêmicas sobre a imigração italiana, ainda de forma incipiente, começaram apenas no final da década de 1970. Ou seja, até esse momento muita coisa já havia se perdido. O projeto ECIRS – Elementos Culturais da Imigração Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul, iniciado 1978 junto à UCS a partir de pesquisadores como Cleodes Maria Piazza, José Clemente Pozzenato e do fotógrafo Aldo Toniazzo, foi determinante para a preservação dos bens e valores culturais das comunidades rurais da região.

Os registros fotográfico, oral e videográfico do ECIRS, inclusive, fundamentaram a pesquisa da produção d’O Quatrilho, filme dirigido por Fábio Barreto a partir do livro homônimo de José Clemente Pozzenato. Essa obra se mostrou essencial no processo de reconhecimento dos valores culturais dos imigrantes italianos e, consequentemente, ponto de virada determinante naquele momento decisivo para a Serra Gaúcha. As filmagens mobilizaram várias cidades como Carlos Barbosa, Garibaldi, Bento Gonçalves, Farroupilha, Caxias do Sul, Antônio Prado as quais, de repente, passaram a receber artistas até então vistos apenas na televisão. Sem dúvida, isso despertou até o mais cético dos “gringos” para o fato de que havia alguma coisa na sua cidade – e naquela história – que merecia melhor atenção.

O Quatrilho é um dos filmes da chamada “Retomada do Cinema Brasileiro”, uma espécie de renascimento da produção nacional que ocorreu alguns anos após o Presidente Fernando Collor de Melo ter extinguido a EMBRAFILME – Empresa Brasileira de Filmes, praticamente aniquilando o setor cinematográfico brasileiro. A título de registro, é irônico pensar que exatamente no mesmo momento quando esse texto foi escrito, o Presidente Jair Bolsonaro atacava a ANCINE – Agência Nacional do Cinema Brasileiro, entidade que veio a ser criada após a “Retomada” e, desde então, passou a regular e incentivar a produção audiovisual nacional. Segundo o site da ANCINE, O Quatrilho fez uma bilheteria de 1.117,754 espectadores, gerou muita publicidade, teve veiculação televisiva, foi distribuído para o mercado de Home Video e foi indicado ao OSCAR de Melhor Filmes Estrangeiro em 1996. Não levou o tão esperado prêmio, mas a partir dessa experiência tudo mudou. Não apenas pelo retorno de imagem do filme, mas também porque o próprio mercado de cinema e televisão sofreu uma transformação radical com a chegada das novas tecnologias digitais as quais contribuíram, decisivamente, para com o aumento da produção, bem como proliferação das janelas de recepção de uma produção cada vez mais pujante. Esse fenômeno foi mundial mas, especificamente no Brasil, coincidiu com o desenvolvimento de uma política de incentivo à produção audiovisual estável e relativamente constante mantida pela ANCINE.

No Rio Grande do Sul, particularmente, também contamos com a experiência do Núcleo de Especiais da RBS TV o qual, ao longo de 15 anos, desde 1999, ajudou a viabilizar inúmeros projetos de curtas-metragens. Muitos foram filmados na região. Para se ter uma ideia, desde o primeiro programa realizado na Serra Gaúcha, Mundo Grande do Sul – Viagem à Terra da Fartura (2001), de João Guilherme Barone, passando por Brasile – 180 anos da Imigração Italiana (2005), de André Constantin, Sapore d’Italia (2011), a primeira série de ficção da RBS TV – e do Rio Grande do Sul – a ser filmada no exterior, dirigida por mim e pelo Rafael Ferretti em mais de 20 cidades entre a Serra Gaúcha e a Região do Vêneto, na Itália, até o último programa gravado na região, em 2012, Se milagres desejais, de Andre Constantin e Nivaldo Pereira, foram, segundo Gilberto Perin e Alice Urbin – responsáveis pelo Núcleo de Especiais – 21 programas produzidos e exibidos aos gaúchos, aos sábados à tarde, após o tradicional Jornal do Almoço. Tal projeto, além de mobilizar a economia das cidades onde as histórias se passavam, também contribuía para com um sentimento regional de valorização da própria cultura.

Então, durante esse período de pujança do audiovisual brasileiro – e gaúcho – inúmeras produções procuraram as prefeituras da Serra Gaúcha como parceiras. Não por acaso, a primeira Film Commission do Rio Grande do Sul – um órgão que existe em várias cidades, estados e países do mundo para receber e facilitar as produções audiovisuais – foi criada em Bento Gonçalves pela então Secretária do Turismo, Ivane Fávero. Tal iniciativa foi repetida também em Garibaldi e, essas duas Film Commissions foram responsáveis, desde então, por capitalizarem inúmeros projetos. Para citar apenas alguns, os longas-metragens Real Beleza (2013) e Saneamento Básico (2007), filmados em Bento Gonçalves, Santa Tereza e Monte Bello, além da série da Globo, Decamerão, a Comédia dos Sexos (2009), gravada em Garibaldi, todos os três dirigidos por Jorge Furtado. Segundo dados das próprias Film Commissions, além destas produções da Casa de Cinema de Porto Alegre, também vale destacar os longas-metragens O céu sobre mim(2012), uma produção da produtora caxiense Spaghetti Filmes, com direção do italiano Gian Vittorio Baldi; A Oeste do Fim do Mundo(2012), de Paulo Nascimento; Os Senhores da Guerra (2012), de Tabajara Ruas e O Filme da Minha Vida (2017), de Selton Mello. A paisagem e as características culturais da Serra Gaúcha também estiveram presentes em novelas, reportagens, comerciais de TV, DVDs como, por exemplo, o programa Estrelas, da TV Globo, gravado em 2017; o documentário Nas trilhas da imigração italiana, gravado em 2017, pela RAI italiana, a novela da Globo, Tempo de Amar, também de 2017; o comercial de Natal da Coca-Cola, de 2015; a novela Além do Tempo, também da Globo, gravada em 2015 e o DVD Chitãozinho & Xororó – Ao vivo em Garibaldi, dirigido por Paulo Nascimento e Gilberto Perin, ainda em 2003, muito antes da implantação da Film Commission, o qual vendeu mais de 40 mil cópias. Ali perto, a pequena cidade de Cotiporã serviu de locação para Os famosos e os duendes da morte (2009), longa-metragem de Esmir Filho, o qual foi filmado também em outras cidades da região, além do documentário Morro do Céu (2009) e do longa-metragem de ficção Os Dragões (2018), ambos de Gustavo Spolidoro. Para fugirmos um pouco da chamada Região da Uva e do Vinho, vale lembrar que Perin e Gustavo Fogaça dirigiram o DVD, Casa da Bossa – Especial Tom Jobim, produção que levou para Canela, em 2005, uma constelação de artistas da Música Popular Brasileira. Importante destacar, também, a inédita experiência ocorrida a partir de 2006, em Flores da Cunha, através de um programa da cidade com a Comunidade Europeia o qual viabilizou, financeiramente, a realização de 10 curtas-metragens sobre a valorização da identidade cultural e turística dos territórios colonizados por italianos na América Latina. Temáticas ligadas às heranças da imigração como a safra da uva, cotidiano das colônias, religiosidade, produção do vinho, dialeto, gastronomia, papel das mulheres, foram abordadas pelas produções locais que tiveram como coordenador – e diretor de alguns curtas-metragens – o realizador Juliano Carpeggiani.

Nem todas produções gravadas na Serra abordaram, diretamente, a história dos imigrantes italianos. Mesmo assim, o simples fato de as obras registrarem a paisagem – natureza, construções, pessoas e seus sotaques – já é, em si, um ato de preservação da memória. Assim, todas essas produções, e tantas outras impossíveis de listar nesse texto, contribuíram para com a divulgação da Serra Gaúcha. Não por acaso, as duas Film Commissions criadas na região nasceram de dentro das Secretarias de Turismo mas poderiam, também – e em muitos lugares do mundo é o que ocorre – terem sido alocadas junto às Secretarias de Indústria e Comércio pois, como já citado anteriormente, a economia dos municípios onde ocorre uma filmagem ganha muito com a chamada Indústria Criativa. Uma produção artística sempre demanda fornecedores como hotéis, para receber as equipes; restaurantes e/ou supermercados, para suprir a alimentação; postos de gasolina, para abastecer caminhões, carros e vans envolvidos nas filmagens, além de material de ferragem e marcenaria para cenários e costureiras para os figurinos. Tudo isso significa receita que permanece nas comunidades e incrementa a economia local. Tudo isso gera empregos, paga impostos e é necessário para que aquela obra artística, vista no cinema e na televisão, possa sair do roteiro e acontecer, através do trabalho exaustivo de milhares de profissionais de inúmeras áreas.

Mas, mais do que a chamada economia direta, essas produções também influenciam corações e mentes, ao mesmo tempo que divertem, educam, provocam reflexão, informam, valorizam e divulgam as regiões e culturas, além de contribuir para com a preservação da memória dos povos. E aqui percebemos o quanto isso é importante para a própria economia. Os Estados Unidos, sempre uma referência para nós, brasileiros, aprenderam desde cedo a importância do cinema e influenciaram o mundo, ao longo de todo o século passado, através das produções de Hollywood. A França, por outro viés, tem no cinema uma das suas principais ferramentas de integração cultural. Enquanto isso, Espanha, Canadá, Reino Unido, Japão, Argentina,  para citarmos apenas alguns países, vêm aumentando consideravelmente os incentivos para o desenvolvimento de suas indústrias do entretenimento e da cultura. Portanto, os países que investirem no audiovisual e suas inúmeras ramificações, certamente terão mais chances de não apenas sobreviverem ao futuro mas, principalmente, de se afirmarem culturalmente perante as demandas apontadas para as próximas décadas. Resta ao Brasil perceber aquilo que a Serra Gaúcha já descobriu. No final, parece que os italianos que vieram para o Estado com uma mão na frente e outra atrás também carregavam, no seu sangue, o DNA do entretenimento como negócio.

* Ivanir Migotto (nome artístico, Boca Migotto) é formado em Publicidade e Propaganda e estudou cinema na Saint Martins College, em Londres. É Especialista em Cinema e Mestre em Comunicação pela Unisinos, onde também foi professor e coordenador-adjunto do Cursos de Realização Audiovisual, além de atuar nos Cursos de Jornalismo e Comunicação Digital. Também foi professor no Curso de Publicidade e Propaganda da Faculdade Cenecista de Bento Gonçalves, onde coordenou o Núcleo de Produção Audiovisual e o Curso de Extensão É tutto vero. Está no último ano do Doutorado em Comunicação na UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Nouvelle Sorbonne – Paris 3. Como realizador, dirigiu e roteirizou mais de 20 curtas-metragens em ficção e documentário, além de séries de TV, comerciais e videoclipes. Os documentários longas-metragens Filme Sobre um Bom Fim (2015), Pra ficar na história (2008) e Já vimos esse filme (2018) são seus principais trabalhos. Atualmente, realiza seu quinto longa-metragem, sobre o Cinema Gaúcho pós-década de 1970, paralelamente à Tese de Doutorado.

BIBLIOGRAFIA

Brasil e Itália em tempo de cinema – RECINE – Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo – Ano 8 – Número 8 – Arquivo Nacional – Novembro de 2011. Acessado em Agosto/2019 em: https://imigracaohistoricablog.files.wordpress.com/2016/12/brasil-e-italia-em-tempo-de-cinema-recine.pdf

CECÍLIA CORRÊA, Ricardo. O Acervo Leopoldis-Som. Trabalho de Conclusão de Curso – UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, 2013. Acessado em Agosto/2019 em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/88679

ZANIN, Luis Fernando Zanin Oricchio. A Presença Italiana no Cinema Brasileiro. Cinema Cultura & Afins, 18 de junho de 2017. Acessado em Agosto/2019 em: https://luizzanin7.wordpress.com/2017/06/18/presenca-italiana-no-cinema-brasileiro/

Site Casa de Cinema de Porto Alegre. Acessado em Agosto/2019 em: http://www.casacinepoa.com.br/

Site UCS – Universidade de Caxias do Sul/ ECIRS – Elementos Culturais da Imigração Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul. Acessado em Agosto/2019 em: https://www.ucs.br/site/instituto-memoria-historica-e-cultural/ecirs/

Site Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual – ANCINE – Agencia Nacional do Cinema. Acessado em Agosto/2019 em: https://oca.ancine.gov.br/

Sobre as produções citadas, as relações das obras e informações sobre as produções vieram do contato direto com as seguintes fontes (não sei como citá-las segundo ABNT):

– Gilberto Perin – ex-Coordenador do Núcleo de Especiais da RBS TV (ele não trabalha mais na RBS, então é um contato direto com ele e não com a empresa)

– Juliano Carpeggiani – ex-Coordenador do Núcleo de Produção Audiovisual de Flores da Cunha.

– Film Commission de Bento Gonçalves – RS

– Film Commission de Garibaldi – RS

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Carta aberta à comunidade de Carlos Barbosa https://redesina.com.br/carta-aberta-a-comunidade-de-carlos-barbosa/ https://redesina.com.br/carta-aberta-a-comunidade-de-carlos-barbosa/#comments Thu, 22 Feb 2024 23:45:52 +0000 https://redesina.com.br/?p=120878 Nasci, em Carlos Barbosa, em março de 1976. Portanto, em poucas semanas completarei 48 outonos. Minha mãe costumava dizer que nasci sob uma tempestade de final de tarde, daquelas que, após a tormenta, o pôr-do-sol se manifesta esplendorosamente por entre as nuvens escuras, em diversos tons de cores que fazem do entardecer algo especial. Era …

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Nasci, em Carlos Barbosa, em março de 1976. Portanto, em poucas semanas completarei 48 outonos.

Minha mãe costumava dizer que nasci sob uma tempestade de final de tarde, daquelas que, após a tormenta, o pôr-do-sol se manifesta esplendorosamente por entre as nuvens escuras, em diversos tons de cores que fazem do entardecer algo especial. Era o que ela dizia. Meu pai já dizia não lembrar nada disso. Em casa ríamos quando falávamos sobre as impressões de um e de outro.

Meu pai era pedreiro, semianalfabeto e a minha mãe dona de casa. Ambos começaram a vida como agricultores, no interior da cidade, até se encontrarem, já em idade avançada, no centro da então vila de Barbosa. Casaram e eu nasci filho único. Filho único e temporão.

Em 2023 fez dez anos que ambos partiram mas, ao longo de toda vida, viveram em Carlos Barbosa, no centro da cidade. Meu pai era um cidadão folclórico que, como já escrevi diversas vezes, ajudou a construir a cidade. E foi ali, no centro da cidade, no antigo “areião”, que muitos nem sabem do que se trata, onde cresci, brinquei, briguei e muito apanhei, mas também me defendi. Embora, quase sempre eu fosse o menor da turma, e aquele que mais apanhava, não deixava barato. Por isso, até hoje não tenho medo de brigar. Mas hoje a briga é no campo das ideias.

Saí da cidade com 18 anos, para servir o Exército e, no ano seguinte, me mudei para Porto Alegre. Fui estudar e acabei me fixando na capital, onde, aos poucos, fui criando meu espaço como diretor de cinema. Nos últimos anos, mais por necessidade de expor minhas ideias do que vontade de abrir outras portas, escrevi alguns livros. Três no total. Até agora.

E aí meio que virei escritor. Por conta disso – minha obra e a minha relação com a cidade – nesta semana fui convidado para ser o patrono da Feira do Livro de Carlos Barbosa de 2024.

Trata-se de uma Feira pequena, em numa cidade igualmente pequena, na Serra Gaúcha. Mas o tamanho não importa, Carlos Barbosa é a minha cidade e, por isso, fiquei feliz com o convite.

Senti-me honrado e percebi este convite como uma espécie de reconhecimento para com a minha carreira, construída com muito esforço e trabalho, longe demais da proteção umbilical da minha aldeia, muitas vezes sozinho e ao longo de muitos anos, teimando sem parar.

Boa parte da minha carreira foi dedicada a realizar filmes que exaltavam, não apenas Carlos Barbosa, sua gente e sua cultura, mas toda a região que recebeu a imigração italiana a partir do final do século XIX. Esse sempre foi um tema que me seduziu e sobre o qual sigo me debruçando até hoje. Agora através da literatura.

Mas, voltando ao início da minha carreira, meu primeiro trabalho para a RBS-TV, no já longínquo ano de 2008, foi um documentário sobre o Rio das Antas, para uma série chamada “Na trilha dos rios”. Depois de fazer pesquisa para toda a série, acabei sendo convidado para dirigir o episódio que se passava na Serra, intitulado “Rio das Antas – vale da fé”.

O Rio das Antas, quem é da Serra sabe, nem passa por Carlos Barbosa. Mesmo assim, fiz questão de desviar toda a produção para a “terrinha” e convidar o Coral de Cultura e Arte de Barbosa para gravar a trilha sonora do episódio. Trilha esta, cantada em italiano, por senhores e senhoras da cidade, na Igreja do Forromeco, uma das mais antigas de toda a região.

Muitos que acompanham meu trabalho ao longo do tempo sabem disso mas, infelizmente, na minha própria cidade, parece, poucos lembram do meu esforço para valorizar a história e cultura local, mantendo viva a memória de uma região que, inclusive, poucos a valorizam de fato. E está aí a demolição arbitrária de milhares de casas construídas pelos primeiros imigrantes para comprovar essa afirmação.

Depois desse primeiro trabalho, passei a ser chamado pela RBS-TV para outros projetos. Filmei “O homem dos raios”, em Antônio Prado, todo em dialeto vêneto, “Frente a Frente”, em Santa Tereza, Guaporé e Serafina Correa, além do “Pra ficar na história”, versão curta-metragem, em Garibaldi. Esses projetos todos para a televisão. Mas, investindo capital pessoal, por acreditar que deveria contribuir com a preservação da memória da minha região, realizei “Às margens”, em Carlos Barbosa, “Consertam-se gaitas”, “Tcheco” e “À sombra da vindima”, em Bento Gonçalves, além de ministrar cursos de produção audiovisual que serviram para capacitar novos profissionais locais para novos projetos. Desses cursos, inclusive, nasceram outros dois curtas-metragens, dirigidos por meus alunos, sobre a ferrovia do trigo e sobre a musicista caxiense, Ana Maria Mazotti.

Por fim, mas não menos importante, houve a realização de uma série de ficção para a RBS-TV, “Sapore d’Italia”, que foi filmada na Serra e no norte da Itália, “Bocheiros”, filmada em Santa Tereza e Monte Belo, e a versão longa-metragem de “Pra ficar na história”, filmada em Garibaldi, Carlos Barbosa e, novamente, no norte da Itália. Este último para a Globo News.

Faço questão de elencar parte da minha produção audiovisual na região pois, hoje, fui surpreendido com a notícia de que passou a circular, em Carlos Barbosa, um abaixo-assinado para retirarem o convite que me foi feito para patrono da Feira do Livro. Nesse abaixo-assinado, muito mal escrito, diga-se de passagem, havia dois motivos para tal reivindicação: 1) eu falaria mal de outras culturas e, 2) sou uma pessoa que não fala bem da minha cidade.

Convidaria essas pessoas, então, a assistirem meus filmes pois, me parece, pouco ou nada conhecem do meu trabalho ou, se um dia conheceram, o esqueceram. Não sei, inclusive, o quanto essas pessoas que me acusam de não valorizar a minha cidade, de fato valorizam a própria Feira do Livro de Carlos Barbosa, se por lá um dia transitaram e se algum dia compraram um livro e o leram. Pelo visto, meus livros, textos e filmes, nunca acessaram.

O que eu sei, ao longo de anos de muito estudo e trabalho, é que não cabe a um artista, seja ele cineasta, pintor, escritor, dançarino ou o que for, apenas “falar bem” daquilo que está sendo, por ele, traduzido. Por isso, imagino que quando dizem que eu “falo mal de outras culturas”, estejam se referindo às vezes que critiquei a minha região e a minha própria cultura pois, se há algo que de mim não pode ser tirado ou contestado, é, justamente, o meu amor e respeito por outras culturas. No entanto, acredito que, como filho da terra, eu tenho um lugar de fala para criticar aquilo que considero inadequado, assim como, imagino também, a liberdade de expressão, ao viver num país democrático, me garanta isso. Portanto, pergunto aos meus detratores:

Eu deveria ficar calado quando percebo que um equivocado projeto de restauro do prédio da Estação Ferroviária, espaço nobre da cidade, ameaça sua integridade histórica por conta da construção de duas torres de vidro grudadas ao prédio principal e em um terreno reduzido?

Não poderia eu, barbosense, criticar o histórico descaso da cidade com as coisas da cultura, motivo pelo qual, inclusive, fui levado a realizar vários projetos de documentários com meu próprio dinheiro, pois foram raras as oportunidades quando recebi algum apoio financeiro para, justamente, valorizar as coisas da terra?

Deveria me calar frente as reiteradas manifestações racistas e xenófobas que tomam de assalto as redes sociais toda vez que um trabalho análogo à escravidão é descoberto? Ora, por acaso fui eu quem não garantiu as mínimas condições de trabalho a homens e mulheres que buscaram emprego na pujante Serra Gaúcha, conforme, inclusive, determina nossa Constituição e as leis trabalhistas do país? Portanto, é a mim que deve ser apontado o dedo que descortina tal vergonha?

Por tudo isso, me entristece muito quando, desde ontem, passei a ver pessoas, muitas que nem me conhecem, e seguramente não conhecem a minha obra, me ofenderem justamente naquilo que eu mais me esforcei: falar da minha cidade e da minha história.

Documentar a região, sua cultura e história, não é um salvo conduto para apenas “falar bem das coisas da terra”, como muitos, parece, defendem que seja feito. Muito mais contribuem, tenham certeza, aqueles que não “passam a mão” para aquilo que parece estar errado e precisa ser transformado. A acomodação e a mesmice não nos leva muito longe. Ao contrário, isso nos faz acreditar que somos a única cultura valorosa ao ponto de, aí sim, falarmos mal de outras, sejam elas os povos indígenas, as comunidades quilombolas, os negros, nordestinos, forasteiros em geral e, até, um filho da terra que às vezes pensa diferente.

Por isso, a única forma de transformarmos o ufanismo tolo em consciência social e histórica é apostar na reflexão sobre as diferenças. É assim que, ao menos eu acredito, evoluímos como sociedade. Mas não é assim que essas pessoas enxergam a sociedade ideal da qual querem fazer parte, pois inúmeras vezes defendem a tal “liberdade de expressão” enquanto atacam o conterrâneo que tem outro posicionamento político.

Através do convite que me foi feito visualizei a oportunidade de levar um pouco desse trabalho audiovisual, mas que também é literário, para as escolas da cidade. Justamente para conversar com os jovens sobre o que cada um pensa da sua cidade e da sua história. O que sabem sobre sua história. Não apenas para exaltá-la, mas para percebê-la naquilo que ela tem de bom e naquilo que ainda é preciso trabalhar para que ela se transforme positivamente.

Infelizmente, a divulgação do meu nome parece ter causado uma onda de protestos de ódio e rancor entre os bolsonaristas e/ou radicais de direita que não aceitam meu posicionamento ideológico. “Petista” e “comunista”, é este o meu crime, sendo que nunca ao menos me filiei ao PT e, ainda hoje, mal folheei o Manifesto de Marx.

Foram inúmeros os comentários maldosos e, no geral, ignorantes, perpetrados nas redes sociais e direcionados não somente a mim, mas também à administração municipal. Administração, esta, que não é do campo da esquerda, “petista ou comunista”, conforme me “acusam” os nobres cidadãos, mas que mesmo assim teve o carinho de lembrar do meu nome para o patronato deste ano. O que demonstra, inclusive, louvavelmente, que é possível divergir em ideias, sobre diversos temas, sem apelarmos para um ódio cego e tosco que apenas nos envergonha como seres humanos.

Um dos comentários que li, no entanto, abriu a minha mente. Dizia algo como “numa cidade que deu 80% dos votos para o Bolsonaro, é inadmissível convidarem um ‘comunista’ para patrono, que isso seja revisto”.

Há uma certa lógica nisso e, nesse momento, percebi que não sou bem vindo. E se não somos bem vindos, damos meia volta e vamos embora. Eu poderia insistir nesse projeto, e não teria, nem tenho, medo algum de enfrentar, olho no olho e através do diálogo inteligente, essas pessoas que se utilizaram das redes sociais para destilarem seu ódio e preconceito contra mim. Em outro momento faria isso com prazer. Mas já faz tempo que compreendi que é inútil lutar contra a ignorância por escolha e convicção. Por isso, não vale a pena demandar coerência para pessoas assim. Demorou, mas nos meus quase 50 anos de idade percebi que não há porquê argumentar com pessoas que são capazes de escrever palavras tão baixas – e muitas, inclusive, carecendo de uma revisão ortográfica, o que, talvez, ofenda mais que os adjetivos em si – contra outra pessoa por esta simplesmente acreditar em ideias diferentes.

Acontece que ser patrono de um evento tão significativo deve ser algo bom, divertido e prazeroso. Não só para mim, mas para quem me convidou, para quem me escutaria falar e para quem quer aprender a compartilhar da diferença. Infelizmente, não sou eu quem perde mas, sim, a cidade. Uma cidade que não valoriza o trabalho artístico de um filho seu, que por anos falou dela com afeto e orgulho, não merece tal encontro. Infelizmente, também perdem aqueles e aquelas que, ao contrário destes, se mostraram empolgados com o que viria pela frente. Peço desculpa a vocês que estão pagando o preço pela intolerância de alguns poucos.

A unanimidade, já disse alguém em algum momento da história, é burra. E não há unanimidade nem entre os 80% de eleitores da minha cidade que votaram em Bolsonaro, pois de vários destes recebi mensagens de apoio, relatando a vergonha que estavam sentindo por conta do ódio destilado ao longo do dia de hoje nas redes sociais. Essas pessoas, bem como todas demais que me parabenizaram e se regozijaram comigo, agradeço de coração e me desculpo pois, infelizmente, contra o ódio não há verbo que resista. Por isso, do ódio prefiro me afastar.

Mas saio de cena com a convicção de que ser atacado por pessoas que têm por referência Jair Bolsonaro, alguém que defende a tortura e homenageia um torturador notório como Brilhante Ustra, para mim, é visto como um elogio. E a certeza de que estou do lado certo da história.

Ditadura nunca mais!

Apesar de admirar a obra revolucionário de Jesus Cristo, alguém, inclusive, que muitos que me ofenderam dizem amar acima de tudo, infelizmente não sou tão magnânimo ao ponto de oferecer a outra face. Prefiro desviar do primeiro tapa e deixar que os odiosos se odeiem entre si. Da minha parte, guardo-me para aqueles que me amam e me valorizam. A Bíblia nos conta que até Jesus foi ofendido e atacado por seus próprios conterrâneos. Obviamente não estou me comparando ao “filho de Deus”, mas não deixa de ser significativo lembrar que em visita à sua terra, Jesus foi condenado pelos próprios amigos de infância.

Dito isso, espero, apenas, que ao abrir mão do patronato, todos estes que pediram minha saída e anunciaram nas redes sociais que não frequentariam a Feira do Livro por minha causa, estejam lá este ano, presentes, incentivando a cultura local, prestigiando os escritores e valorizando as obras. E que comprem livros, com a mesma alegria que abrem suas carteiras forradas ao frequentarem os restaurantes da região. Afinal, “comida é arte”.

Para finalizar, agradeço mais uma vez o convite e desejo sucesso à edição da Feira do Livro deste ano. Que a minha cidade natal saiba receber com mais educação e respeito este evento.

Nos vemos pelas ruas da cidade.

Atenciosamente,

I. Boca Migotto

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por Boca Migotto

Quando criança eu detestava o verão. Naquela época as aulas começavam apenas em março e, por isso, após o Natal a cidade já se esvaziava e assim permanecia por três meses. Meus amigos todos, claro, passavam ao menos um mês “nas praias” e durante todo esse tempo eu permanecia sozinho. Ainda mais sozinho, uma vez que a solidão até nem era uma novidade para mim, filho único. Mas no verão isso se tornava ainda mais radical, quase insustentável.

Meu pai nunca viajava. Por isso fui conhecer o mar apenas com dez anos de idade, graças a uma excursão que saiu da minha cidade e fez um bate e volta à praia. Já fazia tanto tempo que eu reclamava que queria conhecer o mar que, um dia, minha mãe ficou sabendo dessa excursão e o pai não teve como negar. Saímos de Carlos Barbosa ainda de madrugada para passar uma manhã em Tramandaí e uma tarde no Parque Osório. Foi também a primeira vez que andei a cavalo. Uma égua velha, mansa, que mal conseguia caminhar, mas que me rendeu boas memórias que eu preservo até hoje. Lembro bem a intensidade daquela viagem. Voltamos no final do dia e chegamos já noite em casa. Eu estava exausto, mas dormi o sono dos justos, com um sorriso estampado no rosto.

Foto: Boca Migotto

 

O problema é que eu gostei muito da praia e ai ficou cada vez mais difícil negar, ao filho, alguns poucos dias de férias no litoral. O pai sempre foi enérgico e teimoso. Para ele, não era não. Já a mãe, salve as mulheres, conseguiu convencê-lo a bancar quinze dias de férias em Arroio do Sal, junto a um casal de primos mais velhos. Dessa vez, sim. Me esbaldei. O pai não foi. Preferiu ficar duas semanas sozinhos em Carlos Barbosa enquanto eu e a mãe compartilhamos esse período com esses primos bem mais velhos que eu e bem mais novos que ela. Só muito tempo depois fiquei sabendo que o pai pagou caro por essa brincadeira. Em troca do “favor” desses primos nos levarem junto para suas férias, o pai praticamente pagou o aluguel da temporada e a mãe, por sua vez, passou quinze dias cozinhando e lavando. Mas foram dias especiais, próximo da minha mãe em uma situação que destoava muito do nosso cotidiano e, por isso, contribuía com novas percepções sobre a nossa própria relação mãe e filho. Depois dessa experiência, no entanto, voltei para o litoral apenas quando já tinha condições de fazer isso por própria conta.

Escrevo essa coluna de Rainha do Mar. O dia está choroso. Não tem praia hoje, e o final de semana promete muita chuva. Semana passada teve sol, mas também teve Nordestão, mar frio, água marrom – o famoso chocolatão – e mãe d’água quando o mesmo mar ousou se acalentar um pouco. Nada pode ser perfeito no litoral gaúcho. Nada mais típico para a maior praia do mundo em extensão longitudinal.

Fazia tempo que não frequentava nossas praias. Depois que descobri Santa Catarina, em especial a Pinheira, a Guarda do Embaú, Farol de Santa Marta e a Gamboa, para lá me mandei de todas as formas possíveis. Já acampei no Vale da Utopia – quem conhece, sabe –, já fui de carona, ônibus da madrugada, carro e até avião. Já fui para passar um final de semana prolongado, me escalando na casa de desconhecidos, ou me espraiar ao longo de todo o verão pipocando em pousadas, barracas e casas de amigos. Foi a partir de Santa Catarina que esse gringo que mal sabia nadar, quando adolescente, descobriu o quanto é bom pegar uma praia. Foi a partir de Santa Catarina que me empolguei por conhecer outras praias. A Ilha do Mel, o litoral do Nordeste, o Rio de Janeiro e até praias do Caribe e da Europa.

Foto: Boca Migotto

 

Mas, desde que começamos a namorar, a Pati e eu – aliás, no último dia 17 de janeiro fez quatro anos de companheirismo –, por conta da comodidade de ter uma casa em Rainha do Mar, para onde viemos também no inverno, os últimos anos voltei a frequentar nosso litoral. E aí, abraçado ao Nordestão, decidi ir além. Decidi, com a Pati, viajar por ele todo. Então, nos últimos quatro anos (re)descobri Cidreira e Quintão, segui pela beira-mar na direção do Farol da Solidão, conheci, visitei e (re)visitei a Lagoa do Peixe, aprofundei meu conhecimento sobre a Lagoa dos Patos e, por inúmeras vezes, fui para a praia do Hermenegildo e a Barra do Chuí. Meu Instagram é testemunha de todas essas viagens. Por fim, escrevi um livro que se passa na última praia do Brasil, justamente no Chuí, fronteira com o Uruguai. E falando dos hermanos, fui além. Passei a frequentar as praias uruguaias e, bem lá ao sul da Argentina, também, conheci o litoral gelado da Terra do Fogo e da Patagônia chilena.

Minha empolgação por esse litoral latino-americano e, digamos, inóspito, me levou a escrever, pesquisar, fotografar e filmar tais cenários. Em especial, claro, o litoral gaúcho com o qual o cinema produzido nessas paragens tem uma relação muito próxima. Se, para os veranistas, o nosso clima litorâneo e as características particulares das nossas praias abertas tornam-se, muitas vezes, um martírio, para as lentes das câmeras cinematográficas é um deleite visual. Não por acaso, na grande maioria das vezes os filmes gaúchos que se passam nas nossas praias optam por filmá-las em tons de inverno. Dessa forma, o cinema gaúcho associa o nosso litoral ao frio, aproximando-nos de uma estética mais europeia e distanciando-nos da inatingível tropicalidade brasileira. Um enorme contrassenso, afinal, as mesmas praias das quais fugimos para curtir o verão nos servem como elo de ligação ao nosso ideal civilizatório. Ao nosso eterno referencial cultural.

Foto: Boca Migotto

 

Quero refletir melhor sobre essa relação entre o cinema e o litoral gaúcho, mas também quero compreender como esse mesmo litoral interminável era percebido pelos navegadores que transitavam entre o Brasil, Uruguai e Argentina. Afinal, era uma aventura deixar Florianópolis – na época conhecida como Desterro – para trás e, a frente, por dias a fio, ver apenas mar aberto quase até Montevideo. Tenho a impressão de que podemos encontrar algumas percepções historicamente relevantes ao aproximarmos os relatos escritos pelos navegadores, no século XVII e XVIII, do cinema gaúcho produzido nos séculos XX e XXI. Para isso ando tateando o tema com algumas leituras interessantes. Alain Corbin, por exemplo, abordou o tema da vilegiatura, ou seja, da procura do mar gelado para fins terapêuticos, iniciado ainda no século XVII no Mar Báltico, principalmente na Alemanha, e nos dois lados do Canal da Mancha, na França e Inglaterra, em seu livro “O território do vazio”. Através deste livro voltamos ainda mais no tempo, para compreender um pouco a nossa relação histórica com a praia e o mar. Desde os tempos bíblicos, marcado por dilúvios, passando por gregos, troianos e romanos, percebemos a importância do Mediterrâneo para o desenvolvimento da humanidade embora este, o mar, pela mesma humanidade, tenha sido percebido como um amigo distante. Apesar de estar sempre ai, roçando as pedras e areias de três continentes.

Mas deixando a Antiguidade e o Mediterrâneo para trás – bem para trás – ingleses, franceses e alemães, sobretudo, passaram a olhar para as águas geladas, que banhavam seus países, como um remédio para diversos males. Os primeiros foram os alemães, mas os ingleses não ficaram atrás. Num primeiro momento, esta foi uma prática das elites, mas não demorou para também se popularizar. Eu conheço bem o litoral Sul da Inglaterra. Cidades como Brighton e Hastings se consolidaram como balneários populares e muito procurados pelos ingleses por conta do transporte ferroviário, que facilitava o deslocamento de Londres e de outras cidades do Norte para lá. Hotéis impressionantes, e toda uma rede turística, com serviços voltados ao lazer daquele iminente turista que buscava acesso às benesses do clima litorâneo, foi erguida na região. Mais recentemente, quando surgiram as passagens aéreas do tipo low cost, as classes mais populares também descobriram o Caribe e outras praias tropicais da Ásia. E então o litoral frio do Sul da Inglaterra esvaziou de vez. No entanto, ainda antes disso esses balneários já estavam sendo trocados por outras práticas de lazer e nem de perto lembravam o cotidiano sofisticado de outrora, quando o turismo iniciou com as viagens à praia.

Foto: Boca Migotto

 

Aqui no Rio Grande do Sul a pesquisadora Joana Carolina Schossler faz algo semelhante ao que Corbin pesquisou em relação ao imaginário moderno e ocidental que envolve o desfrute das praias. O seu livro “História do veraneio no Rio Grande do Sul” traz diversos relatos sobre os pioneiros que desbravaram nossas praias, geralmente a partir da capital ou da Serra, em busca da vilegiatura marítima. Schossler destaca a participação dos imigrantes, sobretudo italianos e alemães, que se interessaram pela prática da cura a partir do banho de mar e, também, contribuíram com o desenvolvimento da região. Desenvolvimento, este, obviamente, que precisa levar em conta o viés lucrativo dos investimentos realizados na região, principalmente a partir da década de 1940, e a consequente especulação imobiliária de todo o Litoral Norte e a região de Rio Grande. Por conta desse “progresso”, menos de um século depois de ter iniciado a urbanização litorânea, passar férias em praias como Tramandaí, Capão da Canoa e Torres, por exemplo, tornou-se a antítese do que foi o embrião dessa história.

Também os objetivos desse movimento rumo ao mar se transformaram. Se no início a busca era pela saúde através dos banhos terapêuticos, aos poucos um hedonismo vazio de conteúdo foi tomando conta das nossas areias brancas. Já há algum tempo o bronze de um corpo sarado e quase nu subjugou a vergonha e o moralismo católico de outrora. Os maiôs de lã que cobriam todo o corpo foram substituídos pelos biquínis e pelas sungas e até o descanso, embora ainda importante para alguns, em especial os mais velhos, tornou-se incompatível com a voracidade juvenil que toma de assalto as praias mais badaladas. Nesse movimento os livros, que por muito tempo eram companheiros fiéis das horas ao sol, foram trocados por aparelhos celulares e caixas JBL. A sociedade se transformou completamente. No entanto, mesmo que, como sociedade, tenhamos interferido na paisagem, as praias e, sobretudo o mar, são os mesmos. Talvez um pouco mais poluídos, mas ainda os mesmos cenários de séculos atrás. De inúmeras outras histórias, com gerações de outros seres humanos como personagens.

Foto: Boca Migotto

 

Portanto, há muito o que pesquisar e estudar sobre o tema. Inclusive, olhar para como o nosso cinema retratou o litoral gaúcho através das inúmeras obras audiovisuais que buscaram nossas praias como cenário e, muitas vezes, também, como personagens, pode ser um exercício interessante para melhor nos compreendermos como povo. Por último, mas não por fim, voltar no tempo para descobrir como os europeus que por aqui passaram percebiam o nosso mar bravio, nervoso e que nunca dorme, me parece, é quase como um complemento sobre a forma como enxergamos esse mesmo litoral. De certa forma, quem sabe, uma excelente metáfora sobre o que é o Rio Grande do Sul.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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MAR ABERTO | A INVEJA DO FINAL DE ANO https://redesina.com.br/mar-aberto-a-inveja-do-final-de-ano/ https://redesina.com.br/mar-aberto-a-inveja-do-final-de-ano/#respond Thu, 21 Dec 2023 19:18:23 +0000 https://redesina.com.br/?p=120472 por Boca Migotto Mais um final de ano se aproximando e, novamente, os bares e restaurantes lotados para as festas da firma. Nessa época não tem crise nem tempo ruim. Ao menos, parece. Basta circular pela cidade a partir das 18 horas para percebermos isso. Final de ano é sempre assim, tempo de comemoração, confraternização …

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por Boca Migotto

Mais um final de ano se aproximando e, novamente, os bares e restaurantes lotados para as festas da firma. Nessa época não tem crise nem tempo ruim. Ao menos, parece. Basta circular pela cidade a partir das 18 horas para percebermos isso. Final de ano é sempre assim, tempo de comemoração, confraternização e homenagens. E sempre há alguém que merece uma homenagem. Mesmo que, muitas vezes, quem as realmente mereça não necessariamente as receba. Assim como as premiações, outra modalidade muito praticada nessa época do ano.

Mas, se as homenagens até são justificáveis, o mesmo não se pode dizer sobre os prêmios. Estes, são sempre excludentes, bons apenas para quem os ganha. E estes sempre são poucos. Os escolhidos. E nem sempre os melhores. Afinal, o que é ser “o melhor”? Quem define? Com base em quais critérios? Os premiados, claro, ficam felizes, tiram fotos, postam sua conquista nas redes sociais e inflam seus egos. Para (quase) todos os demais, resta a inveja. Esse sentimento, a inveja, do qual todos sofrem mas o qual, por sua vez, ninguém admite sentir, ajuda a explicar os aplausos dos excludentes.

A preguiça é aceitável, afinal, “sou um cara tranquilo, a vida não é só trabalho”. A gula, em determinado período da história – e inclusive até bem pouco tempo atrás – chegou a ser considerada condição de bem estar e de riqueza. A gula, foi, portanto, o principal pecado da “elite”. Nesse samba dos pecados capitais, até a avareza pode ser bem vinda, dependendo da ginástica moral e verbal para justificá-la. A ira também é boa, e às vezes até aconselhável. A luxúria e a soberba, por sua vez, são mais difíceis de justificar, mas atire a primeira pedra quem nunca escorregou por elas. Assim, avareza, gula, ira, luxúria, preguiça e soberba são todos pecados capitais explicáveis e desculpáveis. Aceitos. Com os quais dá para conviver. Mas não a inveja.

Mais fácil passar um elefante pelo buraco de uma agulha que um ser humano admitir sentir inveja de outra pessoa. Embora, ao mesmo tempo e ironicamente, todos nós, homens, mulheres e crianças, somos invejados por alguém, em algum momento da vida. Para invejar, basta estar vivo, respirar e conviver com o próximo. Basta olhar para o lado e perceber que alguém sorri por algum motivo o qual nós gostaríamos de estar sorrindo. Mas não estamos. Então invejamos. Que sentimento difícil esse, não?

Toda vez que sinto inveja apelo para o meu lado racional, meus anos de terapia, meu autoconhecimento e, sobretudo, meu espelho, para tentar compreender e sufocar tal sentimento. Às vezes funciona, mas nem sempre. Tem inveja que gruda na gente como poeira. E nos deixa mais pesados. E nos deixa sujos de um sujeira que queremos esconder. Não há “inveja branca” que disfarce isso. Até porque a inveja branca não existe. Inveja é sempre um sentimento ruim, egoísta e o qual diz mais sobre nós que sobre os outros. E talvez por isso mesmo doa tanto. A inveja é como nos defrontarmos com nossas próprias incapacidades, inseguranças e insuficiências.

Por isso, na medida que o final de ano vai chegando, eu vou me fechando. Nem sempre foi assim, é verdade. Mas a cada ano que passa, mais me vejo refletido, como meus pais, no espelho do tempo. Quando criança o Natal era legal e o Ano Novo meio que passava batido. Para os meus pais, suas idades de avós e suas vidas miseráveis, no sentido de quem cresceu uma infância pobre, tanto o Natal como o Ano Novo eram dias como qualquer outro. Minha mãe contava que, quando criança, ela e os irmãos ganhavam quatro doces de açúcar no Natal. Ela, ao contrário dos meus tios, que devoravam todos eles no mesmo dia, os guardava por meses, para que assim pudesse preservar não apenas aqueles doces, mas também a boa lembrança que eles representavam. Para meu pai, tadinho, o final de ano era ainda pior. Nunca ouvi ele me contar que ganhou um presente quando criança. Talvez por isso, nem um nem outro sabiam ganhar presentes. Toda vez que eu lhes presenteava ouvia a mesma frase: “não precisava, pra que gastar dinheiro com isso”.

Não é de se admirar que o Natal e o Ano Novo não tinham nada de especial na minha casa. Quando eu era criança, eles até se esforçavam, mas logo o esforço esmoreceu e as noites, enquanto todos estavam comemorando, a gente estava indo para a cama. No mesmo horário de sempre. Ou até mais cedo. E como eu invejava as noites de Natal e Ano Novo dos meus amigos. Nem era preciso ganhar um presente – que não deixa de ser um prêmio – bastava uma noite iluminada. Apenas isso.

Mas o tempo foi passando e, em determinado momento da vida, fui acreditando que poderia, eu mesmo, quando adulto, fazer dessas datas especiais momentos também especiais. E, assim, transformar a minha inveja infantil em algo positivo. Tentei. Fiz até. Acreditei muito e por inúmeras vezes isso aconteceu de fato. Mas, na medida que eu também fui amadurecendo – para não dizer envelhecendo, afinal, tenho apenas 47 anos de idade – fui me vendo, também eu, mais introspectivo frente aquele mesmo espelho do tempo. Não apenas em relação ao Natal e ao Ano Novo, mas também ao carnaval, aniversários, Dia dos Namorados. Enfim, todas aquelas datas que nos dizem para comemorar. E para consumir.

Aos poucos, enquanto o mundo ao redor fazia dessas datas momentos especiais, comemorando sei-lá-o-quê-como-se-não-houvesse-amanhã, eu fui me fechando em mim mesmo e percebendo que não preciso ser alegre o tempo inteiro. Também não é preciso montar árvores de Natal para um Papai Noel inventado pelo marketing de uma empresa qualquer ou estourar um espumante produzido por mãos escravas na Serra Gaúcha.

Não vou dormir como se fosse qualquer outro dia do ano. Mas também não invejo mais as casas iluminadas, as luzinhas piscando sobre as árvores, as grandes famílias vestidas de branco e reunidas em total (?) fraternidade. Depois de Bolsonaro, na verdade, passei até a agradecer o fato de a minha família ser apenas três pessoas. Não cultivamos a obrigação de sermos felizes ao mesmo tempo que o resto do mundo. Foi assim que curei as minhas invejas de final de ano.

Para fechar esse texto, o último de 2023, quero agradecer quem me acompanhou por aqui. Quem me deu a alegria de ler meus textos, meus livros, assistir meus filmes ou torcer por mim. Mesmo que eu não tenha ganho nenhum prêmio (sic), da minha parte, prometo, seguirei tentando ser o melhor que consigo para 2024. E que sigamos juntos, refletindo sobre os motivos que nos fazem viver e produzir. Certamente, nada disso tem a ver com prêmios, mas com autoconhecimento. Obrigado a todas e a todos. Até o ano que vem.

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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MAR ABERTO | Homenagem merecida https://redesina.com.br/mar-aberto-homenagem-merecida/ https://redesina.com.br/mar-aberto-homenagem-merecida/#respond Wed, 13 Dec 2023 11:44:57 +0000 https://redesina.com.br/?p=120447 O Derlam, meu amigo e parceiro de projetos de longa data, me pediu esse espaço para homenagear um amigo. Não vou revelar, aqui, quem é o amigo do amigo. Deixarei para o amigo fazer isso. Mas adianto que se trata de algo inédito. Esse espaço é voltado para a reflexão. Minha e de quem se …

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O Derlam, meu amigo e parceiro de projetos de longa data, me pediu esse espaço para homenagear um amigo. Não vou revelar, aqui, quem é o amigo do amigo. Deixarei para o amigo fazer isso. Mas adianto que se trata de algo inédito. Esse espaço é voltado para a reflexão. Minha e de quem se propõe a me ler. Se há algo de bom em escrever para a Rede Sina é que não temos limites de caracteres e, por isso, se algumas vezes escrevo duas páginas de word, noutras passo das vinte. Tudo depende do tema, do tempo que tenho e do meu interesse em propor o desafio da leitura aos meus leitores. Nesse sentido, me soa natural, também, abrir espaços para homenagens como essa, pois essa é uma homenagem que nos permite refletir sobre a importância do investimento na cultura. Mas deixarei que o meu amigo Derlam apresente o seu amigo. Ao amigo do meu amigo, desde já, também agradeço. Boa leitura a todos.

 

Palavras de um rei

– Eu nasci para inventar, produzir, organizar e distribuir. 

Lauro Bergesch

Algumas pessoas possuem um dom capaz de nos fazer atravessar a fronteira do pensar. Bater mesmo as asas da imaginação e voar por aí. Obviamente essas pessoas serão raras em nosso caminho. E o segredo é compreendermos que o seu valor e significado, farão a diferença em nossas vidas. Se até aqui eu estou romantizando a minha introdução, asseguro que logo adiante vou citar os feitos triunfantes deste homem. Um tanto visionário. E olha não é pouca coisa que ele realizou. Começando pelo fato de que seus projetos sempre foram direcionados as comunidades. E nunca contaram com nenhum tipo de recurso público, ou foram cobrados. Além disso, ele nunca pediu algo em troca. Todos foram oferecidos gratuitamente e de bom grado. Com a melhor das intenções. Realizados com recursos próprios obtidos ao longo de sua longa e bela jornada profissional. Bom leitor é hora de detalhar melhor essa grandeza toda.  Considerando a regra máxima do texto jornalístico, obrigatoriamente teremos que apresentar as sete circunstâncias criadas por Aristóteles. Aquelas que foram livremente traduzidas em: Quem, o que, quando, onde, por que, como e por que meios.

Foto: Lauro Bergesch em sua casa/Arquivo Pessoal

 

Quem

Ele afirma ter descoberto seu maior talento aos 78 anos de idade (ou seja, nunca mesmo é tarde para se começar) e sempre confiou no lema que o trabalho edifica o homem. Isso já diz muito a seu respeito: Lauro exerceu sua atividade de diretor de vendas e hoje é acionista na Bebidas Fruki S/A. Foi um dos idealizadores em trazer a empresa de Arroio do Meio e se instalar em Lajeado, às margens da BR 386. O terreno onde hoje está localizada a sede, é um dos tantos legados de Lauro deixados à empresa. Ele trabalhou por mais de 457 municípios do Rio Grande do Sul, vendendo ainda seu produto por 5 anos no Uruguai. Em carroças, automóveis, caminhões e até aviões. Por décadas ele percorreu o estado vendendo e transportando as bebidas. Criou e expandiu mercados. Nestas andanças descobriu cenários incríveis. Verdadeiras maravilhas entre recursos naturais e paisagens gaúchas. Quando encerrou suas atividades, bem poderia ter ido viajar pelo mundo a fora com suas economias. Seria lógico e justo. Certo? Não. Acontece que este homem prefere desafiar a lógica. Bem meus caros leitores é aqui que começa a sua verdadeira história.

Foto: Lauro e Fernanda Carvalho em uma das viagens pelo RS/Arquivo Pessoal

 

O que

Ao se aposentar (na verdade eu prefiro imaginar que ele nunca se aposentou) pois jamais deixou que ócio e inércia o contaminem, fez justamente o contrário. Permitiu-se contagiar e também inspirar-se por poetas, musas, artistas e também alguns boêmios. Preferiu pegar a estrada de novo e foi rever/desbravar os mais remotos rincões do nosso Rio Grande.  Conheceu outros lugares, cultivou amizades e definitivamente se uniu as belezas naturais do nosso estado. Ocorreu então o encontro definitivo do empreendedor nato, que desde jovem lutou pelos seus sonhos e ideais, com a sua mente e principalmente o seu coração. Descobriu uma paixão. Ou uma missão. Promover essas belezas. Preservar costumes, culturas e tradições. Eternizar tudo isso em um projeto: o Exportado Belezas. O diretor comercial de bebidas, deu espaço ao visionário da cultura e turismo. Por anos, ao lado de sua equipe registrou grandiosas e tocantes imagens (fotos e vídeos) de paisagens e cidades. Aliando o seu desejo de contribuir para o desenvolvimento e avanço cultural da nossa sociedade, com iniciativas que promovem e valorizam os recursos
naturais. Sem esquecer jamais das pessoas e as necessárias relações afetivas que constroem as riquezas econômicas. A temática não poderia ser melhor: Natureza, tradição e cultura retratados em uma exitosa relação com o meio ambiente.

Foto: Lauro Bergesch durante o lançamento do Exportando Belezas

 

Quando

Concentrou esforços e avançou na busca pelo sonho de publicar suas intuições e desejos sob forma de notáveis publicações. E assim nasceram diversos livros. Primeiro sobre os Empreendedores do Vale do Taquari, outros 3 sobre o Turismo no Rio Grande do Sul, estes últimos em português e traduzidos para 4 idiomas. Fez diversos filmes e vídeos sobre o turismo, agroindústrias e também mais de 30 músicas sobre os mais variados temas. Detalhe: Sob seu comando ainda lá nos tempos de Fruki foram plantadas 5 mil mudas de árvores.

Assim prosseguiu em torno de seus projetos, iniciativas e crenças. Desenvolvendo obras com fôlego. De forma incansável. Os livros e DVD´s do projeto Exportando Belezas possuem versões com os idiomas inglês, espanhol, alemão e italiano. Nas palavras de Ronaldo Zarpellon – empresário do setor hoteleiro no Vale correspondem a “Um rico manancial de diversificados conhecimentos sobre a natureza, cultura e tradições do Vale do Taquari”.

Suas mãos cheias de vigor permitiram a centenas de pessoas sonhar e acreditar na força de seu pensamento, em seu movimento, suas ideias, em toda aquela poesia, beleza e inspiração que percebeu, contemplou e generosamente compartilhou. Provou ser possível ir o mais distante possível, mesmo sem saber voar. De tanto trilhar resolveu compartilhar o mapa gaúcho impresso na sua mão e muito claro no seu nobre coração. 

Foto: Monique Leotte Mendes, Lauro e Fernanda Carvalho no Palco do Teatro da Univates

 

Onde

São mais de 90 anos de vida. Boa parte percorrendo centenas de milhares de quilômetros pelas estradas do Rio Grande do Sul. Com olhos atentos. Registrando a variedade das culturas, comunidades e belezas naturais do estado gaúcho. 

Essa necessidade por descobrir e revelar proporcionou iniciativas um tanto ousadas. Em 2017, o Brasil já começava a viver aqueles tristes dias de retrocesso cultural. Mas isso não o intimidou. Que nada. Encabeçou o Primeiro Festival de Cinema de Lajeado, idealizou e patrocinou a primeira edição. O evento obteve divulgação e repercussão nacional. Foi realizado nas dependências do moderno teatro da Univates. Um cenário belíssimo e grandioso para os curta-metragistas. Reunindo cineastas de diversos estados do Brasil. Mais de 300 filmes se inscreveram. Premiações, homenagens, exibição de filmes ousados e necessários, apresentações musicais, debates, acesso à cultura… Um prato e tanto. Servido por ele sem restrições. Um sucesso de público e crítica que lotou o Teatro da Univates e fez história movimentando a cidade durante 4 dias. 

Ele ficou satisfeito? Pensem vocês… Queria e podia mais. E assim como um desbravador de belezas e fronteiras, ele foi levando a mares incalculáveis, o seu talento inspirando e investindo em filmes e produtos audiovisuais. Iniciativas que enriquecem a cultura e sustentabilidade da região, reveladas para o mundo. Deu luz a histórias, inclusive a sua própria em forma de livro e narrada por ele mesmo. Assim em 2020 publicou sua biografia.  Dividido em dez décadas recheadas de experiências, observações, descobertas, conquistas, contribuições e realizações. Um registro dos sonhos, do seu trabalho e de todo o legado empreendido pelo autor frente a sua longa e rica jornada de vida. Esse espírito empreendedor o fez se projetar aos 90 anos como um youtuber sênior, gerando conteúdos até neste momento, com cerca de um milhão e quinhentas mil visualizações no canal do projeto Exportando Belezas na conhecida plataforma.

Foto: Jones Fiegenbaum, Fernanda Scheneider e Alexandre Derlam na casa de Lauro Bergesch

 

Por que

Pela economia, educação, turismo, cultura, pelo conhecimento.

Tudo reunido com objetivo de apresentar e promover as potencialidades turísticas do RS, as obras impressas reúnem fotos, textos e mapas. Permitindo aos leitores descobrir nossos atrativos e valorizar nossas regiões. Ou nas suas próprias palavras:

– Não havia nada pensado ou dedicado neste sentido. Um livro ou um filme ou coisa parecida. Ali tinha era um vazio. Então porque não aproveitar este vazio? Porque não fazer algo importante para este povo? Então em 2010 eu convidei a Fernanda Rocha Carvalho para percorrer o Vale e fotografar todos os pontos turísticos possíveis.  Ela fez um curso de fotografia e saímos nos finais de semana fotografando nossa região. 

Foto: Lauro Bergesch e Júlia Lemmertz na homenagem para a atirz no Festival de Cinema de Lageado

 

Como

Verdadeiro alquimista por ideias e projetos com a temática ambiental, Lauro prossegue de olho na combinação tela e meio ambiente. Recentemente adotou uma nova temática: Um projeto exclusivo voltado aos nossos rios. A iniciativa ganhou forma com a produção audiovisual da Prosa Filmes através da série Rios do Sul: Os dois primeiros curtas apresentaram a Bacia Hidrográfica Taquari Antas e o rio Jacuí. Em forma de documentário reunindo depoimentos, recriações fictícias, material de arquivo histórico, recheados de cenas de paisagens, turismo, música e cultura. As receitas que trazem ao idealizador prazer e satisfação. Conteúdos disponíveis no canal do projeto no youtube.

– Qualquer família pode olhar em casa nossos filmes. Conhecer essas riquezas naturais tão essenciais em nossas vidas. 

Foto: Lauro Bergesch divulgando o projeto Exportando Belezas

 

Por que meios

Seus ideais e iniciativas já corresponderam bem além da sua modéstia e humildade.

– Se meus trabalhos doarem algo que possa contribuir para o desenvolvimento e avanço cultural da nossa sociedade, me torno um homem realizado.

Nem mesmo a falta de mobilidade e limitação física geradas por uma queda (Lauro faz uso de cadeira de rodas há dois anos) impediu a sua curiosidade e inquietação. A vontade por descobrir mais sobre os séculos de ocupação, os principais acontecimentos e fatos ligados a vida, obra e reflexões dos descendentes do Vale do Taquari, inspirou a produção do documentário Entrenias. O filme teve a sua etapa de filmagens concluída em novembro com previsão para lançamento em fevereiro de 2024. A obra será um retrato das etnias responsáveis pelo povoamento no Vale do Taquari.  Todos os povos formadores: Indígenas colonizadores, Europeus (Açorianos, trabalho escravizado, imigrantes alemães e italianos).  Assino a direção de cena, direção de fotografia. roteiro, pesquisa e produção ao lado do historiador e músico Jones Fiegenbaum e da jornalista e produtora Monique Leotte Mendes.  Ela em 2020 fez o desenvolvimento do projeto e toda a sua pré-produção.

– Vamos fazer uma coisa muito boa para mostrar toda essa gente que ajudou a povoar e construir o nosso vale.  Resume ele com a sua típica e singela maneira.

São muitas as lições, histórias e legados que todos nós já podemos presenciar ao lado de Lauro Bergesch. Ou de maneira mais afetiva, o senhor Lauro, como eu sempre tratei. Um ser humano nobre. Destemido, enérgico, um líder autêntico e muito valente. Um homem sábio em seu talento inexorável de ouvir e permitir aqueles (as) que convida a entregarem o seu melhor, seja qual a função ou atividade desempenhem. 

Ele sempre acreditou em minhas idéias e desenvolvimento dos projetos. E isso estabeleceu um vínculo de respeito e confiança definitivo entre nós. Eu o conheci em 2016, por intermédio da Monique com um convite para contribuir na época (ainda embrionário) Festival de Cinema de Lajeado que eles estavam desenhando. Nossas reuniões e trocas de ideias deram muito certo. Fizemos o evento com toda a força e potencial possível e ele encheu-se de orgulho. Eu vi os seus olhos brilhando em todos aqueles dias. Uma sensação que não tem preço.  A partir daí ele passou a ser muito mais que um cliente ou alguém com demandas de trabalho. Tornou-se um grande amigo. Daqueles especiais mesmo. E naturalmente vieram os nossos filmes, uns outros projetos, a minha proposta pelo site do Exportando Belezas e algumas conquistas que de certa forma, também mudaram o curso da minha vida. 

Foto: Alexandre Derlam e Lauro Bergesch em sua casa

 

Eu ganhei em Lajeado um parceiro para todos os momentos. Os bons e também os difíceis. Aquele amigo que te liga toda semana sabe? Apenas para saber se está tudo bem e o quanto já evoluiu a ideia do próximo projeto. E o detalhe é que ele sempre teve um próximo projeto. E eu sempre fui convidado. Percebem o valor e importância desta parceria? Eu sempre atendi com prazer, alegria e motivação as suas ligações. Ouvindo seus relatos. Sua vontade de fazer algo novo. O novo sempre vem não é mesmo? Ele sempre soube disso. E ensinou com louvor. 

Concluo este texto afirmando, sem sombra de dúvidas, o mundo, o Brasil e principalmente o Rio Grande do Sul merecem e precisam conhecer e aprender com essas iniciativas e os exemplos criados pelo senhor Lauro. Porque talvez… Quem sabe… estas pessoas também possam ser tocadas pelas palavras do rei

Foto: Lauro Bergesch durante o lançamento do projeto Exportando Belezas

 

Eu fui. Ah eu fui sim. Muito obrigado meu amigo. 

Alexandre Derlam
Diretor, roteirista, produtor audiovisual
Curador do Festival de Cinema de Lajeado e do Festival de Cinema de Canoas

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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por Boca Migotto

Desde as Guerras Púnicas, ainda durante a República, Roma se fez presente no Norte da África como uma força política, econômica, cultural e, sobretudo, militar, que, desde então, ampliou sua presença não apenas naquela região mas, também, no Oriente e Europa Ocidental. A partir dessa afirmação é preciso perceber que mesmo dominando praticamente todo o mundo antigo conhecido, o controle sobre a África se mostrou fundamental para que Roma expandisse sua influência sobre todo o Mediterrâneo, bem como, ampliasse a força do seu exército – fundamental para a manutenção do império que estava ascendendo –, intensificasse o comércio de cereais para alimentar sua crescente população urbana e, não menos importante, recolhesse os impostos e os inúmeros produtos que geravam a riqueza fundamental para a administração da máquina estatal.

A África mediterrânea, sem sombra de duvida, era uma região bastante rica e, portanto, essencial para o fortalecimento de Roma. Ao mesmo tempo se mostrava indispensável para que um comércio marítimo romano ocorresse sem maiores sobressaltos. A diversidade cultural e econômica da região se refletia em Cartago, não por acaso, uma cidade que fazia frente à Roma antes de sucumbir, após três longas guerras que duraram quase um século. Dessa forma, para o Império, que viria substituir a República em pouco tempo, as províncias do Norte da África se mostraram cruciais para a manutenção do poderio romano sobre toda a região. Da mesma forma, conforme Thébert afirma, “[…] a África romana [também] representa um campo de estudos privilegiado, pois trata-se de uma das mais importantes províncias do Império.” (THÉBERT in VEYNE, 2009, p. 290).

Antes de avançarmos na reflexão, entretanto, é importante compreendermos o conceito de Império aplicado tanto para Roma, que nesse momento ainda estava na sua fase republicana, como para todo o significado gerado a partir de então. Conforme Mendes, Bustamante e Davidson (2009), a historiografia construiu a noção de império a partir da definição para uma política expansionista, patrocinada por um determinado Estado que, por sua vez, por conta da opressão ou persuasão, vai exercer influencia política, econômica e/ou cultural sobre determinados povos ou populações por, este Estado, dominados e administrados. Os autores, no entanto, chamam a atenção para a importância de percebermos que, por trás do conceito de império há, certamente, a necessidade de se perceber a “[…] diversidade, a pluralidade e a singularidade dos processos ou das práticas imperiais para se investigar como e por que os impérios se constroem, se expandem, se legitimam, se consolidam e se desagregam” (MENDES, BUSTAMANTE e DAVIDSON, 2009, p. 19). Por isso, estudar e pensar os impérios sempre é uma prática complexa que precisa levar em conta a construção de uma diversificada e problemática contextualização cultural que não é unilateral e, muito menos, simplesmente imposta de cima para baixo. Por mais opressor que venha a ser o poder central de determinado império, sempre haverá espaço para o oprimido contribuir com a sua própria dinâmica cultural. Um bom exemplo pode ser a influencia da cultura africana sobre o Império do Brasil, Portugal e Algarves. Por mais subjugados que os africanos capturados e escravizados tenham sido, foram determinantes para a cultura brasileira e imprimiram sua marca na nossa língua, gastronomia, arte, nas nossas cidades e, inclusive, no nosso sincretismo religioso.

Portanto, realizada tal digressão conceitual, voltemos à conquista da África e ao fato de que, ao contrário do que a historiografia europeia do final do século XIX e início do século XX pensava, de que territórios dominados por Roma sofriam uma influencia de mão única, através da qual esta levaria a “civilização” aos povos nativos, significou, isso sim, um intercâmbio comercial, político, cultural, cientifico e artístico entre ambos os lados do Mediterrâneo. Não que Roma não tentasse impor sua visão de mundo, seja pela opressão ou pela sedução. Nesta região, existiam culturas tradicionais anteriores ao domínio romano, como a púnica e a berbere. O processo de expansão romana, iniciado ainda na República, fez com que Roma subjugasse diferentes sociedades e estabelecesse o seu império. O Império Romano empenhou-se em construir uma identidade entre as múltiplas culturas, que estavam sob seu domínio, visando a formação de uma comunidade de abrangência mediterrânea. (BUSTAMANTE, 2012, p. 3)

Embora seja impossível subjugar completamente uma sociedade secular como Cartago – e veremos que isso não foi possível nem com a destruição total da cidade –, é compreensível perceber que a historiografia colonial europeia, a exemplo de Roma, tenha se esforçado por construir essa ideia de um Império de mão única, que através da conquista, levava suas benesses civilizatórias aos demais povos sob sua influencia. Algo que, a priori, vemos ocorrer ainda hoje em diversos conflitos mundiais, sobretudo, na mesma região em torno do Mediterrâneo. Afinal, do que se tratou as invasões dos Estados Unidos ao Iraque ou ao Afeganistão ou, ainda, do que se trata a atual guerra entre Israel e os palestinos se não, também, uma tentativa midiática de justificar a dominação destes espaços por conta de interesses econômicos através do velho discurso de um Estado democrático e civilizatório que levará a liberdade e a visão de mundo ocidental onde há, sobretudo, repressão e barbárie? Percebam que não estou defendendo o terrorismo – é bom deixar isso bem claro – mas, apenas, colocando os conflitos mencionados em sua perspectiva histórica. Um povo que passa 50 anos, 100 anos, mais se século, às vezes, sob o domínio de um império, é um povo constituído por gerações – pais, filhos, netos – de pessoas oprimidas e subjugadas que, certo ou tarde, se levantarão contra tal injustiça pratica contra tais populações. E os meios utilizado para isso podem ser os mais variados, desde a política da não-violência de Gandhi, na Índia, até o terrorismo praticado pelo Hamas.

É claro que houveram outros povos que subjugaram populações mais frágeis antes de Roma, mas os “italianos” deram outro significado para tudo isso. Roma foi a primeira superpotência internacional e não apenas subjugou diversos povos como influenciou inúmeras outras tentativas que vieram depois dela. A França de Napoleão, A Alemanha de Hitler, o próprio Estados Unidos, são todos impérios que se inspiraram no Império Romano. Não por acaso, nesse mesmo viés colonialista, a Europa ocidental do final do século XIX também ganhava muito a partir da concepção de que era herdeira do processo civilizatório romano sobre outras regiões do globo. Conforme nos conta Lepelley (2016) sobre a redescoberta da região pelos europeus, a partir de 1830, a percepção de franceses e, principalmente, italianos, era de que estavam retomando para si um território o qual, por direito, lhes era herdado dos romanos. Lepelley conta que na medida que militares e arqueólogos europeus foram encontrando traços da presença romana na África – no caso italiano, especialmente na Líbia – mais crescia o conceito da Épica do retorno, título que Massimiliano Munzi, inclusive, deu ao seu livro sobre o tema.

É verdade que nesse processo os conquistadores descobriram “[…] dezenas de milhares de inscrições latinas, ruínas de cidades qualificadas muitas vezes de Pompeias africanas, obras de arte, dentre as quais muitos mosaicos” (LEPELLEY, 2016, p. 421), no entanto, defender, a partir disso, que seria natural à Europa subjugar a África, por conta de uma primeira dominação romana sobre o mesmo território, é quase como sucumbir ao argumento pós-medieval de Portugal, e da Igreja católica, sobre o seu direito natural de escravizar negros e indígenas pois, estes, não eram batizados pelo cristianismo europeu. Assim, de forma semelhante a como ocorreu nos séculos XV e XVI na América, a mesma justificativa para tamanho genocídio, mais uma vez, funcionou. Com isso, os europeus conseguiram, em pleno século XIX, impor seu olhar dominador sobre a África e recolonizar boa parte da região. Segundo o mesmo Lepelley, é possível reproduzir, abaixo, três passagens diferentes que exemplificam isso. Primeiro, Gas Boissier [latinista] em um discurso pronunciado em 1891, no Congresso das Sociétés Savantes, dizia: “aceitemos a herança, senhores […] nós viemos continuar uma grande obra de civilização interrompida durante séculos. […] Nós retomamos a posse de um antigo domínio, e esses velhos monumentos diante dos quais o árabe não passa sem um sentimento de respeito e de espanto [!], são precisamente nossos títulos de propriedade”. (LEPELLEY, 2016, p. 421)

Discurso semelhantes a outros franceses contemporâneos, como podemos observar abaixo, ainda segundo Lepelley, na introdução de seu grande livro sobre O exército romano da África, publicado originalmente em 1892, René Cagnat escrevia: “Nós podemos, portanto, sem medo comparar nossa ocupação da Argélia e da Tunísia àquela das mesmas províncias africanas pelos Romanos. Como eles, nós conquistamos gloriosamente a região, como eles, nós asseguramos a ocupação, como eles, nós tentamos transformá-la à nossa imagem e ganhá-la para a civilização”. (LEPELLEY, 2016, p. 421)

Se não essencialmente absurdo, ao menos para um olhar contemporâneo – assim esperamos, embora a extrema-direita esteja ai para nos mostrar que absurdos passaram a ser reproduzidos como normalidade –, tudo pode ficar ainda mais assombroso se olharmos para a Itália que, por sua vez, ainda mais que a França, se via herdeira direta das conquistas romanas e, portanto, se via também ainda mais no direito de reivindicar o território da Líbia, em 1911. Seguimos com Lepelley para chegarmos a Massimiliano Munzi, que lançou um livro, em 2001, intitulado L’epica del retorno: archeologia e politica nella Tripolitania italiana (Tradução: A épica do retorno: arqueologia e política na Tripolitânia italiana), no qual ele nos descreve a reprodução de um desenho publicado no mesmo ano da conquista da Líbia. A descrição deste desenho esclarecedor sobre o sentimento europeu – nesse caso, sobretudo, italiano – de posse sobre a África é a seguinte: “Um marinheiro italiano, tendo acabado de desembarcar, encontra na areia o esqueleto de um soldado romano, ainda conservando todo o seu equipamento: seu capacete, seu escudo, sua couraça, seus calçados. O marinheiro recupera o gládio do soldado e a legenda proclama: L’Italia brandisce la spade dell’antica Roma (Tradução: A Itália brande a espada da antiga Roma).” (LEPELLEY, 2016, p. 422)

Assim, percebemos o quanto, mais uma vez na história, se reproduziu e ainda se reproduz uma Roma expansionista na forma de uma Europa moderna, que para suas colônias leva suas línguas latinas, culturas civilizadas, engenharias sofisticadas, produtos tecnológicos e demais conceitos liberais em troca das matérias primas – ah, o ouro negro! –, commodities e produtos manufaturados que países africanos, asiáticos e sul-americanos poderiam – e deveriam – fornecer. Para esta historiografia, portanto, a romanização – percebamos que a grafia da palavra, ironicamente, quase nos leva a ler “romantização” – africana estava marcada por uma bipolaridade constituída por “nativos e bárbaros” versus “romanos e civilizados”. Mais uma vez, nada muito diferente de como se deu a colonização das Américas por portugueses, espanhóis, ingleses, holandeses, belgas e franceses, a partir do século XV ou, ainda mais recentemente, a exploração do território africano subsaariano a partir do século XIX. No entanto, finalmente, esse olhar historiográfico eurocêntrico, parece, começou a ser contestado. “[…] a partir de meados do século XX, com o surgimento de movimentos de independência afro-asiática, a produção historiográfica desenvolveu um novo viés, uma perspectiva pós-colonial, que resgatou a pluralidade e o dinamismo dos elementos nativos, demonstrando uma sensibilidade para a singular hibridez das experiências histórico-culturais”. (BUSTAMANTE, 2012, p. 3)

Este movimento pós-colonial é complexo e não se fecha em si. Muitas são as causas para que isso passasse a ser possível e incontáveis são as consequências que decorrem desse novo olhar sobre uma história que, por séculos, nos foi simplesmente dada e, por nós, americanos do Sul, africanos e asiáticos apenas reproduzida. Embora possamos apontar algumas possibilidades, não cabe em um artigo como este aprofundar questões tão complexas como o decolonialismo ou, até, a nova configuração econômica e geopolítica que tenta deslocar o foco do Atlântico Norte para o Pacífico e o Sul Global. Por isso, voltemos à Antiguidade e à expansão romana sobre a África nos séculos III e II a.C., quando Cartago foi tomada por Roma e, assim, esta obteve a hegemonia sobre o Mediterrâneo. Foi desse modo que Roma pôde, amparada também pelas relações de comércio que ocorreram através do Mediterrâneo, espalhar a cultura helenística para outros território até então ainda virgens da influência romana. Nesse sentido, embora essencialmente estruturalista, Thomas J. Barfield diz que a construção da estrutura de um governo imperial se dá através de um complexo processo que está baseado em cinco características principais: “1) a existência de um sistema administrativo para explorar a diversidade, seja econômica, política, religiosa ou étnica; […] 2) estabelecimento de um sistema de transporte destinado a servir ao centro imperial militar e economicamente; […] 3) criação de um sofisticado sistema de comunicação, que permita administrar diretamente do centro todas as áreas submetidas; […] 4) manutenção do monopólio de força dentro do território imperial e sua projeção frente às regiões externas; […] 5) construção de um “projeto imperial” que impõe certa unidade através do império”. (MENDES, BUSTAMANTE, DAVIDSON, 2009, p. 20-21)

Dessa forma, segundo os autores, é importante focar a interação das redes de poder entre as elites locais e imperiais, levando em conta a importância de um sistema de deslocamento de pessoas e mercadorias que permita ao centro imperial manter o trânsito político, militar e administrativo com suas colônias, bem como o fluxo da informação. Assim, é preciso também definir e gerenciar as linhas limítrofes do império, algumas vezes mediante imposição militar, noutras através da diplomacia político-cultural, algo essencial, inclusive, para a sobrevivência de um império que está essencialmente amparado no compartilhamento de valores centrais sobre os periféricos os quais, por sua vez, nunca serão subjugados na sua totalidade e, portanto, demandam um certa flexibilidade para que possam, invariavelmente, serem assimilados pelas culturas periféricas.

Esses elementos, podem parar para pensar, estão presentes no Império Romano, Inca, Asteca, Português, Espanhol, Norte Americano e foi exatamente o que ocorreu com Roma a partir da sua primeira conquista africana. Segundo Sant’Anna (2015), “O território cartaginês, fundado como parte do movimento colonizador fenício, ocorrido entre os séculos IX e VI a.C., compreendia, na época da Primeira Guerra Púnica, o norte da África, a porção oeste da Sicília, a Sardenha e parte da Hispânia.” (2015, p. 48). A importância dessas conquistas, portanto, sobrepõe as questões militares, uma vez que é a partir de então que Roma vai virar a chave em relação a sua própria história. Basta lembrar que até a segunda metade do século III a.C., segundo Mitchell (1971), citado por Sant’Anna, “[…] Roma praticamente não possuía experiência em diplomacia, sendo ainda um poder agrário sem grandes interesses fora de seus limites territoriais.” (2015, p. 49). Tudo vai mudar a partir de Cartago mas, não sejamos ingênuos, afinal, Roma já era consciente sobre a força do território cartaginês que, para muito além da Líbia, dominava parte da Hispânia e da Sardenha e avançava, perigosamente, sobre a Sicília, constituindo-se, assim, em um vizinho perigoso que, cada vez mais, cercava a República por todos os cantos da península. Além de dominar muito melhor que os romanos a arte da navegação. Dessa forma, o ataque se mostrou a melhor defesa e Roma precisou avançar sobre os enclaves cartagineses na Sicília, uma decisão que garantiu a presença romana sobre a África por aproximadamente oito séculos. Por isso, podemos afirmar que “[…] a África romana começa em 146 a.C., quando a República anexou o norte da atual Tunísia, após ter destruído Cartago e ela termina quando da tomada da mesma cidade de Cartago pelos conquistadores árabes muçulmanos, em 698 […] Trata-se, portanto, de uma longuíssima história”. (LEPELLEY, 2016, p. 434).

Apesar da brutalidade e irracionalidade que envolve todas as guerras, é fato que estas também significam períodos de inovações tecnológicas. Não foi diferente com Roma que, desde a Primeira Guerra Púnica, se viu obrigada a repensar suas estratégias de combate, bem como sua tecnologia bélica. Nesse movimento, os gregos foram importantes na transmissão de conhecimento náutico, uma vez que, ao menos na primeira Guerra, batalhas significantes foram travada no mar, ambiente que os cartagineses demonstravam excelência e superioridade em relação aos romanos. Desde então, até o encerramento dos conflitos, com a conquista romana sobre Cartago e a destruição total da cidade, se passaram longos anos de guerra e paz que tiveram, como cenário, inúmeros terrenos na Europa, no Oriente Médio, no Norte da África e no próprio Mediterrâneo, e envolveram diversas frentes de batalha que, nem sempre, estavam associadas diretamente aos cartagineses. Uma espécie de guerra mundial, se levarmos em conta o mundo conhecido por estes povos naquela época.

Então, em 146 a.C., um exército liderado por Cipião finalizou um cerco de três anos sobre a cidade africana e, finalmente, conforme relato de Sant’Anna, citando Políbio, Diodoro e Apiano, a “civilização” da qual a historiografia europeia dos séculos XIX e início do XX enaltecia, vence a barbárie da seguinte forma: “[…] tudo se resumia, nas palavras de Apino (8. 128-135), “a gritos de dor, lamento e sofrimento de todos os tipos”. Logo o fogo se espalhou e consumiu a cidade, auxiliado pelo trabalho dos legionários romanos, que destruíram os edifícios de uma vez, e não aos poucos, fazendo com que muitas construções cedessem com suas estruturas de pedra sobre os habitantes. Muitos foram vistos, ainda, com vida, feridos ou queimados em maior ou menos escala, emitindo gemidos terríveis. Apiano acrescenta, ainda, que outros caíram de lugares altos em meio ao fogo, pedras e madeira, terminando esfacelados nas mais horríveis formas, esmagados ou mutilados. Cadáveres foram usados para tapar fossos, permitindo, assim, a passagem das tropas. Diz-se que alguns foram arremessados nos fossos de ponta-cabeça e outros de cabeça para cima, tendo seus crânios destroçados por cavalos durante a travessia, pois funcionavam como ponte humana. Tamanho horror persistiu por seis dias e seis noites, até que, no sétimo dia, um grupo de suplicantes apareceu diante de Cipião e o convenceu a poupar as vidas daqueles que, protegidos na cidadela, concordassem em deixar Cartago para sempre. Mais de cinquenta mil homens e mulheres deixaram a cidade sob a guarda do exército romano. Cartago estava completamente arrasada. […] Encerrado o cerco, o território cartaginês transformou-se na província da África”. (SANT’ANNA, 2015, p. 70-71).

Paul Valéry escreveu que a História não pode ser separada do historiador pois este busca, sempre, compreender o presente, e a si mesmo, através do conhecimento sobre o passado. Portanto, historiador e História estão ligados umbilicalmente. Tal afirmação, inclusive, me faz pensar sobre o quanto estou eu, nesse momento, realizando essa reflexão e escrevendo esse texto, dissociado – ou não – do evento militar que envolve Israel e Faixa de Gaza às vésperas do Natal do ano de 2023. Uma vez assinalada tal desconfiança pessoal em relação a minha pretensa neutralidade no tema, retorno ao fluxo do pensamento aqui apresentado para afirmar que é nesse sentido assinalado por Valéry, de certa forma, que podemos perceber o quanto o Norte da África é uma região extremamente importante para compreendermos a Europa atual e, em consequência, a própria influência deste continente sobre todos os territórios por ela colonizados. Uma vez que a relação entre Europa e África, a exemplo da própria fluidez das águas do Mediterrâneo, não se deu unilateralmente, é preciso levarmos em conta que parte do continente europeu sofreu forte domínio africano, principalmente árabe. Isso se dá hoje, mediante a imigração muçulmana – embora nem todo árabe siga o Islamismo – das ex-colônias para países como a França e Itália, por exemplo, mas também já havia ocorrido no passado quando, após a queda – alguns historiadores preferem o termo “transformação” – do Império Romano, ao longo dos anos 700 e 1500, boa parte da península Ibérica esteve sob domínio dos mouros e, estes, por sua vez, tiveram participação direta ou indireta na história das mesmas navegações que vieram a descobrir e colonizar as américas a partir de portugueses e espanhóis.

Quer dizer, de certa forma poderíamos estabelecer uma linha histórica entre o Brasil, encontrado por portugueses apenas em 1500, com o mesmo Império Romano que, por séculos, dominou e impôs sua visão de mundo sobre os povos do Norte da África os quais, por sua vez, séculos depois, marcaram presença, sobretudo, na região da Andaluzia. Por isso, seguindo no raciocínio de Paul Valéry, olhar para a Antiguidade desde hoje é perceber, também, o quanto o presente está contaminado por esse passado. Ao mesmo tempo, e por outro lado, esse mesmo processo de islamização que marcou a ciência, a arte e a cultura da península Ibérica – e repercutiu na América pós-Colombo – na África do Norte, por sua vez, significou uma ruptura com a cultura europeia-romana. Ao menos no sentido que Lepelley traz para o debate ao afirmar que “os países do Magreb [ou Magrebe, no português] são geograficamente muito próximos da Europa mediterrânica. No entanto, a conquista árabe e a islamização, a partir do século VII, fizeram dessas terras um mundo muito diferente: um profundo fosso cultural, religioso, político foi cruzado, fosso que não existia na Antiguidade”. (LEPELLEY, 2016, p. 420)

Mesmo assim, em essência, percebe-se que há uma histórica interrelação cultural entre o Norte da África e a Europa Ocidental e, embora essa relação ora penda mais para um lado do Mediterrâneo, ora penda para o outro, é fato que o eurocentrismo domina – ou dominou, por séculos – a narrativa historiográfica sobre suas colônias. Por exemplo, muito se tentou associar o berbere a uma espécie de maldição anticivilizatória que denotaria uma dupla incapacidade deste povo, tanto no sentido de fazer nascer uma verdadeira civilização a partir das suas práticas tribais – e, portanto, sair da pré-história –, em nome da constituição de um verdadeiro Estado estruturado em políticas elaboradas, refletindo as experiências europeias, bem como, por conta disso, padecer permanentemente frente o domínio estrangeiro que, por sua vez, lhes imporia suas civilizações.

Tal visão de mundo, como sabemos e foi possível perceber ao longo deste texto, não é uma exceção. A historiografia mundial – e em especial, a ocidental – está impregnada de um olhar eurocentrista que precisa ser descontruído até por uma questão de justiça histórica. Sobre a África, por exemplo, estamos falando do continente onde surgiu o ser humano e onde se desenvolveu algumas das civilizações mais prósperas e importantes da antiguidade. Desde os fenícios, passando pelos egípcios e até levando em conta o caldeirão cultural do Oriente Médio, onde surgiram três das principais religiões que influenciam milhões de pessoas no mundo contemporâneo, a África é um caldeirão cultural que precisa ser melhor estudado. E estudado afetuosamente. Não é por acaso que Roma avançou, o máximo que pôde, sobre o referido continente.

A África, inclusive para além dos próprios romanos, sempre foi importante para os europeus por inúmeros motivos. Alexandria, no Egito, por exemplo, era tão admirada pelos latinos que foi da dinastia Ptolomeu que os romanos copiaram o modelo de administração. “[…] concebido como uma espécie de vasta propriedade privada em que a receita era globalmente administrada pela coroa. Em pouco tempo esta exploração converteu-se no ponto de partida preconizada por Augusto para o Egito […] lembrando que a ovelha deveria ser tosquiada, mas não esfolada”. (DONADONI in MOKHTAR, 1983, p. 192-193). Mas não só romanos, uma vez que a cidade fundada por Alexandre Magno, em 332 a.C., era uma espécie de Nova Iorque da Antiguidade. Naquele espaço cosmopolita conviviam romanos, gregos, fenícios, egípcios, judeus, cristãos, a partir do Cristianismo, enfim, uma verdadeira profusão cultural que ajuda a explicar, inclusive, a magnitude da famosa biblioteca de Alexandria.

Em relação a aproximação entre egípcios e romanos, é preciso lembrar que a relação do Egito com o Império era, sim, diferenciada. Havia algumas liberdades concedidas aos egípcios que não eram permitidas aos demais territórios. Um bom exemplo pode ser o calendário que, no Egito, era contado a partir do reinado dos imperadores egípcios e não dos cônsules romanos em exercício. Roma via o Egito como o “celeiro do Império” mas, por outro lado, isso não garantiu uma contrapartida substancial ao comércio entre ambos territórios. Havia a complacência romana sobre o Egito, é verdade, mas ainda assim se tratava de uma relação de exploração e, portanto, unilateral e definida por Roma. No geral, no entanto, essa relação era relativamente tranquila. Houve o cerco à Jerusalém, a Guerra dos Judeus em Alexandria mas, à exceção desses eventos, todos os primeiros séculos do Império foram relativamente tranquilos na região, ao ponto de Trajano reduzir as legiões estacionadas sobre o território africano e de Adriano, seu sucessor, se dar ao luxo – e curiosidade – de mergulhar nas paisagens, cultura e história egípcia.

A partir do século II, no entanto, a condição de “celeiro do Império” foi transferida para os território da região do Magrebe. As terras do Egito estavam exauridas e os agricultores, na impossibilidade de pagarem os altos impostos aos romanos, fugiram para o deserto. Essa crise agrária, contudo, já estava em sintonia com o enfraquecimento e a transformação do Império Romano ocidental, a ascendente influencia o Império Romano do Oriente, a partir de Constantino, sobre o Egito, bem como o fortalecimento do cristianismo que, em especial em Alexandria, vai se encontrar com a filosofia grega. “Em Alexandria o cristianismo assumiu, desde muito cedo e por um processo normal de desenvolvimento, um caráter acentuadamente diferente do cristianismo do resto do país. A cultura grega, de que a cidade estava impregnada, manifestava-se até mesmo na maneira com que a nova religião foi recebida. A mudança para o cristianismo tomou forma não de um ato revolucionário, mas de uma tentativa de justificar determinados conceitos novos e integra-los no amplo quadro da filosofia e da filologia da Antiguidade”. (DONADONI in MOKHTAR, 1983, p. 208)

A complexidade das relações culturais que influenciarão o Egito, o Império Bizantino e a transição do cristianismo para o islamismo, no entanto, demanda outro artigo. Nos cabe pensar, aqui, no deslocamento agrícola que ocorre para a região do Magrebe que, por séculos, teve Cartago como principal ponto de referencia desde quando os primeiros colonos oriundos da Fenícia lá desembarcaram. Assim, ao retomar a relação de Cartago com Roma, é importante explicar que a denominação da cidade se origina no nome fenício Kart Hadasht, que significa “cidade nova”. Embora não haja resquícios suficientes para tal afirmação, muitos historiadores deduzem que Cartago teria sido, desde o princípio, destinada a ser a principal colônia dos fenícios no Ocidente. “No século VI antes da era cristã, Cartago tornou-se autônoma e passou a exercer supremacia sobre as outras povoações fenícias do Ocidente, assumindo a liderança de um império na África do Norte, cuja criação teria profundas repercussões na história de todos os povos do Mediterrâneo ocidental. Tal evolução foi favorecida principalmente pelo enfraquecimento do poder de Tiro e da Fenícia – a metrópole – que caíram sob o jugo do Império Babilônico”. (WARMINGTON in MOKHTAR, 1983, p. 452)

Desde então, Cartago cresceu em importância e influencia e rivalizou, disputando os territórios da Sicília e Sardenha, com os gregos, num primeiro momento, assim como, mais tarde, também com os romanos. Para ambos, gregos e romanos, ninguém comercializava melhor que os cartagineses que, por sua vez, haviam se transformado em exímios negociantes e contribuído para tornar a sua cidade, consequentemente, na mais rica do Mediterrâneo. Cartago e Roma tinham acordos de paz deste 508 a.C., quando a cidade etrusco-latina era ainda uma comunidade de tamanho médio. No entanto, nem um novo acordo, firmado em 348 a.C., foi suficiente para segurar uma Roma já bem mais poderosa que, nas décadas seguintes, acabou por entrar em um conflito com Cartago, que conforme já vimos anterior, repercutiu em outras duas guerras e teve, por encerramento, a total destruição da cidade africana. Mesmo assim, a resistência do povo subjugado se manteve ao longo de séculos, conforme podemos ler em Warmington: “[…] foi necessário esperar mais de um século até que Roma suplantasse realmente Cartago enquanto potencia política e cultural dominante no Magreb. Por diversas razões os romanos apropriaram-se de uma pequena parte do nordeste da Tunísia, após a destruição de Cartago, e mesmo assim não se ocuparam mais desse território. No restante da África do Norte, Roma reconheceu uma série de reinos vassalos, que de maneira geral conservaram sua própria autonomia”. (WARMINGTON in MOKHTAR, 1983, p. 469)

Por conta da prosperidade que territórios como a Numídia e Mauritânia viveram nesse período, bem como a relação com a língua fenícia, em uma versão mais contemporânea tida como neopúnica e, principalmente, por receber sobreviventes cartagineses, a influência cultural de Cartago, mesmo após completamente destruída, perdurou por muito tempo. Somente em 44 d.C. a Mauritânia foi dividida em duas províncias e toda a região do Magrebe foi plenamente dominada por Roma. A partir desse período, então, mais ou menos em 40 d.C., o líbio e neopúnico, embora ainda utilizados oralmente, foram finalmente substituídos pelo latim como língua escrita. Estava se dando a transformação que retiraria parte da influencia fenícia da região que, desde muito antes dos etruscos, havia marcado a entrada do Magrebe na história do Mediterrâneo e estreitado laços comerciais e culturais com a costa norte e leste, para um novo capítulo que colocava toda a região sob influencia do Império Romano. Influencia, esta, que duraria até a invasão vândala sobre Roma e, também, no Norte da África.

Entretanto, todo esse período marcado por conquistas romanas em território africano, desde a queda de Cartago, não foi obtido de forma tranquila ou pacífica. Embora existam poucos registros dessa fase da história africana, é possível afirmar, segundo Mahjoubi (1983), que Roma sofreu muita resistência. Ao mesmo tempo, conforme já observado anteriormente, também é preciso levar em conta que tudo que sabemos sobre essa eventual resistência é relatado por fontes literárias ou epigráficas, segundo o ponto de vista romano, e analisadas de forma ainda mais imprecisa por uma historiografia europeia do início do século passado. Mesmo assim, é possível afirmar que as guerras de resistência que ocorreram mais ao sul da região dominada por Roma num primeiro momento, envolveram desde a Tripolitânia até a Mauritânia. Mais uma vez, então, pesa o fato de essas guerras serem apresentadas pelos historiadores como luta entre a civilização e o mundo bárbaro. Tribos nômades do deserto lutando para evitar o avanço da civilização e, portanto, dessa forma, ignobilmente, também negando os benefícios de uma forma “superior de cultura”.

No entanto, levando em conta a descrição de como se deu a chegada dos romanos à região, é possível não apenas compreender a resistência como, inclusive, relativizar quem eram os civilizados e quem eram os bárbaros nessa disputa bélica. “Os campos dos Númidas sedentários tinham sido devastados. As áreas tradicionalmente percorridas pelos nômades eram constantemente reduzidas e limitadas. Os veteranos e outros colonos romanos e italianos instalavam-se por toda parte, a começar pelas regiões mais ricas do país. Companhias coletoras de impostos e membros da aristocracia romana, senadores e cavaleiros, aproximavam-se de vastos domínios. Enquanto seu país era assim explorado, todos os autóctones nômades e todos os habitantes sedentários que não viviam nas raras cidades poupadas pelas sucessivas guerras e pelas expropriações foram reduzidos a uma condição miserável ou expulsos para as estepes e para o deserto. Portanto, sua única esperança era a resistência armada e seu principal objetivo a recuperação das suas terras.” (MAHJOUBI in MOKHTAR, 1983, p. 475)

Finalmente, mais ou menos no ano 100 d.C., os romanos fundaram a colônia de Timgad e criou-se uma zona fronteiriça formada por uma rede de 50 a 100 quilômetros, progressivamente deslocada para o sudoeste, composta por trincheiras e defendida por postos militares permanentes. Mesmo assim, Roma nunca conseguiu subjugar os berberes que, se utilizando de camelos, se deslocavam como facilidade e rapidez pelo sul e oeste do Saara. Numa nova tentativa de dominar completamente a região, o romanos criaram os assentamentos – limitanei –, formados por soldados-camponeses, para os quais eram distribuídas terras ao longo da fronteira. Esses soldados-camponeses não pagavam impostos mas, em contrapartida, deles se esperava a proteção dos limes. De forma semelhante a como ocorreu, também, ao longo das fronteiras Norte do Império, esses limites impostos pelo Estado, e efetuados por famílias que se viam abandonadas no meio do nada, mais do que separar as terras que pertenciam à Roma da região livre dos berberes, acabou por tornar-se uma área de intensos contatos comerciais e culturais. Ainda antes do Império, as primeiras experiências de colonizações propostas por Caio Graco, por meio da lex rubia, em 123 a.C., são um bom exemplo de como o projeto nasceu fracassado. Conforme sabemos, devido a questões políticas e motivos econômicos, Graco não foi feliz na sua tentativa de “reforma agrária” e os colonos para lá deslocados acabaram escravizados por senadores e cavaleiros que tomaram, para si, as terras dos assentados. Apenas a partir de Otávio Augusto, retomando os planos do pai adotivos, Júlio César, é que houve algum progresso nas relações entre Roma e suas províncias africanas. “De acordo com uma lista fornecida por Plínio, cujas fontes ainda suscitam controvérsias, em pouco tempo havia seis colônias romanas, quinze oppida, civium romanorum, um oppidium latinum, um oppidium immune e trinta oppida libera.” (MAHJOUBI in MOKHTAR, 1983, p. 485)

Em 212, por conta da Constituio Antonina, os diversos grupos que constituíam o Império Romano na África, com exceção aos escravizados, foram incorporados como cidadãos. Nesse momento a sociedade era dividida, conforme a língua e costumes, em três grandes grupos formados por 1) romanos ou italianos imigrantes, 2) cartagineses e líbios sedentário e, por fim, 3) líbios nômades. Essa integração, aos poucos, também permitiu a ascensão desses novos cidadãos à política romana. O primeiro senador africano veio de Circa e viveu no tempo de Vespasiano mas, um século mais tarde, a África já contava com 170 senadores, constituindo o segundo maior grupo político depois dos italianos. O mesmo ocorreu com os militares que integravam as legiões romanas, evidenciando o quanto a conquista do Norte da África fora importante para toda a manutenção do Império. O próprio Tácito (1952), em seus Anais, relata o recrutamento massivo de africanos após a Campânia e, posteriormente, Roma, serem devastadas por uma epidemia tão colérica que todas as casas relatavam a incidência da morte enquanto, nas ruas, só se via enterros. “Não escapava deste perigo nem sexo nem idade; escravos e cidadãos desapareciam em um instante entre os lamentos de suas mulheres e seus filhos que, ao mesmo passo que choravam a seus maridos e seu pais, já tocados pelo mal, eram muitas vezes conduzidos à mesma fogueira […] Nesse mesmo ano se fizeram recrutamentos na Gália Narbonense, na África e na Ásia para completar as legiões da Ilíria, das quais muitos soldados, ou por doentes ou por velhos, iam recebendo suas baixas.” (TÁCITO, 1952, p. 433)

Fica claro, portanto, que a África era uma fonte inesgotável de recursos de todo o tipo. Pudera, alguns historiadores falam em uma população urbana próxima de 4 milhões de pessoas. Portanto, subjugando a África, Roma contava com milhares de soldados, agricultores, artesãos e comerciantes com quem podia compartilhar experiências mas, sobretudo, recrutar soldados para suas legiões, obter produtos agrícolas e artesanais, além de recolher impostos. Na região, os principais produtos econômicos eram oriundos do cultivo de cereais, da manufatura da azeitona para retirar o azeite, bem como a produção de cerâmicas, também para sua utilização no estoque e transporte deste azeite. Mas, por outro lado, com o domínio romano muitos produtos foram proibidos e pararam de ser produzidos em terras africanas e passaram a ser importados da Europa, o que refletia uma balança comercial cômoda para Roma e deixava as províncias sempre em situação comercial desfavorável. Por fim, alguns produtos que não se encontrava na Europa tiveram seu comércio facilitado através das novas fronteiras do Império na África. Nesse sentido, os países forneciam ouro, através de várias rotas que ligavam a minas da Guiné às praias do Mediterrâneo, esmeraldas e pedras preciosas, animais exóticos e até escravizados negros da África subsaariana. Em contrapartida, Roma pagava a conta através do fornecimento de vinhos, objetos de metal e vidro, além de cerâmicas e têxteis, todos produtos com valor agregado.

É bem verdade que, numa relação entre dominantes e dominados, a balança comercial sempre vai pesar mais para um lado mas, mesmo que isso seja um fato, também é preciso levar em conta que não se trata, apenas, de uma relação unilateral entre civilizados versus bárbaros, conforme apontado, nesse texto, inúmeras vezes. “Após ter sido negligenciada durante longo tempo pelos historiadores de Roma, as artes provinciais e as culturas “periféricas” estão, atualmente, no centro das preocupações. Isso se deve a uma compreensão mais clara dos limites da romanização e das diferentes formas que ela assumiu em seus contatos com as sociedades indígenas. Além disso é preciso considerar que a arte de uma determinada província não pode ser dissociada de sua vida econômica, social e religiosa. A propósito, para estudar e apreciar a arte desenvolvida nas províncias africanas durante a dominação romana, tornou-se necessário considerar o persistente substrato líbio-púnico que continuou a existir e a evoluir durante séculos.” (MAHJOUBI in MOKHTAR, 1983, p. 507)

Por esse motivo, é muito importante reconstruir o olhar historiográfico hegemônico, não somente sobre a África, mas em relação aos diversos povos que, por séculos, foram subjugados por europeus e seus herdeiros norte-americanos. O roteiro é sempre o mesmo, a narrativa se renova apenas na troca dos nomes e datas, mas o fato é que o legado imperialista romano não está presente no nosso tempo apenas através das suas maravilhas arquitetônicas, sua contribuição para o Direito ou suas estradas ainda hoje utilizadas para o deslocamento de pessoas e mercadorias. Roma está presente, em nós, sobretudo, por conta do seu legado bélico, voltado à conquista de outros territórios. Não por acaso, a estética do Terceiro Reich, como já mencionado anteriormente, foi fortemente referenciada na Roma Antiga. Por outro lado, Cartago é um bom exemplo de como a resistência de povos e culturas se dá, muitas vezes, inclusive, de forma inconsciente, mesmo quando toda uma cidade ou um país é completamente destruído. E também não há historiografia hegemônica capaz de apagar os resquícios dessa contribuição cultural. Segundo Mahjoubi, “[…] a História costuma distinguir duas culturas na África, uma “oficial”, de caráter romano e outra popular e provincial” (1983, p. 509), no entanto, é fato que muitas vezes, em inúmeros monumentos, de forma semelhante a como ocorre com a arquitetura remanescente, as duas correntes se encontram, se misturam e até se confundem.

Se Thébert afirma que “[…] a integração da África ao mundo romano só intensifica relações já existentes, não as cria.” (2009, p. 298), também é verdade que, segundo G. Charles-Picard, citado por Mahjoubi, a “África deu muito mais a Roma do que recebeu e mostrou-se capaz de fazer frutificar suas influências com um espírito que não é nem da Grécia nem o do levante helenizado.” (1983, p. 509). Portanto, se desde o fim do Império Romano já vimos a história se repetir inúmeras vezes e o enredo parece ser sempre o mesmo, também é verdade que há resistência em todos os sentidos. Tanto militar quanto cultural.

Em vários momentos, ao longo da História, inclusive, os cenários se repetem. Os séculos avançam e lá no Oriente Médio, naquele enclave entre a África, Ásia e Europa, em pleno século XXI, novamente uma potencia militar, dita esclarecida e democrática, tenta riscar um povo, tido como bárbaro, do mapa. A Faixa de Gaza é, hoje, a Cartago de um passado distante. Mas também já foi o Afeganistão e o Iraque de um passado recente. A mesma África explorada por europeus nos séculos XIX, XX e XXI, em busca de diamantes, é a África que forneceu a mão de obra escrava para que a Europa explorasse a América Latina desde o século XVI, e é a mesma África que, como vimos, romanos exploraram num passado tão longínquo que, parece, não nos pertence. Ao mesmo tempo, assim como a história de exploração deste vasto continente, que atravessa séculos mas sempre está nas mãos de algum império de ocasião, também a Roma Antiga repercute diretamente nós, hoje, em pleno século XXI. Mas, também é fato que se a resistência não ocorre através das armas, ela se dá através das ideias. E até para isso é importante revermos esse olhar hegemônico sobre a História. Afinal, se há algo que o estudo da História nos revela é que esta, a História, é uma permanente disputa entre David e Golias. Se nem sempre David vence a briga, quase sempre ele incomoda e, certamente, embora não seja uma Fénix, sempre renasce das cinzas.

Bibliografia CONSULTADA

BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. África do Norte no Império Romano – representações musivas de identidade e alteridade. Anais do XV ERH-ANPUH-RIO, 2012.

LEPELLEY, Claude. Os romano na África ou a África romanizada – arqueologia, colonização e nacionalismo na África do Norte. Revista Heródoto. Unifesp, 2016.

MENDES, Norma Musco; BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha e DAVIDSON, Jorge. História da vida privada – do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne. São Paulo : Companhia das Letras, 2009.

MOKHTAR, G. (coord). A África antiga. São Paulo – Ática : Unesco, 1983

OLIVEIRA, Júlio César Magalhães de. Sociedade e cultura na África romana – oito ensaios e duas traduções. Intermeios, 2020.

SANT’ANNA, Henrique Modanez de. História da República Romana – Petrópolis, RJ : Vozes, 2015.

TÁCITO. Anais – Vol. XXV. São Paulo, SP : Editora Brasileira Ltda, 1952.

VEYNE, Paul (org). História da vida privada I : do Império ao ano mil. São Paulo, SP : Companhia das Letras, 2009.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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por Boca Migotto

A Grécia do século VIII a.C. é um período muito importante para toda a história ocidental. Nessa época, consolidava-se a pólis, quando os gregos passaram a pensar a sociedade como um (relativo) coletivo. Os reis já não existiam.

Embora a Grécia desse período ainda fosse governada por uma aristocracia formada por homens ricos e possuidores de terras, enquanto a maior parte da população era formada por aldeões pobres, é nesse período que teve início um processo político e social que vai resultar, nos séculos VI e V a.C., na pioneira experiência da democracia grega. Aliás, uma experiência que durou pouco menos de cem anos da história de um povo milenar mas que, por sua importância, ajudou a definir os gregos desde então.

Homero viveu nesse período de transformação ao longo do século VIII, quando escreveu a Ilíada e a Odisseia, textos que, por sua vez, remontam aos anos 1300 e 1200 a.C. Portanto, bem antes do seu tempo. Embora os historiadores acreditem que a Ilíada, principalmente, possa ter sido escrita por diversos outros autores, foi Homero quem passou para a história como seu autor. É preciso lembrar, entretanto, que trata-se de um relato que tenta dar conta de acontecimentos ocorridos séculos antes da sua concepção e, portanto, não pode, de forma alguma, ser fiel aos fatos. Mesmo assim, e para além das qualidades artísticas dessas duas obras, bem como sua influência decisiva sobre toda a literatura ocidental que virá a partir dela, ambas obras são importantes, pois permitem aos historiadores tecerem teorias sobre o mundo grego por elas contextualizado e do qual pouco conhecemos. Nesse sentido, se não há fatos para contarmos a História (com H maiúsculo), que tenhamos, ao menos, percepções. Desde que, obviamente, saibamos duvidar de tudo que foi escrito.

A Ilíada trata da famosa Guerra de Tróia, quando esta cidade é sitiada pelos gregos que buscam resgatar Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta. Tudo tem início por obra dos deuses, o que denota a importância destes para a cosmovisão grega e, em particular, para os textos homéricos. Segundo conta a mitologia, a guerra teria iniciado quando Éris, deusa da discórdia, ofereceu uma maçã de ouro à Hera, Afrodite e Atena. Zeus, por sua vez, ordena que Páris escolha qual das três mulheres seria merecedora do presente. Na disputa Páris recebeu três ofertas. Foi tentado por Hera, que lhe ofereceu poder, Atena, que lhe teria oferecido sabedoria e Afrodite, que ofereceu ao príncipe de Tróia “a jovem mais linda do mundo”, Helena. Páris decidiu por Afrodite e, assim, Helena por ele se apaixonou. Para viverem o amor, no entanto, decidiram fugir para Tróia e dessa forma teve inicio o cerco à cidade, organizado por Menelau, marido de Helena. A guerra duraria dez anos e acabaria apenas quando os gregos penetram os muros da cidade escondidos dentro de um cavalo de madeira. Os personagens da Guerra de Tróia são míticos, não existiram. Mas, apesar disso, tanto a Ilíada quanto a Odisseia, são repletas de valores, características e relações diretas com o povo grego. Assim, na falta de fatos, os elementos por trás das lendas permitem, aos historiadores modernos, ao menos, conjecturarem minimamente essa sociedade.

Na Ilíada, por exemplo, está muito clara a importância que os gregos davam à morte com glória, também chamada de “bela morte”.

Aquiles e Ajax, heróis gregos, a desejam sobretudo, pois esta faz o herói e tem o poder de perpetuá-lo, na história, mesmo após sua morte. Já a Odisseia trata do retorno de um dos heróis gregos, Ulisses – ou Odisseu – para sua terra, Ítaca, após o término do conflito. Se a Ilíada dá conta da guerra, da bravura de incontáveis heróis, e pouco se aproxima do universo das artes – na Ilíada, por exemplo, Aquiles é o único personagem que canta – na Odisseia, por sua vez, os aedos se multiplicam – o próprio Ulisses é um aedo que canta suas aventuras – e a figura do homem, ao contrário dos grandes eventos, é posta no centro da narrativa humanizando, dessa forma, a própria narrativa. Talvez por isso, de certa forma, a Odisseia também é percebida como uma espécie de ironia ou crítica sobre alguns valores expressos na Ilíada, entre eles, a incansável busca pela glória.

Nesse sentido, é digno de nota o encontro de Odisseu com Aquiles no “inferno”, quando o principal herói grego diz a Ulisses que “(…) preferia estar na terra, como servo de outro, até de homem sem terra e sem sustento, do que reinar aqui sobre os mortos”. Ou seja, o mesmo Aquiles, que na Ilíada tanto desejou a “bela morte” para perpetuar-se no tempo, se vê, agora na Odisseia, preso a um ambiente de dor e sofrimento que o faz repensar sua própria condição de herói quando no mundo terreno. Presente, passado e até um futuro imaginado estão nos textos que expõem, sobretudo, as diversas temporalidades perceptíveis em uma obra escrita séculos após os fatos narrados. É preciso assinalar que os poemas homéricos tratam de um universo construído a partir dos valores gregos daquele período, em uma época muito anterior a Cristo e a construção de conceitos como a culpa, o pecado, a fraternidade e o zelo pelo próximo. Dessa forma, os heróis homéricos podem nos parecer um tanto contraditórios se comparados aos valores contemporâneos. O próprio Ulisses não era um homem bonito, “mais parecia um trabalhador ou marinheiro, por conta da sua pele marcada pelo sol e pelo sal do mar, e seu corpo era atarracado.” Bem longe da descrição de um Kirk Douglas, por exemplo, que vive Ulisses no filme homônimo de 1954, dirigido por Mario Camerini e Mario Brava. No mesmo sentido dessa contradição, Ulisses se descreve como um guerreiro que provoca o dolo, sequestra as mulheres, subjuga e saqueia as cidades. Portanto, a partir do nosso olhar contemporâneo, Ulisses estaria mais para um bandido do que para um herói cinematográfico.

A obra de Homero nos fala de outro tempo e de outra época e, apesar de todas suas imprecisões temporais e fictícias, nos ajuda a compreender esse universo que remonta a mais de três mil anos.

Qual a relação que podemos estabelecer entre o universo de Homero com a concepção sobre o herói, a visão sobre a morte, a relação entre a aristocracia guerreira e o papel social da mulher nessa sociedade e nesse período? Os cantos IX e XI da Odisseia nos trazem algumas pistas para que possamos perceber melhor essa Grécia antiga. No canto IX, Ulisses relata ao rei Alcino os acontecimentos vividos por ele e seus companheiros desde o fim da guerra, uma vez que, por mais dez anos, o herói vaga pelo Mediterrâneo antes de reencontrar Ítaca, a ilha da qual era rei. Nesse canto, portanto, é narrado alguns dos encontros ocorridos, ao longo dessa década, com personagens míticos que ele encontra pelo caminho como os cícones, os lotófagos e, sobretudo, com os ciclopes. Já o canto XI trata da ida de Ulisses ao reino dos mortos, onde ele se encontrará com o maior sábio de todos os tempos, de quem receberá previsões sobre seu retorno à sua ilha, bem como com outros personagens da Ilíada, como o próprio Aquiles. Nesse “inferno” há uma certa hierarquia, mas também a igualdade entre os mortos, e através dele é possível refletir melhor sobre o significado da morte para os gregos, bem como compreender a importância dos ritos fúnebres do período em questão, que estão sustentados, sobretudo, na necessidade de se cremar os corpos para que a fumaça possa reintegrar os corpos ao cosmos original. Este também seria o canto que melhor expressa o pensamento grego sobre as mulheres, quase sempre subjugadas e apagadas da história pela presença masculina.

Ao longo de diversas partes do canto XI da Odisseia, por exemplo, quase toda vez quando uma mulher é apresentada, seu nome vem respaldado por um homem. Algo que fica claro, indubitavelmente, quando, no “inferno”, Ulisses diz que viu “(…) Clóris, que outrora Neleu desposou por causa da sua beleza” (XI-270), ou diz que viu “(…) Leda, esposa de Tíndaro” (XI-280) ou, ainda, “(…) Fedra e Prócis e a bela Ariadne, filha de Minos (XI-320). Mesmo quando as mulheres não são adjetivadas pejorativamente ou culpadas por alguma tragédia, elas pertencem a algum homem e são tratadas com desconfiança e desdém, como também exemplifica essa passagem do mesmo canto XI da Odisseia: “(…) nunca sejas amável com a tua mulher, não lhe declares todo o pensamento que tiveres, mas diz-lhe só alguma coisa, ocultando o resto.”.

Algumas leituras mais contemporâneas até tentam refletir sobre o fato de que as mulheres gregas, talvez, não tenham sido assim tão submissas e compensassem sua aparente condição subalterna com algum ardil, uma característica, aliás, que os gregos valorizavam. É possível. Afinal, desde muito antes dos gregos a inteligência é a única arma que pode fazer frente à força. Mas mesmo que isso seja um fato, não há perspicácia que dê conta de todo um sistema constituído a partir do universo masculino e isso fica bastante claro através dos textos homéricos. De qualquer forma, mais por mérito próprio do que benevolência ou lucidez masculina, algumas mulheres que aparecem na Odisseia, e talvez a principal seja Penélope, esposa de Ulisses, possam até ser percebidas sob outra ótica que as coloca num papel menos submisso. E, para isso, sem sombra de dúvida, o ardil é uma característica necessária para as mulheres sobreviverem nesse ambiente tão desfavorável.

Ardil, este, que é preciso ressaltar, ao menos para os homens, era percebido como algo positivo, uma característica essencialmente humana.

O próprio Ulisses, quando encontra o ciclope Polifemo, se mostra ardiloso e mente para o monstro que o prende, a ele e seus companheiros, em sua gruta. É a manipulação de Ulisses que vai salvá-los da morte quando o herói convence Polifemo a beber o vinho para, em troca, poupar-lhe a vida. O ciclope aceita a bebida e se delicia com o néctar, mas Ulisses e seus companheiros já haviam preparado uma armadilha para quando ele dormisse, embriagado pelo efeito do álcool. Assim, quando Polifemo pega no sono, tem seu olho perfurado por uma lança que Ulisses e seus homens haviam preparado para esse fim e, assim, conseguem escapar da caverna onde estavam presos. O detalhe quase cômico nessa passagem, que aparece no canto IX da Odisseia, no entanto, é a conversa que Ulisses mantém com o ciclope quando este bebe o vinho. Polifemo pergunta a Ulisses qual seu nome e este lhe diz que se chama “Ninguém”. “Ninguém é como me chamo. Ninguém chama-me a minha mãe, o meu pai, e todos os meus companheiros”. Após ter seu olho furado pela lança, e portando, cego e se debatendo em dor, o impiedoso Polifemo grita que foi cegado. Outros ciclopes, do lado de fora, acordam e o acodem, sem no entanto entrarem na sua caverna. De pé, do lado de fora, perguntam: “Que passa Polifemo, para gritares desse modo na noite imoral, tirando-nos assim o sono? Será que algum homem mortal te leva os rebanhos, ou te mata pelo dolo e pela violência?”. De dentro da caverna, Polifemo responde; “Ó amigos, Ninguém me mata pelo dolo e pela violência”.

Ulisses sobrevive ao ciclope, e salva seus companheiros, se utilizando da mentira, do ardil e da forma como manipula a conversa com Polifemo. Sem sombra de duvidas uma característica positiva que acompanha Ulisses ao longo da Odisseia, mas que quando é atribuída às mulheres, percebe-se, é carregada de crítica e negatividade. A característica é a mesma, no entanto, o que mudou? A situação no qual o ardil é aplicado ou o gênero que dele fez uso? Alguns pesquisadores se esforçam para dizer que o próprio Homero desconstrói um pouco o papel da mulher através do personagem de Penélope que tece a mortalha do pai de Odisseu durante o dia para desfazê-la à noite. Há um motivo para isso, obviamente. Uma das funções da mulher é tecer a mortalha do sogro. Quando ela terminar o trabalho, na ausência de Ulisses há praticamente vinte anos, ela pode se casar novamente.

No entanto, nem tudo que reluz é ouro. A possibilidade de um novo casamento, visto à distância, parece bom, mas a verdade é que sob a influência de outro homem, Penélope novamente tornar-se-a propriedade de outra pessoa. E já há problemas demais em casa. Penélope também tem um filho de dezessete anos, prestes a atingir a maioridade. Quando isso ocorrer, ele passará a ser o homem da casa e, portanto, sobre ela terá direitos. Por tudo isso a sagacidade de Penélope é fundamental. Ela não pode terminar a mortalha do sogro pois, quando isso ocorrer, ela será obrigada a casar-se com os inúmeros pretendentes que rodeiam a casa de Ulisses. E se não casar, quando o filho atingir sua maioridade, ela terá de ser submissa a ele. A solução encontrada, então, é adiar ao máximo a conclusão da mortalha e torcer pela chagada de Ulisses a tempo dele reassumir seu posto como rei de Ítaca, suas posses e sua mulher. Por isso ela tece a mortalha de dia e a desfaz à noite, tomando para si a responsabilidade sobre o seu destino. Para alguns pesquisadores que se debruçaram sobre a Odisseia, esta não seria a atitude de uma mulher passiva e submissa e, portanto, haveria no próprio texto uma desconstrução sobre o papel da mulher na sociedade grega do período. Mas há controvérsias.

Em Homero há dois modelos de mulheres, o primeiro seria a Penélope, a esposa fiel, que enquanto o marido vai para a guerra e permanece longe de casa por quase vinte anos, cuida da propriedade, família e dos interesses dele. E aqui já está explicitada a primeira das controvérsias. Mas sigamos para exemplificar o quanto Penélope era percebida como a “boa mulher”. Em um longo diálogo que Ulisses tem com Agamêmnon, no “inferno”, o rei de Micenas cita Penélope como contraponto à “cadela” da sua mulher, Clitemnestra, que se uniu ao primo, Egisto, para assassiná-lo. E quando o viu “(…) já a caminho de Hades, não quis lhe fechar as pálpebras nem a boca (…)”. O que reforça que além de traí-lo, Clitemnestra não demonstrou o respeito que qualquer guerreiro honrado deve ter pelo seu inimigo. Sobre Penélope, então, Agamêmnon diz que “não será da tua esposa, ó Ulisses, que virá a morte, pois prudente e bem intencionada na sua mente é a filha de Icário, a sensata Penélope”. Assim, já fica claro que se Penélope é o modelo a ser seguido, devido a sua prudência e sensatez, e Clitemnestra faz parte do time das mulheres detestáveis, representada, por Homero, como uma mulher rancorosa, cruel e violenta, que mata o marido e renega os filhos.

No entanto, tal representação talvez lhe é atribuída pois Clitemnestra é justamente a mulher que rompe com o papel social a ela – e às demais mulheres da época – destinado. E, depois, a esposa de Agamemnon não é a única tratada como maléfica e perigosa nos textos de Homero. O que deixa bem claro que se é possível, hoje, relativizar a submissão das mulheres na Ilíada e, principalmente, na Odisséia, por conta de um olhar contemporâneo que consiga percebe-las mais empoderadas – para usar uma palavra da moda – também é verdade que os cantos homéricos inauguraram, na literatura e nas artes, a tradição de reservar, às mulheres, papéis de personagens submissas ou traidoras e, geralmente, pivôs da discórdia humana. Não é por acaso, talvez, que Ulisses reconheça tantas mulheres quando visita o “inferno”. Desde sua mãe, que morreu de saudades pelo filho, algo que, obviamente, a coloca no papel da “boa mulher”, até a “(…) detestável Erífile, que recebeu ouro em troca da vida do esposo.” Entre uma e outra, Ulisses conta que viu Alcmena, esposa de Anfitrião e Epicasta, mãe de Édipo, mas também as já lembradas anteriormente, Clóris, Leda, Ifimedeia, Fedra e Ariadne, para ficarmos apenas no canto XI. Ou seja, se a casa de Hades é frequentada pelos homens, sobretudo, por conta das mortes cometidas por estes nas guerras, qual seriam os motivos que levariam tantas mulheres para lá?

No “inferno” todos estão na condição de almas sem memória. E quem perde sua memória perde sua identidade.

Para que os mortos voltem a lembrar da sua vida terrena é preciso que bebam o sangue negro do bode. No entanto, é preciso relativizar o universo que Homero criou para o seu inferno, para melhor aceita-lo. Afinal, se as almas não têm memória e precisam beber o sangue para retomá-la, como podem se lembrar de Ulisses ainda antes de terem bebido o sangue? Elpenor, que ainda não fora sepultado apropriadamente e, talvez por isso, não precise beber o sangue para se lembrar de Ulisses, conta os detalhes que envolveram a sua morte. “Tendo me deitado no palácio de Circe, esqueci-me em meu espírito de descer pelo longo escadote, caindo de cabeça do telhado; das vertebras se partiu o meu pescoço e para o Hades desceu minha alma.”

É ele o primeiro a se aproximar de Ulisses. Depois dele, a próxima a chegar é a própria mãe de Ulisses, que ele não permite que beba o sangue. Apenas quando surge a alma do tebano Tirésias, é que Ulisses vai permitir que o sangue seja bebido. E é o próprio Tirésias que solicita: “Mas afasta-te da vala, desvia a tua espada afiada, para que eu beba o sangue e te diga a verdade”. Ora, uma alma sem memória não lembraria dos vivos. No caso, Ulisses. Muito menos de que precisa beber sangue para poder relembrar sua vida terrena. Por isso, embora a essência de Hades, para Homero, parta desse pequeno detalhe contraditório, o universo infernal que nos é apresentado é de muito sofrimento, dor e angustia. Tal qual o inferno Cristão que, assim como Dante Alighieri o fez, deve ter se inspirado em Homero. Algumas passagens do canto XI são especialmente angustiantes, como quando Ulisses enumera uma série de nomes e seus sofrimentos até, finalmente, falar de Tântalo, “(…) a sofrer grandes tormentos, em pé num lago: a água chegava-lhe ao queixo. Estava cheio de sede, mas não tinha maneira de beber: cada vez que o ancião se baixava para beber, a água desaparecia, sugada, e em volta dos pés aparecia terra negra, pois um deus tudo secava (…)”.

Por fim, talvez a passagem mais simbólica do inferno, e que se presta para uma série de outras análises para além do mundo de Hades, é o encontro já citado acima, entre Ulisses com Aquiles. Quando o então herói grego, que tanto buscou a glória eterna quando em vida, agora declara que preferiria viver como o mais reles dos mortais a reinar no mundo dos mortos. Ora, o herói da Ilíada se constrói pelas suas características militares, mas na Odisseia, este se dá pela sua humanidade, a partir de um valor que alguns séculos depois, inclusive, será tema de incontáveis discussões filosóficas. Na Odisseia a guerra ficou para trás, são tempos de paz. É preciso voltar para casa, reconstruir a vida, se conectar ao que realmente importa e, nesse movimento, obviamente sobrará tempo para a reflexão. É por isso que, se por um lado Aquiles está abrindo mão da glória eterna, pois o preço a ser pago, agora no inferno, não lhe parece satisfatório, também Ulisses abre mão de ser um deus para seguir seu retorno para Ítaca como um simples ser humano. “De nada me adianta a eternidade onde eu não pertenço”, é o que diz o herói. Tudo o que Ulisses deseja é uma vida simples e honesta, em paz, e próximo a tudo aquilo que o constitui como ser humano. Algo tão simples como o pão, o vinho e o azeite, tripé da alimentação do Mediterrâneo e que, para os gregos, simbolizava a própria civilização. Nada mais sensato, afinal, desde que o ser humano dominou a agricultura, o ato de cultivar a terra é justamente aquilo que vai separar aqueles que se civilizaram daqueles que permaneceram “bárbaros”. O retorno de Ulisses para casa, portanto, é a perfeita metáfora da busca pela civilidade. A guerra ficou para trás, é tempo de reflexão e diálogo. Para isso é preciso paz. E é justamente o que a civilização grega fará a partir de então, ao fundar as bases da filosofia e da democracia que ainda hoje nos influencia.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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MAR ABERTO | Capítulo 22 https://redesina.com.br/mar-aberto-capitulo-22/ https://redesina.com.br/mar-aberto-capitulo-22/#respond Tue, 31 Oct 2023 00:43:05 +0000 https://redesina.com.br/?p=120231 por Boca Migotto Acordou com o telefone tocando. Pegou o celular do bolso da calça. Foi quando, aliás, se dera conta que dormira vestido. Foi quando, aliás, se dera conta que era viúvo. Nada daquilo havia sido um infeliz pesadelo. Olhou a tela do celular e era Henrique. Que droga, preciso contar ao piá. Mas …

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por Boca Migotto

Acordou com o telefone tocando. Pegou o celular do bolso da calça. Foi quando, aliás, se dera conta que dormira vestido. Foi quando, aliás, se dera conta que era viúvo. Nada daquilo havia sido um infeliz pesadelo. Olhou a tela do celular e era Henrique. Que droga, preciso contar ao piá. Mas não agora. Primeiro, preciso me restabelecer, raciocinar, racionalizar. Deixou o telefone tocar até este se calar. Levantou, foi até o banheiro, tirou toda a roupa, abriu a torneira, esperou esquentar e, então, mergulhou na correnteza do chuveiro, por onde jorrava uma água fumegante.

Enquanto esfregava a sujeira da sua pele, refletia sobre o significado de tudo aquilo. Havia alguma razão que ele ainda não teria compreendido? Na busca por respostas, baixou a cabeça e percebeu a água se perder pelo ralo. Tingida de terra e areia, ela desaparecia sabe-se lá para onde, levando consigo fragmentos daquela noite maldita. No final, toda água encontra o mar, não importa o quão longe esteja dele. Os maiores rios da terra têm seu nascimento em algum degelo insignificante ou num banhado desprovido de grandiosidade. No principio são apenas gotas, poças, pequenos córregos, que cavam na terra e na rocha o caminho mais fácil em busca do seu futuro. Aos poucos, no entanto, as águas ganham velocidade morro abaixo. Vão se encontrando pelo caminho, adquirindo força em cascatas que nos tiram o fôlego, muitas vezes, de tão belas e imponentes que são. Sobrevivem a penhascos, fazem rolar pedras consigo, carregam árvores inteiras em sua correnteza e suicidam-se de alturas surreais para sobreviverem e acalmarem-se lá embaixo, em berço esplêndido. Às vezes apressadas, às vezes quase paradas de tão sonolentas, seguem seu destino. Continuam sua busca pelo mar embora, talvez, nem saibam da sua existência. Instintivamente, levadas pelos relevos, cumprem o ritual ao qual foram designadas.

No seu trajeto fornecem vida a animais e plantas sem nada pedir em troca. Cortam quilômetros e quilômetros de terras, margeiam povoados, cidades, metrópoles das quais recebem ingratidão. Sem reclamar, desempenham o papel de levarem embora toda sujeira e memórias das quais homens e mulheres querem se livrar. Querem esquecer. Como quando puxamos a descarga de nossas casas sem nos perguntarmos para onde aquela água, até então translúcida e inodora, está levando nossos dejetos. Você se faz essa pergunta toda vez que dá a descarga? Dessa forma, de translúcidas, pouco a pouco as águas tornam-se barrentas. Muitas vezes são tão mal tratadas que perdem suas características mais básicas. Tornam-se pesadas, fétidas, escuras, intragáveis. Algumas vezes são aprisionadas sob nossos pés, numa tentativa vã de dominá-las e escondê-las, pois, sujas, tornaram-se também indesejáveis. Viramos as costas para elas, como se aquele velho rio, nos fundos da nossa cidade, nunca nem tivesse existido. Não fosse digno da nossa contemplação.

Mas não adianta fazer de conta que não existem pois, independente da nossa indiferença, as águas seguem sua aventura até o inevitável encontro com o mar, para onde carregam todo o passado do qual foram testemunhas. Então, uma vez misturadas, as águas doces, sujas e descrentes encontram o final da sua jornada. E são domadas pela grandiosidade dos oceanos. Misturam-se ao sal e, cedo ou tarde, retornam à terra em forma de ondas. Às vezes pequenas, suaves, às vezes grandes e vingativas. E assim o fazem por milhares e milhares de anos. E assim seguirão fazendo por sei lá quantos outros milhares de anos.

Alheias a nós e ao nosso desrespeito as águas nos lavam o corpo e a alma num eterno ciclo de vida e morte. Sentindo-se limpo, Pedro fecha a torneira do chuveiro e se seca antes de retornar para a sua cama. Lá permanecerá imóvel por dias.

PS: aproveitando que estamos em época de Feira do Livro em Porto Alegre, o texto dessa semana, na minha coluna, foi retirado do livro “A última praia do Brasil”. Na praça os jacarandás e ipês florescem enquanto, por aqui, é um forma de compartilhar um pouco do meu último livro e, claro, divulgá-lo. Quem tiver interesse, pode achá-lo na banca Érico Verissimo, na Feira do Livro, e através dos sites da Editora Bestiário e na Amazon.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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MAR ABERTO | Sobre trens e cinema https://redesina.com.br/mar-aberto-sobre-trens-e-cinema/ https://redesina.com.br/mar-aberto-sobre-trens-e-cinema/#respond Thu, 19 Oct 2023 13:14:24 +0000 https://redesina.com.br/?p=120176 por Boca Migotto Os trens e o cinema sempre tiveram uma relação bastante próxima. Tão próxima que fica difícil até dizer qual chegou primeiro. Historiograficamente, talvez possamos afirmar que foi o trem o primeiro a nascer, mas tudo depende do ponto de referência inicial. Se pensarmos na máquina a vapor, por exemplo, é preciso voltar …

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por Boca Migotto

Os trens e o cinema sempre tiveram uma relação bastante próxima. Tão próxima que fica difícil até dizer qual chegou primeiro.

Historiograficamente, talvez possamos afirmar que foi o trem o primeiro a nascer, mas tudo depende do ponto de referência inicial. Se pensarmos na máquina a vapor, por exemplo, é preciso voltar ao ano de 1681 quando, em Pequim, um jesuíta belga chamado Ferdinand Verbiest teria idealizado o primeiro protótipo do que poderia vir a se tornar o trem. Já em 1769 foi a vez de um francês dar sua contribuição a essa história. O militar Joseph Cugnot apresentou, aos seus superiores, uma máquina a vapor capaz de carregar as munições do exército de um lado para o outro dentro do quartel. Como toda grande invenção, entretanto, também a tecnologia do trem seguiu sendo estudada e aperfeiçoada ao longo dos anos por inúmeras pessoas.

Assim, nesse trote em direção ao futuro, Richard Trevithick, um engenheiro inglês, em 1804, conseguiu construir uma locomotiva a vapor que puxou cinco vagões com dez toneladas de carga e mais setenta passageiros. Tudo isso a uma velocidade de oito quilômetros por hora. Foi também outro inglês, e não é por acaso que a Inglaterra foi a grande disseminadora dos trens pelo mundo, quem deu a contribuição derradeira para o desenvolvimento do transporte ferroviário. Em 1814, George Stephenson construiu a primeira linha de trem, a primeira locomotiva e diversos vagões de carga que deram conta de trinta toneladas de carvão que foi transportado desde as minas de Darlington, por sessenta e um quilômetros e a uma velocidade de seis quilômetros por hora, até a cidade de Stockton. Algo impressionante. Tão impressionante que, apenas quatro anos depois, o mesmo Stephenson foi chamado para construir a primeira linha férrea entre duas cidades: de Liverpool à Manchester. Justamente a região onde estava ocorrendo a Revolução Industrial que transformou as dinâmicas econômicas e sociais em todo o planeta desde então.

Há outros nomes que se misturam a essa história e que contribuíram para que, já no início do século XX, o mundo fosse costurado por mais de quatrocentos mil quilômetros de linhas férreas – por cima e, inclusive, por baixo da terra – mas, para os objetivos desse texto, acho que essa contextualização já é suficiente. Passemos, agora, ao cinema que, embora assim como os trens e todas as grandes invenções, também conta com diversos pais – e mães que foram apagadas da história –, ganhou uma data e um local de nascimento. Paris, 28 de dezembro de 1885, por conta de uma exibição pública e coletiva de uma série de curtas-metragens captados pelas lentes do cinematógrafo desenvolvido pelos Irmãos Lumière. Mas, até chegarmos a esse momento sublime da modernidade, e para sermos justos com a História – com “H” maiúsculo – novamente é preciso regressar ao passado.

Por isso, se pensarmos que houve todo um processo de desenvolvimento e pesquisa da tecnologia cinematográfica para antes dos Irmãos Lumière ou, ainda, que o próprio cinema, como devir – ou seja, algo que já existia como imaginário mesmo antes de surgir a tecnologia capaz de filmar e projetar imagens em movimento – remonta ao homem das cavernas, estamos afirmando que a ideia de contarmos histórias através do uso da luz é algo que nos acompanha desde sempre. Afinal, uma tocha iluminando uma sequência de desenhos na parede de uma caverna não deixa de ser a própria essência do cinema: luz provocando a sensação de movimento. Mas mesmo que não queiramos voltar tanto assim no tempo, é impossível falar da invenção do cinema sem citar o “Teatro das Sombras”, por exemplo, praticado pelos chineses há mais de cinco mil anos antes de cristo.

Assim como a invenção do trem, desde então, inúmeros nomes emprestaram sua genialidade para o desenvolvimento desta tecnologia que permitiu o surgimento da imagem em movimento.

Leonardo da Vinci, no século XV, desenvolveu a “Câmera Escura”, provavelmente a primeira “tecnologia cinematográfica”. No século seguinte, o alemão Athanasius Kirchner criou a “Lanterna Mágica”, inspirado no experimento do próprio da Vinci. Em 1832, Joseph-Antoine Plateau criou o “Fenacistoscópio” – cada nome! – uma espécie de prato com inúmeras imagens desenhadas em posições diferentes que, ao ser girado com velocidade, criava a sensação de movimento. Hoje, isso tudo parece brincadeira de criança, mas na época cada novidade destas era mais um passinho em direção ao grande sonho do ser humano em apreender e reproduzir o mundo ao seu redor. E nesse processo, inúmeros outros personagens contribuíram mas, sem sombra de dúvida, a invenção da fotografia – ela também, cheia de pais como os franceses, Joseph Nièpce e Louis Jacques Daguerre, e o inglês, William Fox Talbot – permitiu que a coisa toda deixasse de ser uma “brincadeira de adultos” para se transformar em “coisa séria”. Afinal, a partir da fotografia não estávamos mais falando de desenhos e pinturas em movimento mas, sim, a própria realidade circundante que, a partir de então, poderia ser apreendida em toda sua verdade – conforme acreditavam na época –, através das lentes fotográficas. A história, claro, é longa e cheia de outros personagens e inúmeros hiperlinks que merecem o devido aprofundamento, mas é impossível chegar nos Irmãos Lumière sem lembrar, ainda, das experiências de Étienne-Jules Marey e Edward Muybridge. Este último responsável por capturar os movimentos de um cavalo para provar que, em determinado momento, o animal tiraria as quatro patas do chão. Essa experiência, digamos, mais do âmbito da curiosidade biológica, revolucionou a técnica do movimento aplicado à fotografia e, a partir daí, então, foi um pulinho para chegarmos em Thomas Edison, nos Estados Unidos, os Irmãos Skladanowsky, na Alemanha e, claro, os Lumière, na França.

Estamos no final do século XIX, o período das transformações tecnológicas e da Belle Époque, quando a França era percebida como o centro do mundo artístico e a Inglaterra o centro comercial e industrial do planeta. O trem, já há algumas décadas era considerado a própria metáfora dos novos tempos. Tempo, este, que inclusive estava no centro do progresso. Com a indústria passou a ser necessário marcar o tempo do trabalho para que este adquirisse um valor monetário. Assim, a relação entre o cotidiano das pessoas com o tempo altera completamente, e definitivamente, a nossa relação com o espaço. A natureza perde importância e é apreendida pela dinâmica das cidades que, agora, inclusive, e justamente por conta dos trens, parecem todas ainda mais próximas umas das outras. Com o trem, a impressão era de que o tempo havia sido dominado e as distâncias entre cidades e países encolhido dramaticamente. Não por acaso, ainda antes de iniciada a relação entre o cinema e os trens, estes foram tema da pintura. O movimento, fenômeno intrínseco tanto ao cinema como aos trens, tentou ser apreendido e reproduzido por William Turner, por exemplo, no seu quadro Chuva, vapor e velocidade, de 1844. De forma semelhantes, Claude Monet, antecipando os próprios Irmãos Lumière, vai pintar a Gare Saint Lazare, em 1877. Ou seja, o universo do trem passa a ser temática para os artistas que logo percebem que as dinâmicas sociais estão sendo completamente modificadas com a chegada dessa nova tecnologia. Por isso, foram inúmeros os pintores e fotógrafos que se dedicaram ao registro e representação do trem mas, certamente, nada se compara A chegada do trem à estação (1895) pois, além da impressionante imagem em movimento daquela máquina à vapor que parecia irromper a tela do cinema – conta-se a lenda (ou não) que algumas pessoas gritaram e se jogaram das cadeiras por medo de serem atropeladas pela imagem – esta, sobretudo, marca o nascimento do próprio cinema.

Desde então, trens e filmes não mais se largaram.

Após os Irmãos Lumière, ainda em Paris, temos Georges Méliès, considerado o pai do cinema de ficção e do cinema de ficção científica. Era um tempo quando tudo parecia possível ao ser humano e os temas preferidos de Méliès, um mágico que se apaixonou pela potencialidade da tecnologia cinematográfica, dialogavam com as mesmas temáticas de outro francês muito famoso e imaginativo, o escritor Julio Verne. Por isso, viagens à lua, aventuras no fundo do mar e deslocamentos em trens voadores eram histórias que agradavam o cineasta por conta da possibilidade de experimentar os efeitos especiais que o cinema permitia e, ao público, sobretudo, porque essas histórias dialogavam com aquele período de inúmeras transformações tecnológicas. A relação entre o cinema e os trens, no entanto, não se limita à Cidade Luz. Logo apareceu, também, no cinema americano. The great train robbery, que Edwin S. Porter realizou em 1903, é considerado, já, uma evolução na linguagem cinematográfica. E, esta, a partir desse momento, vai dar um salto gigantesco, ao ponto de, em apenas vinte anos, não apenas já estar consolidada como, também, já passar a ser questionada e descontruída pelas inúmeras vanguardas europeias que surgirão no período entre guerras.

Mas isso é outra história. Linguagem clássica ou desruptiva, não importa, o cinema e os trens se enamoraram de tal forma que é praticamente impossível pensar os filmes ambientados no Far West, por exemplo, sem imaginar um trem. Aliás, ele próprio, ferramenta indispensável para a colonização de toda Costa Oeste. Ao mesmo tempo, trens e estações se tornaram cenários, metáfora e até personagens de diversos filmes ao longo das décadas. O Assalto ao Trem Pagador (1962), de Roberto Farias, Pacto Sinistro (1951), de Alfred Hitchock, Matar ou Morrer (1952), de Fred Zinnermann, Quanto mais Quente Melhor (1959), de Billy Wilder, Quinteto Irreverente (1982), do italiano Mario Monicelli, Il ferrovieri (1956), do também italiano Pietro Germi, A Ponte do Rio Kwai (1957), Lawrence da Arábia (1962) e Doutor Jivago (1965), os três de David Lean, todos estes filmes que carregam o imaginário do trem em suas cenas, sejam elas de romance, perseguição, violência ou um simples deslocamento dos personagens.

Realizadas as devidas e necessárias contextualizações, é chegado o momento de falar sobre o que me motivou a escrever sobre trens e cinema.

Tudo começou porque essa semana trabalhei em um roteiro de curta-metragem, para um edital, no qual a história se passa em uma antiga estação ferroviária da Serra Gaúcha. Foi quando – e agora não sei mais o que vem antes ou depois – me dei conta da minha própria relação com os trens e com o cinema. Também na minha vida foi o trem que chegou antes. Muito antes do cinema. Nasci e cresci em Carlos Barbosa, no centro da cidade e bem próximo da estação ferroviária que, para mim, a partir de certa idade, era como se fosse o quintal da minha casa. Já não existia aquele movimento intenso e frenético de trens e pessoas indo e vindo o tempo todo. A própria estação já não funcionava mais para passageiros e, estes, naquela época, apenas embarcavam em trens se fosse para fazer turismo. Eu mesmo fiz um passeio de Maria Fumaça – essa mesma que hoje faz o roteiro turístico regular entre Bento Gonçalves e Carlos Barbosa – com o meu pai. Desde o centro de Carlos Barbosa até Jaboticaba. Lembro que o passeio era incrível, com quedas d’água ao longo do trajeto, passava por desfiladeiros, pontes, viadutos e vários túneis dentre os quais, o último, em forma de Y. Dava para ver direitinho, a Maria Fumaça entrava na montanha e, lá dentro, aos poucos, surgiam duas luzes no fim do túnel. Essas duas luzes iam aumentando até, finalmente, o trem seguir na direção de uma delas.

Mas voltando aos trens e o cinema, se mal ou bem os primeiros ainda passaram pela minha infância, o mesmo não posso dizer sobre o cinema. Durante toda minha infância Carlos Barbosa não teve sala de cinema e, por isso, a primeira vez quando vi um filme, fora da televisão, eu já tinha quase dezoito anos. Foi quando reformaram a mesma estação ferroviária da qual falei acima e, lá, instalaram o Cine Ideale. Sim, o nome precisava ser em italiano. Mas, se isso não lhe parece clichê o suficiente, o que vocês diriam do primeiro filme que vi nessa sala de cinema? Cine Paradiso (1990), de Giuseppe Tornatore. Sim, um filme sobre o amor ao cinema e, sobretudo, um filme italiano. E belíssimo, é preciso reconhecer. Mas o que importa é revelar que, desde então, passei a frequentar aquela sala de cinema todos os finais de semana. Cheguei a fazer parte da associação criada para manter o cinema aberto. Não importava o filme, eu estava sempre lá. Mesmo depois de me mudar para Porto Alegre, ao voltar para Carlos Barbosa, nos finais de semana, eu saia de casa para uma longa noite que começava, claro, com o filme do Cine Ideale. Quando filmaram O Quatrilho (1995), dirigido por Fabio Barreto, em Carlos Barbosa – a cena da festa do casamento foi filmada lá – eu usei a minha carteirinha de sócio do cinema para furar a barreira de segurança e chegar perto das filmagens. Lembro que eu mostrei a carteirinha para o segurança, ele olhou e gritou para o colega dele, mais adiante, que eu estava autorizado a passar porque “ele é do cinema”. Aquele dia foi a primeira vez que vi um set de filmagem pertinho de mim. Mal sabia eu que, um dia, eu mesmo trabalharia em sets de filmagens.

Mas eu preciso confessar algo antes de seguir com esse texto. Quando disse que eu tinha dezoito anos ao entrar, pela primeira vez, numa sala de cinema, eu não quis dizer, necessariamente, que esta tinha sido a primeira vez que vi um filme ser projetado. E a primeira vez a gente não esquece.

Bem antes de inaugurarem o Cine Ideale houve uma outra experiência. Uma única vez, mas impactante. Eu ainda era criança, talvez cinco ou seis anos, e a estação ferroviária, como disse, ainda recebia os trens. Uma noite saímos de casa, eu, minha mãe e meu pai, levando cadeiras, para uma projeção de filmes que aconteceria na estação, ao ar livre. Toda cidade estava lá. Bom, toda cidade que eu conhecia estava lá. Não lembro exatamente dos filmes, mas da sensação em ver aquelas imagens sendo projetadas sobre um daqueles vagões-baú, que estavam estacionados sobre os trilhos. Isso tudo, claro, foi marcante também por conta de toda a atmosfera. Algo assim não acontecia todas as noites e, naquela noite específica, quando as pessoas estavam sentadas em suas cadeiras, a temperatura estava agradável e havia um sentimento coletivo irmanado àquela experiência cinematográfica. Embora não lembre dos filmes, especificamente, nunca esqueci que eram filmes curtos e em preto e branco. Não seria um absurdo imaginar que, naquele momento e circunstância, e levando em conta que se tratava de filmes curtos e em preto e branco, um deles fosse, justamente, A chegada do trem à estação. Inclusive, seria muito decepcionante se os responsáveis por aquela projeção inesquecível não tivessem pensado nisso. O fato é que aquela noite e aquelas imagens em movimento projetadas sobre os vagões do trem me marcaram tanto que, quando lancei Pra ficar na História (2016), filmado em Garibaldi, fiz questão de fechar as ruas do centro da cidade e fazer o lançamento do longa-metragem ao ar livre. Vai que eu tenha encantado algum menino ou menina de cinco ou seis anos como eu mesmo fui encantado aquela noite dos anos 1980.

O cinema é luz. E, além disso, sua história é carregada de coincidências e contradições. Sempre me chamou a atenção, por exemplo, que o sobrenome dos “pais do cinema” significasse, justamente, “luz” em francês. Se o cinema é luz e essa luz associada ao movimento produz o efeito mágico que tanto permitiu que contássemos inúmeras histórias através dessa tecnologia, o trem, por sua vez, é a própria essência do movimento. E, de certa forma, quando estamos dentro de um trem, olhando pela janela, a gente vê o mundo passar em frente aos nossos olhos. Novamente, o movimento. Não é por acaso que, no final do século XIX, tanto um quanto o outro eram símbolos da modernidade e dos sonhos. De formas diferentes, ambos nos levam viajar.

Eu já fiz filme sobre trens. Um em Bento Gonçalves, quando dava aula e montamos um curso de extensão em cinema. Professores e alunos se juntaram para contar a história da ferrovia do trigo e daqueles viadutos impressionantes que passam por Muçum, Encantado, enfim, aquela região toda. O outro filme é um média-metragem, e foi feito no Norte do Estado. Conta a história da primeira ferrovia a ligar o Rio Grande do Sul a então capital, Rio de Janeiro. Os dois filmes envolvem pessoas idosas contando histórias do passado, quase sempre utilizando construções antigas como cenário e, sempre, desencadeando uma forte nostalgia sobre o passado ferroviário. Histórias sobre trens, contadas através do cinema. Histórias sobre coisas velhas e fora de moda, ao menos para nós, brasileiros, que a tudo e todos descartamos em nome da novidade.

Mas até esses filmes já faz tempo que eu realizei. Hoje eu estou com quase cinquenta anos e já começo a sentir o peso da idade.

As dores chegam e permanecem por mais tempo. Ainda de leve, mas já anunciam o que eu posso vir a encontrar nas esquinas de um futuro não tão longínquo assim se não levar uma academia a sério. Aliás, hoje mesmo, para fechar esse texto, estou trocando as flexões em nome das reflexões. E exercitar o cérebro é tão importante quanto, afinal, também a memória já não é mais a mesma. Mas o que me deixa mais indignado sobre o fato de envelhecermos é que, para um progressista convicto como eu, muitas vezes me vejo mais conservador do que gostaria de ser. Por último, mas não por fim, cada vez mais percebo a morte torna-se uma amiga bem próxima. Inclusive, às vezes, até uma sábia conselheira.

Aos poucos me vejo chegando na idade das pessoas que eu costumava dizer, brincando, que “têm histórias para contar”. Afinal, jovens têm muitas coisas, mas convenhamos, histórias para contar lhes faltam. Aos poucos, como uma velha Maria Fumaça que hoje é peça de museu ou um objeto exótico utilizado para o turismo, me vejo chegando à idade quando nos aposentam em nome do moderno. Até o cinema, aquele de película, já foi aposentado. De certa forma, as salas de cinema estão, também, sendo aposentadas. Ano após ano. O filme Retratos fantasmas (2023), do Kleber Mendonça Filho, é um documentário que mostra isso de forma poética, a partir do Recife. Mas poderia ser qualquer cidade brasileira onde os grandes cinemas do passado dão espaço para igrejas evangélicas, estacionamentos ou farmácias. Religião, carro e “remédios”. Estamos mesmo muito doentes.

Enquanto isso, aos poucos, todos nós e tudo ao nosso redor, vira uma grande peça de museu em um país que não dá a mínima para museus. Trens, casas antigas, estações e até salas cinemas podem ser restaurados e procurados por turistas, por interessados em história e na memória, mas nós, seres humanos, quando somos aposentados, só nos resta sentar, acompanhados das nossas dores, e esperar pela a morte e pelo esquecimento. Talvez seja justamente por isso eu faço cinema, documentários sobretudo, escrevo livros, fotografo o mundo ao meu redor, pesquiso histórias e tenho, inclusive, retornado à faculdade para estudar História. É tudo uma obsessão por dar uma sobrevida às memórias. É uma forma de fazer com que as pessoas, assim como trens, casas antigas e salas de cinema, também tenham uma segunda chance de serem vistos e escutados. Mas, eu não me engano com isso. Sei bem que, lá no fundo, é também uma forma de tentar evitar que esqueçam de mim, assim como estão esquecendo dos trens e do cinema.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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por Boca Migotto

Nestor Garcia Canclini é um antropólogo e filósofo argentino que ficou muito conhecido nos anos 1990, quando publicou o livro Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade. Este livro foi meio que um divisor de águas do pensamento latino-americano voltado à Antropologia pois, a partir dele, os efeitos da Globalização e da queda das fronteiras no mundo, em especial na América Latina, tiveram um novo enfoque. Seu estudo foi tão importante que ele inaugurou uma nova linha de pensamento para os estudos sociais no continente.

Eu conheci o trabalho deste argentino, radicado no México, ainda na graduação. Era a segunda metade dos anos 1990 e ele estava na moda. Não havia uma única disciplina das Humanas – naquela época ainda importantes para os cursos da Comunicação – que não indicasse a leitura de um texto dele. Nessa época, talvez, eu ainda não tivesse maturidade suficiente para me aprofundar nas suas leituras. Eu o lia, sim, mas não o estudava. O que é completamente diferente.

Depois, ao voltar para os estudos acadêmicos, no mestrado, em 2008, ai sim. Lá estava ele novamente e dessa vez tive que me aprofundar em vários dos seus textos. Confesso que eu achei que ele sairia de moda, afinal, a globalização veio, o liberalismo tomou conta do planeta mas, por mais que se gritasse, as fronteiras seguiram lá, firmes e fortes como o Muro da Mauá, em Porto Alegre. No entanto, justamente por isso, Canclini foi ficando ainda mais importante. Por isso, inclusive, quando fiz o doutorado e me coloquei a pensar o conceito de fronteira para pensar o cinema feito no Rio Grande do Sul, este Estado, por si só, forjado nas guerras de fronteira, foi impossível fugir do Canclini. Lá estava ele mais uma vez. Foi quando compreendi que alguns autores insistem em seguir contigo ao longo de décadas sem que, muitas vezes, tu mesmo percebas. Bueno, retomei alguns textos dele e foi quando um personagem argentino, de nome “Inodoro Pereyra, o renegado”, se materializou em minha frente.

Em seu livro, citado acima, Canclini se utiliza desse personagem, criado pelo artista gráfico argentino Roberto Fontanarrosa, para analisar a relação que se estabelece, na Argentina, entre o folclore, visto como símbolo do atraso, e aquilo que seria moderno, no sentido de contemporâneo. Publicado pela primeira vez em 1972, Inodoro Pereyra, segundo o próprio Canclini, parodia a “[…] exuberância kitsch da temática folclórica na mídia dessa época”. Para fazer isso, então, o cartunista se utiliza dos regionalismos linguísticos e dos estereótipos do gaúcho, exagerando-os ao ponto de tornar tais aspectos ainda mais inverossímeis quando colocados ao lado da difusão cultural moderna. O autor brinca com os limites entre o folclore – percebido como menor, uma vez que tem suas raízes no campo – e a cultura urbana, percebida como “sofisticada”. Dessa forma, Fontanarrosa se utiliza dos estereótipos ligados ao folclore do gaúcho para estabelecer um diálogo de cumplicidade com as pessoas que, com ele, se identificam, ao mesmo tempo que busca desconstruí-los a partir do seu personagem. Isso inclusive explicaria por que tentativas de publicação das histórias desse personagem, em outros países, nunca funcionaram bem. Por outro lado, dentro da Argentina, Inodoro Pereyra contribui para uma “peleia braba” entre aqueles que “há um século, discutem se a política cultural deve optar pela civilização das metrópoles, rechaçando a barbárie do autóctone, ou por uma reivindicação enérgica do nacional-popular”.

Trouxe Canclini para esse texto, bem como sua analise sobre esse personagem do folclore argentino, porque ambos ilustram bem inúmeras nuances observadas, por mim, ao longo dos últimos anos de vida, produção e estudos.

Sempre fui meio que encantado pelas fronteiras e sua capacidade de definir mudanças radicais a partir de uma singela linha desenhada no mapa. Para Canclini, Inodoro Pereyra, sentado à sombra de uma figueira enquanto mateia na companhia do seu fiel amigo cusco, é a própria analogia da fronteira. Imaginemos, então, a partir das palavras, o universo desse personagem e como ele é aproveitado para problematizarmos as questões da fronteira. Em seu livro, Canclini expõe uma tira na qual Inodoro saboreia seu mate amargo sob uma figueira, em meio ao pampa – no caso argentino, de la pampa –, quando vê surgir um homem aos gritos. Canclini o denomina “Perseguido”, pois ele está fugindo da política. Ao desespero de “Perseguido”, enquanto um batalhão de policiais corre atrás dele, então, Inodoro interpela: “E por que tanto êxito, vivente?”. É quando Perseguido relata que “é contrabandista de fronteiras”.

Ao compreender os motivos que levam aquele pobre gaúcho a fugir da polícia daquele jeito, Inodoro, agora complacente à situação do “vivente”, lhe pergunta: “E o que contrabandeias?”. “Perseguido” responde: “Já não te disse, homem? Fronteiras: balizas, barreiros, marcos, arames farpados, tijolos, linhas pontilhadas…”. Canclini brinca se tratar de um “metacontrabando”, uma vez que “Perseguido” está sendo procurado não por contrabandear produtos entre, através, das fronteiras, algo que, inclusive, caracteriza a própria essência dos primeiros gaúchos, mas, sim, por contrabandear a “fronteira” em si. Ou seja, “Perseguido” ganha a vida negociando produtos utilizados para construir cercas e muros e, assim, separar países. Imagino que Donald Trump, quando presidente, pode ter negociado alguns produtos com o “Perseguido”, a fim de construir o muro que define a fronteira entre os Estados Unidos e o México.

Esse personagem, o gaúcho, independentemente de ser aquele nascido no Rio Grande do Sul, na Argentina ou no Uruguai, o qual se originou do crime do estupro de mulheres nativas por espanhóis e portugueses, tornou-se um bastardo errante, sem pátria e sem dono, que livremente transitava pela região, sobrevivendo de pequenos crimes, dentre os quais, o próprio contrabando. Inodoro Pereyra, gaúcho dos quatro costados, portanto, é representante desse homem fora-da-lei, que desconsiderava os limites políticos impostos por assinaturas em acordos internacionais e seguia sua vida, despreocupadamente, cantando sua pretensa liberdade sobre o lombo do cavalo, tal qual o músico e compositor pelotense Vitor Ramil muito bem ilustrou em sua canção Deixando o pago, do disco Ramilonga, lançado em 1997. Logo, o personagem “Perseguido”, aos olhos de Inodoro Pereyra, não é um fora-da-lei por transgredir as fronteiras da mesma forma como o fazem tantos outros contrabandistas, mas, pelo contrário, ele contribui com a sua construção. Perseguido contrabandeia a própria fronteira. Algo que, para os acordos internacionais que limitam as terras de um e outro lados de um país é legal, no sentido da lei, para o gaúcho Inodoro é percebido como o crime em si.

No entanto, a tira de Fontanarrosa não acaba por aí. “Perseguido” conta que, antes de contrabandear a “própria fronteira”, ele contrabandeava peles de animas, como capivaras, lontras, rãs e vacas, estas, sim, através da fronteira. Este é o verdadeiro contrabandista, responsável por cortar cercas, pular muros, furar bloqueios para, conforme as necessidades de um e outro lados da fronteira, fornecer as desejadas mercadorias.

Na HQ escrita e desenhada por Fontanarrosa, “Perseguido” relatava seu passado com tamanho entusiasmo que não percebe que, do alto da coxilha, despontam mais de vinte policiais da Interpol. Ao perceber isso e sem saber para qual lado fugir, “Perseguido” implora para Inodoro Pereyra o esconder. A resposta ao seu pedido, contudo, lhe causa surpresa. Inodoro diz: “como ecologista, não protejo ninguém que tenha arrancado couro de criaturinhas inocentes”. Ora, mais uma contradição, afinal, dificilmente um gaúcho, tal qual representado por Fontanarrosa, poderia ser um ecologista. Afinal, isso confronta a própria construção desse personagem – gaúcho – associado ao conservadorismo rural. No entanto, para a história avançar e chegar aos “finalmentes”, Inodoro sugeriu que “Perseguido” se escondesse em meio a uma multidão que por ali passava. “Olha, lá vem uma procissão! Entra no meio do povo que eu não digo nada!”. “Perseguido” agradece e corre para se mimetizar àquele agrupamento de pessoas. Só então se dá conta que, na verdade, a ideia foi uma espécie de armadilha. Não se tratava de uma procissão, e sim de uma manifestação de agentes da polícia em greve por aumento de salário. A essa constatação de “Perseguido”, por fim, Inodoro Pereyra resmunga: “a gente nunca sabe onde vai estar metido no dia de amanhã”.

Dessa forma, Fontanarrosa complexifica ainda mais a leitura sobre o gaúcho, seus estereótipos populares e a reação destes perante as inúmeras constatações possíveis a partir dos tensionamentos propostos. Afinal, além das observações realizadas, percebe-se que o “contrabandista de fronteiras”, procurado pela polícia internacional por colaborar com a manutenção destas, se vê agora escondido em meio à própria polícia que, por sua vez, não vai prendê-lo, pois está em greve. Dessa forma, o autor inverte completamente a lógica social e a moral da história nos ensina que a gente nunca sabe de qual lado da fronteira vai estar metido no dia de amanhã e, portanto, o melhor a se fazer é evitar construí-las em nome da própria liberdade. O crime está no ato de construir as fronteiras, não em burlá-las.

Entretanto, construir fronteiras é uma prática de controle social. Não apenas as fronteiras entre países, mas também os muros para proteger cidades e as cercas para preservar propriedades privadas. Na busca pelo controle e manutenção do espaço, sempre há uma boa razão para se erguer obstáculos a fim de evitar o movimento de pessoas e, sobretudo, de ideias. No entanto, toda vez que se ergue uma estrutura que aparta, seja ela física ou psicológica, concreta ou abstrata, se está reduzindo a multiplicidade, que é inerente a todo indivíduo, a apenas “dois lados de uma mesma moeda”. Ora, a multiplicidade nasce do movimento, assim como a identidade é plural. Por isso, ao mesmo tempo em que se tenta controlá-la ou, ainda, se demanda pelo controle, esse obstruir o ir e vir será um processo que muito pode ser ilustrado pela imagem de alguém “enxugando gelo”, ou seja, é interminável.

Por outro lado, em nome do controle social, geralmente algo imposto de cima para baixo, dos hegemônicos para os subalternos, “enxugar gelo” será uma prática que, embora constante, é compensadora, até porque a própria sociedade desenvolveu seus mecanismos para realizar esse trabalho.

De certa forma, a própria sociedade demanda tais controles, afinal, a complexidade das dinâmicas humanas em relação ao meio em que vivem são tão inapreensíveis que não surpreende a necessidade de maniqueísmos básicos em nome de uma convivência mais “pacífica e/ou organizada”. É do ser humano a capacidade e a necessidade de seleção, a fim de excluir as “distrações” em nome da sobrevivência. Mais ou menos como quando atravessamos uma avenida movimentada de uma grande cidade. Se prestarmos atenção em todos os sinais ao nosso redor, como os inúmeros veículos que vêm e vão, as pessoas, todas as publicidades, o horário e a temperatura informados no painel eletrônico, a sirene das viaturas, o grito do vendedor ambulante etc., não damos o primeiro passo. Então, reduzimos as possibilidades para o semáforo, o sinal de pedestre, o movimento dos veículos e a faixa de segurança e, assim, seguimos em frente.

Ao percebermos isso, podemos deduzir que também a identidade – individual ou coletiva – passa a ser construída a partir da diferença, quando, ao contrário, deveria ser estabelecida na diferença. Demarcar fronteiras e fazer distinções entre o que fica dentro e fora está sempre ligado a uma forte separação entre “nós e eles”. É nas fronteiras que ocorre um embaralhar dessas identidades e que, se os controles são necessários, também fugir deles é parte da dinâmica social. Dessa forma, o carnaval, quando usamos máscaras, as festas à fantasia e os cultos religiosos de possessão, para trazer alguns exemplos que o próprio Canclini utiliza, não deixam de ser situações que nos auxiliam na tarefa de tensionar as fronteiras da dicotomia social em nome de uma pluralidade vital. Tudo isso, obviamente, é apenas uma “válvula de escape” para um cotidiano estruturado por regras, leis e costumes bem definidos. Tais fronteiras definem a própria sexualidade humana a partir da diferença binária que governa a conveniência de todos os códigos, da oposição feminino/masculino. Isso significa que nos condicionamos – ou somos condicionados – a enxergar tudo o que nos cerca, tudo que fizemos, até quem somos, baseados em um esquema constituído na dicotomia do que é certo ou errado, quem é amigo ou inimigo, quem é o pai ou a mãe, o que é trabalho e lazer e, assim, ad infinitum. Por outro lado, esse esquema, que para além do controle social também facilita a sobrevivência do indivíduo por meio de seleções binárias, está em permanente tensionamento, principalmente quando surge a necessidade de movimentar-se.

As diásporas, ou seja, as imigrações, o cruzamento de fronteiras e todos os inúmeros movimentos possíveis, inclusive viagens, embora menos traumáticas, podem ser percebidas como fenômenos que geram hibridizações, miscigenações, sincretismos e travestismos, como reações em prol das rupturas binárias e em busca da essência humana. Isso significa que, se de um lado há um necessário transitar pelas fronteiras, institucionalizado pela própria sociedade, por outro há aqueles movimentos provocados pela sobrevivência do corpo e/ou da alma, que buscam barrar esses movimentos fronteiriços, mesmo o de viajantes ocasionais. Nesse caso, diferentemente de esse movimento gerar um “alívio” social, ele provoca transformações, revoluções, renovações e precisará ser, de alguma forma, dissolvido e/ou, ao menos, novamente controlado. No entanto, como toda identidade é artificial, ao menos toda aquela constituída a partir de um pensamento reducionista, a procura pelo movimento será, sempre, um ato de resistência do indivíduo. Afinal, para além de o ser humano nascer potencialmente múltiplo – uma criança, por exemplo, não enxerga as diferenças como um bloqueio para uma relação social –, a própria sociedade, como grupo e coletivo, desde sempre transitou pelo mundo. Essa luta entre o controle e a libertação, portanto, está presente e faz parte da nossa dinâmica social, por isso se dá permanentemente e em diversos níveis. Levando em conta que ao transitarmos estamos em movimento e, uma vez em movimento, interagimos com o meio justamente pelas diferenças, a interação que brota desse deslocamento provoca, inevitavelmente, novas percepções, novas possibilidades e constrói o conhecimento.

Percebe-se, assim, que o encontro com o heterogêneo, com o diferente e com o estranho sempre ocorreu. É da nossa natureza e é determinante para a nossa constituição social. Edgar Morin, outro pensador importante para o campo social, diz que o “conhecimento está na cultura, e a cultura está no conhecimento. Um ato cognitivo individual é, ipso facto, um fenômeno cultural, e todo elemento do complexo cultural coletivo atualiza-se em um ato cognitivo individual”. Ao mesmo tempo, esse movimento pelo qual formatamos o nosso conhecimento – coletivo e/ou individual – gera, ao menos, dois fenômenos. De um lado, a partir daquele que se movimenta, há a incerteza sobre as possíveis consequências advindas do próprio movimento. Um terreno movediço, uma tempestade imprevista, um assalto na próxima esquina e/ou, claro, também boas surpresas, como uma ajuda inesperada, um abrigo provincial, uma nova amizade para a vida. Por outro lado, para aquele que está estático, embora o corpo estranho possa trazer novas – e boas – possibilidades, a primeira percepção é de que o “estrangeiro” significará problemas e, portanto, é preciso se proteger e proteger os seus erguendo fronteiras, muros e cercas. Novamente, porém, as fronteiras, os muros e as cercas podem ser físicas. E de fato são, mas também são psicológicas. Afinal, o “estrangeiro” sempre carrega, consigo, o movimento, e este sempre demanda uma reação. Da relação entre movimento e reação, decorre o caos, ou seja, em uma imagem, sabemos bem o quanto é difícil retomar os exercícios físicos – a academia –, mas, por outro lado, sabemos que após algumas semanas de exercícios, o corpo já volta a responder com mais vitalidade.

Nesse terreno incerto e suscetível a toda e qualquer influência estrangeira em permanente deslocamento, portanto, o forasteiro pode ser percebido como uma ameaça ou como uma oportunidade.

Por conta de toda uma construção ideológico-cultural que, desde criança, vai definindo nossa identidade a partir da diferença, geralmente, esse movimento é percebido como uma ameaça. Até porque, é do instinto do ser humano reagir, num primeiro momento, sob a percepção provocada pelo medo. Afinal, é ele que nos deixa alerta para, se necessário, reagirmos às ameaças e, assim, lutarmos pela nossa sobrevivência. Assim, a soma desse instinto básico com a doutrinação social, muito provavelmente, vai nos fazer perceber o “estrangeiro” – e o seu movimento – como algo a temer e, consequentemente, a evitar e/ou combater. Com o tempo, claro, aprendemos a identificar esse “estrangeiro” e, ao tipificá-lo, melhor compreender se é uma ameaça – e qual o nível dessa ameaça – ou, ao contrário, se é uma oportunidade. Afinal, nos organizamos a partir de um determinismo social que vai pautar nossas crenças, e estas dificilmente são desconstruídas.

Para ilustrar a complexidade disso, basta se lembrar do efeito causado nas pequenas cidades quando da chegada dos ciganos, mambembes e do próprio circo. Inevitavelmente, às vezes mais, às vezes menos, mas sempre alguma reação esses “estrangeiros” provocaram e, geralmente, trata-se de um sentimento complexo, gerado pelo medo, pela excitação, pelo deslumbre, pela necessidade e pela curiosidade. Não por acaso, esses “estrangeiros” seduzem as crianças, enquanto nos mais velhos, não raro, provocam sentimentos de preconceito e repulsa. Talvez seja significativo perceber que, pelo menos quanto ao teatro mambembe e ao circo, fala-se de arte e de artistas os quais, tal qual o contrabandista da narrativa de Canclini, trabalham pela – e na – dissolução das fronteiras. Embora, até certo ponto, o uso de máscaras serve ao equilíbrio social, essas práticas também são controladas. Para funcionarem como “válvulas de escape” e a serviço da manutenção social, também o descontrole precisa ser controlado. O que não ocorre com o “estrangeiro” que, geralmente, é um fator de total descontrole e desequilíbrio. Dessa forma, quanto mais polarizada a sociedade, mais fácil dominá-la. Quanto mais influência sobre elementos que permitem o equilíbrio desse controle, mais fácil a manutenção do status quo, e dificilmente ocorrerá um movimento interno e vertical, o qual pode ameaçar a igualmente polarizada estrutura hegemônica e subalterna.

Não é preciso ser cientista para compreender que o ser humano precisa de exercícios para não desenvolver doenças musculares e que uma máquina precisa ser utilizada para não enferrujar. A essência disso tudo é o movimento. Quanto mais movimento, mais interação e, portanto, transformação. Quanto mais transformação, mais difícil o controle social.

A partir desse paradigma, logo, percebe-se o quanto é importante apontar um inimigo comum. Se é para haver movimento, que este ocorra a serviço do enfrentamento desse inimigo. Isso manterá os dois lados ocupados, cada vez mais alienados quanto à complexidade das dinâmicas sociais e, certamente, evitará que um e outro lado “atravesse a fronteira” para, a partir do outro lado, enxergar-se a si mesmo e, assim, desconstruí-la. É nesse sentido, sobre a importância de inverter o ponto de vista a fim de desfazer as ameaças impostas, muitas vezes sem nem se saber o porquê, que devemos pensar “estratégias de desconstrução”, por meio da qual toda e qualquer dicotomia conceitual perde o sentido de ser e existir. Afinal, ao se colocar do outro lado da fronteira – e vice-versa –, o indivíduo percebe que não há mais o que temer e, por consequência, não há por que seguir preservando as estruturas que nos apartam. Uma vez desconstruídas as fronteiras, os muros e as cercas, por sua vez, aquilo que é estático naturalmente entra em movimento, ressignificando, assim, o próprio paradigma.

Existe um filósofo francófono chamado Jacques Derrida que pensou a “estética da inversão”. Para isso, Derrida não deixa de explicitar sua particular condição humana, afinal, o filósofo viveu na pele o mesmo fenômeno que, depois, inspirou sua filosofia. Uma vez nascido em El-Biar, na Argélia, de família francesa e judia, Derrida cresceu assombrado pelo nazismo e conviveu, bem de perto, com os conflitos pela independência argelina. Perdido entre dois mundos sem, no entanto, se sentir plenamente parte de nenhum deles, observou na sua condição de pária a oportunidade de se perceber no outro. Desse modo, quando Derrida enxerga na “inversão” a possibilidade de inverter a hierarquia que se constitui a partir de uma estrutura conflitiva e subordinante das oposições, é porque, por outro lado, este momento de inversão é estruturalmente inseparável de um momento de deslocamento. Ou seja, não basta, apenas, atravessar a fronteira, é preciso perceber irromper um novo conceito sobre o qual pensar a própria desconstrução desta fronteira. Nesse sentido, o processo da “inversão” de Derrida, permite não apenas transitar entre os dois lados da linha, mas exige desconstruir o sistema posto em todos os seus níveis estruturantes.

Obviamente que isso é muito difícil. Impossível, até (?). Mas, retomando Canclini, percebemos que para além de um discurso político e social, da tira de Fontanarrosa, explicitada no início deste texto, é possível perceber que a desconstrução das fronteiras se dá, em muito, por meio da – e na – arte. Afinal, o humor é construído e renovado nessa série de deslocamentos e é por isso que em todas as tiras de Fontanarrosa, a hilaridade nasce do fato de as fronteiras serem móveis e as personagens e os temas se confundirem. E não se trata apenas de Fontanarrosa, mas todos os artistas e todas as artes servem (também) para evidenciar como, na sociedade, as fronteiras podem estar em qualquer parte. E o quanto estas podem integrar ou, ao contrário, opor, conforme as relações de poder que se estabelecem a partir da inclusão e/ou exclusão. Desse modo, se enxergarmos as fronteiras como uma linha que estabelece oposições, estas se estruturarão, justamente, pela dicotomia entre dois lados os quais, por sua vez, contribuirão para a polarização do “nós” contra “eles”: Grêmio versus Inter, periférico versus central, rural versus urbano, pesquisador versus realizador. Por isso que uma questão se torna fundamental. Reorganizar a cultural do poder, passar de uma concepção vertical e bipolar para outra descentralizada, multideterminada. É preciso que, mesmo quem esteja em movimento, compreenda que movimento é este e a serviço de quem – e do que – ele ocorre.

Por tudo isso, desconstruir fronteiras não é um movimento fácil. Muitos, quase não as percebem, quanto muito podem desconstruí-las. Outros, ao percebê-las, acreditam furá-las e, dessa forma, enganar as “autoridades” que as vigiam. Nem desconfiam que são, da mesma forma, apenas parte do sistema, peças necessárias para a sua manutenção. São como as máscaras que preservam o “cidadão de bem” por trás do folião necessitado de uma fantasia ou, como o próprio carnaval, que permite ao homem vestir-se de mulher sem “destituí-lo de sua masculinidade”.

No fundo, seguem presos, mesmo conhecendo o outro lado da fronteira. Por isso que, para realmente compreender o aparelho fotográfico, é preciso aproximar o domínio técnico do olhar artístico. A organização metodológica da intransigência provocadora do palhaço. A ciência da arte. Apenas assim, em nome de uma efervescência cultural, será possível atravessar a fronteira como um elemento ativo, que a percebe, por ela transita, dela retira seu sustento e a ela também influencia. Tarefa difícil até para o melhor dos contrabandistas, afinal, a tendência sempre é reproduzir o método aplicado com sucesso. “Em time que vence não se mexe”, se diz no jargão futebolístico, mas, um dia ou outro, por conta da repetição, o adversário reconhecerá o método que garante a excelência do time sempre vencedor e o surpreenderá. Isso significa dizer que não adianta apenas identificar o buraco no muro e, por esse mesmo buraco, atravessar a fronteira toda vez, pois, cedo ou tarde, este será descoberto.

Além de coragem, sorte, persistência, o contrabandista necessita ser criativo e estar sempre um passo à frente das autoridades alfandegárias. Para isso, é necessário libertar-se dos paradigmas, a fim de multiplicar as possibilidades e, assim, “sair da caixinha”, como se diz popularmente. Seja qual for a metáfora que mais convém – entrar ou sair, tudo é movimento –, na essência, um indivíduo que se percebe no processo – o que é bem diferente de apenas estar no processo – é consequência de um conhecimento multifacetado o qual é construído a partir da escolha entre dois aspectos aparentemente contraditórios. Isso significa que a mesma fronteira pela qual o indivíduo deve transitar para libertar-se da dicotomia reducionista vai, ao mesmo tempo, influir sobre as chances – ou não – de esse indivíduo por ela transitar.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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