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MAR ABERTO | O inferno de Homero como reflexão do hoje

por Boca Migotto

A Grécia do século VIII a.C. é um período muito importante para toda a história ocidental. Nessa época, consolidava-se a pólis, quando os gregos passaram a pensar a sociedade como um (relativo) coletivo. Os reis já não existiam.

Embora a Grécia desse período ainda fosse governada por uma aristocracia formada por homens ricos e possuidores de terras, enquanto a maior parte da população era formada por aldeões pobres, é nesse período que teve início um processo político e social que vai resultar, nos séculos VI e V a.C., na pioneira experiência da democracia grega. Aliás, uma experiência que durou pouco menos de cem anos da história de um povo milenar mas que, por sua importância, ajudou a definir os gregos desde então.

Homero viveu nesse período de transformação ao longo do século VIII, quando escreveu a Ilíada e a Odisseia, textos que, por sua vez, remontam aos anos 1300 e 1200 a.C. Portanto, bem antes do seu tempo. Embora os historiadores acreditem que a Ilíada, principalmente, possa ter sido escrita por diversos outros autores, foi Homero quem passou para a história como seu autor. É preciso lembrar, entretanto, que trata-se de um relato que tenta dar conta de acontecimentos ocorridos séculos antes da sua concepção e, portanto, não pode, de forma alguma, ser fiel aos fatos. Mesmo assim, e para além das qualidades artísticas dessas duas obras, bem como sua influência decisiva sobre toda a literatura ocidental que virá a partir dela, ambas obras são importantes, pois permitem aos historiadores tecerem teorias sobre o mundo grego por elas contextualizado e do qual pouco conhecemos. Nesse sentido, se não há fatos para contarmos a História (com H maiúsculo), que tenhamos, ao menos, percepções. Desde que, obviamente, saibamos duvidar de tudo que foi escrito.

A Ilíada trata da famosa Guerra de Tróia, quando esta cidade é sitiada pelos gregos que buscam resgatar Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta. Tudo tem início por obra dos deuses, o que denota a importância destes para a cosmovisão grega e, em particular, para os textos homéricos. Segundo conta a mitologia, a guerra teria iniciado quando Éris, deusa da discórdia, ofereceu uma maçã de ouro à Hera, Afrodite e Atena. Zeus, por sua vez, ordena que Páris escolha qual das três mulheres seria merecedora do presente. Na disputa Páris recebeu três ofertas. Foi tentado por Hera, que lhe ofereceu poder, Atena, que lhe teria oferecido sabedoria e Afrodite, que ofereceu ao príncipe de Tróia “a jovem mais linda do mundo”, Helena. Páris decidiu por Afrodite e, assim, Helena por ele se apaixonou. Para viverem o amor, no entanto, decidiram fugir para Tróia e dessa forma teve inicio o cerco à cidade, organizado por Menelau, marido de Helena. A guerra duraria dez anos e acabaria apenas quando os gregos penetram os muros da cidade escondidos dentro de um cavalo de madeira. Os personagens da Guerra de Tróia são míticos, não existiram. Mas, apesar disso, tanto a Ilíada quanto a Odisseia, são repletas de valores, características e relações diretas com o povo grego. Assim, na falta de fatos, os elementos por trás das lendas permitem, aos historiadores modernos, ao menos, conjecturarem minimamente essa sociedade.

Na Ilíada, por exemplo, está muito clara a importância que os gregos davam à morte com glória, também chamada de “bela morte”.

Aquiles e Ajax, heróis gregos, a desejam sobretudo, pois esta faz o herói e tem o poder de perpetuá-lo, na história, mesmo após sua morte. Já a Odisseia trata do retorno de um dos heróis gregos, Ulisses – ou Odisseu – para sua terra, Ítaca, após o término do conflito. Se a Ilíada dá conta da guerra, da bravura de incontáveis heróis, e pouco se aproxima do universo das artes – na Ilíada, por exemplo, Aquiles é o único personagem que canta – na Odisseia, por sua vez, os aedos se multiplicam – o próprio Ulisses é um aedo que canta suas aventuras – e a figura do homem, ao contrário dos grandes eventos, é posta no centro da narrativa humanizando, dessa forma, a própria narrativa. Talvez por isso, de certa forma, a Odisseia também é percebida como uma espécie de ironia ou crítica sobre alguns valores expressos na Ilíada, entre eles, a incansável busca pela glória.

Nesse sentido, é digno de nota o encontro de Odisseu com Aquiles no “inferno”, quando o principal herói grego diz a Ulisses que “(…) preferia estar na terra, como servo de outro, até de homem sem terra e sem sustento, do que reinar aqui sobre os mortos”. Ou seja, o mesmo Aquiles, que na Ilíada tanto desejou a “bela morte” para perpetuar-se no tempo, se vê, agora na Odisseia, preso a um ambiente de dor e sofrimento que o faz repensar sua própria condição de herói quando no mundo terreno. Presente, passado e até um futuro imaginado estão nos textos que expõem, sobretudo, as diversas temporalidades perceptíveis em uma obra escrita séculos após os fatos narrados. É preciso assinalar que os poemas homéricos tratam de um universo construído a partir dos valores gregos daquele período, em uma época muito anterior a Cristo e a construção de conceitos como a culpa, o pecado, a fraternidade e o zelo pelo próximo. Dessa forma, os heróis homéricos podem nos parecer um tanto contraditórios se comparados aos valores contemporâneos. O próprio Ulisses não era um homem bonito, “mais parecia um trabalhador ou marinheiro, por conta da sua pele marcada pelo sol e pelo sal do mar, e seu corpo era atarracado.” Bem longe da descrição de um Kirk Douglas, por exemplo, que vive Ulisses no filme homônimo de 1954, dirigido por Mario Camerini e Mario Brava. No mesmo sentido dessa contradição, Ulisses se descreve como um guerreiro que provoca o dolo, sequestra as mulheres, subjuga e saqueia as cidades. Portanto, a partir do nosso olhar contemporâneo, Ulisses estaria mais para um bandido do que para um herói cinematográfico.

A obra de Homero nos fala de outro tempo e de outra época e, apesar de todas suas imprecisões temporais e fictícias, nos ajuda a compreender esse universo que remonta a mais de três mil anos.

Qual a relação que podemos estabelecer entre o universo de Homero com a concepção sobre o herói, a visão sobre a morte, a relação entre a aristocracia guerreira e o papel social da mulher nessa sociedade e nesse período? Os cantos IX e XI da Odisseia nos trazem algumas pistas para que possamos perceber melhor essa Grécia antiga. No canto IX, Ulisses relata ao rei Alcino os acontecimentos vividos por ele e seus companheiros desde o fim da guerra, uma vez que, por mais dez anos, o herói vaga pelo Mediterrâneo antes de reencontrar Ítaca, a ilha da qual era rei. Nesse canto, portanto, é narrado alguns dos encontros ocorridos, ao longo dessa década, com personagens míticos que ele encontra pelo caminho como os cícones, os lotófagos e, sobretudo, com os ciclopes. Já o canto XI trata da ida de Ulisses ao reino dos mortos, onde ele se encontrará com o maior sábio de todos os tempos, de quem receberá previsões sobre seu retorno à sua ilha, bem como com outros personagens da Ilíada, como o próprio Aquiles. Nesse “inferno” há uma certa hierarquia, mas também a igualdade entre os mortos, e através dele é possível refletir melhor sobre o significado da morte para os gregos, bem como compreender a importância dos ritos fúnebres do período em questão, que estão sustentados, sobretudo, na necessidade de se cremar os corpos para que a fumaça possa reintegrar os corpos ao cosmos original. Este também seria o canto que melhor expressa o pensamento grego sobre as mulheres, quase sempre subjugadas e apagadas da história pela presença masculina.

Ao longo de diversas partes do canto XI da Odisseia, por exemplo, quase toda vez quando uma mulher é apresentada, seu nome vem respaldado por um homem. Algo que fica claro, indubitavelmente, quando, no “inferno”, Ulisses diz que viu “(…) Clóris, que outrora Neleu desposou por causa da sua beleza” (XI-270), ou diz que viu “(…) Leda, esposa de Tíndaro” (XI-280) ou, ainda, “(…) Fedra e Prócis e a bela Ariadne, filha de Minos (XI-320). Mesmo quando as mulheres não são adjetivadas pejorativamente ou culpadas por alguma tragédia, elas pertencem a algum homem e são tratadas com desconfiança e desdém, como também exemplifica essa passagem do mesmo canto XI da Odisseia: “(…) nunca sejas amável com a tua mulher, não lhe declares todo o pensamento que tiveres, mas diz-lhe só alguma coisa, ocultando o resto.”.

Algumas leituras mais contemporâneas até tentam refletir sobre o fato de que as mulheres gregas, talvez, não tenham sido assim tão submissas e compensassem sua aparente condição subalterna com algum ardil, uma característica, aliás, que os gregos valorizavam. É possível. Afinal, desde muito antes dos gregos a inteligência é a única arma que pode fazer frente à força. Mas mesmo que isso seja um fato, não há perspicácia que dê conta de todo um sistema constituído a partir do universo masculino e isso fica bastante claro através dos textos homéricos. De qualquer forma, mais por mérito próprio do que benevolência ou lucidez masculina, algumas mulheres que aparecem na Odisseia, e talvez a principal seja Penélope, esposa de Ulisses, possam até ser percebidas sob outra ótica que as coloca num papel menos submisso. E, para isso, sem sombra de dúvida, o ardil é uma característica necessária para as mulheres sobreviverem nesse ambiente tão desfavorável.

Ardil, este, que é preciso ressaltar, ao menos para os homens, era percebido como algo positivo, uma característica essencialmente humana.

O próprio Ulisses, quando encontra o ciclope Polifemo, se mostra ardiloso e mente para o monstro que o prende, a ele e seus companheiros, em sua gruta. É a manipulação de Ulisses que vai salvá-los da morte quando o herói convence Polifemo a beber o vinho para, em troca, poupar-lhe a vida. O ciclope aceita a bebida e se delicia com o néctar, mas Ulisses e seus companheiros já haviam preparado uma armadilha para quando ele dormisse, embriagado pelo efeito do álcool. Assim, quando Polifemo pega no sono, tem seu olho perfurado por uma lança que Ulisses e seus homens haviam preparado para esse fim e, assim, conseguem escapar da caverna onde estavam presos. O detalhe quase cômico nessa passagem, que aparece no canto IX da Odisseia, no entanto, é a conversa que Ulisses mantém com o ciclope quando este bebe o vinho. Polifemo pergunta a Ulisses qual seu nome e este lhe diz que se chama “Ninguém”. “Ninguém é como me chamo. Ninguém chama-me a minha mãe, o meu pai, e todos os meus companheiros”. Após ter seu olho furado pela lança, e portando, cego e se debatendo em dor, o impiedoso Polifemo grita que foi cegado. Outros ciclopes, do lado de fora, acordam e o acodem, sem no entanto entrarem na sua caverna. De pé, do lado de fora, perguntam: “Que passa Polifemo, para gritares desse modo na noite imoral, tirando-nos assim o sono? Será que algum homem mortal te leva os rebanhos, ou te mata pelo dolo e pela violência?”. De dentro da caverna, Polifemo responde; “Ó amigos, Ninguém me mata pelo dolo e pela violência”.

Ulisses sobrevive ao ciclope, e salva seus companheiros, se utilizando da mentira, do ardil e da forma como manipula a conversa com Polifemo. Sem sombra de duvidas uma característica positiva que acompanha Ulisses ao longo da Odisseia, mas que quando é atribuída às mulheres, percebe-se, é carregada de crítica e negatividade. A característica é a mesma, no entanto, o que mudou? A situação no qual o ardil é aplicado ou o gênero que dele fez uso? Alguns pesquisadores se esforçam para dizer que o próprio Homero desconstrói um pouco o papel da mulher através do personagem de Penélope que tece a mortalha do pai de Odisseu durante o dia para desfazê-la à noite. Há um motivo para isso, obviamente. Uma das funções da mulher é tecer a mortalha do sogro. Quando ela terminar o trabalho, na ausência de Ulisses há praticamente vinte anos, ela pode se casar novamente.

No entanto, nem tudo que reluz é ouro. A possibilidade de um novo casamento, visto à distância, parece bom, mas a verdade é que sob a influência de outro homem, Penélope novamente tornar-se-a propriedade de outra pessoa. E já há problemas demais em casa. Penélope também tem um filho de dezessete anos, prestes a atingir a maioridade. Quando isso ocorrer, ele passará a ser o homem da casa e, portanto, sobre ela terá direitos. Por tudo isso a sagacidade de Penélope é fundamental. Ela não pode terminar a mortalha do sogro pois, quando isso ocorrer, ela será obrigada a casar-se com os inúmeros pretendentes que rodeiam a casa de Ulisses. E se não casar, quando o filho atingir sua maioridade, ela terá de ser submissa a ele. A solução encontrada, então, é adiar ao máximo a conclusão da mortalha e torcer pela chagada de Ulisses a tempo dele reassumir seu posto como rei de Ítaca, suas posses e sua mulher. Por isso ela tece a mortalha de dia e a desfaz à noite, tomando para si a responsabilidade sobre o seu destino. Para alguns pesquisadores que se debruçaram sobre a Odisseia, esta não seria a atitude de uma mulher passiva e submissa e, portanto, haveria no próprio texto uma desconstrução sobre o papel da mulher na sociedade grega do período. Mas há controvérsias.

Em Homero há dois modelos de mulheres, o primeiro seria a Penélope, a esposa fiel, que enquanto o marido vai para a guerra e permanece longe de casa por quase vinte anos, cuida da propriedade, família e dos interesses dele. E aqui já está explicitada a primeira das controvérsias. Mas sigamos para exemplificar o quanto Penélope era percebida como a “boa mulher”. Em um longo diálogo que Ulisses tem com Agamêmnon, no “inferno”, o rei de Micenas cita Penélope como contraponto à “cadela” da sua mulher, Clitemnestra, que se uniu ao primo, Egisto, para assassiná-lo. E quando o viu “(…) já a caminho de Hades, não quis lhe fechar as pálpebras nem a boca (…)”. O que reforça que além de traí-lo, Clitemnestra não demonstrou o respeito que qualquer guerreiro honrado deve ter pelo seu inimigo. Sobre Penélope, então, Agamêmnon diz que “não será da tua esposa, ó Ulisses, que virá a morte, pois prudente e bem intencionada na sua mente é a filha de Icário, a sensata Penélope”. Assim, já fica claro que se Penélope é o modelo a ser seguido, devido a sua prudência e sensatez, e Clitemnestra faz parte do time das mulheres detestáveis, representada, por Homero, como uma mulher rancorosa, cruel e violenta, que mata o marido e renega os filhos.

No entanto, tal representação talvez lhe é atribuída pois Clitemnestra é justamente a mulher que rompe com o papel social a ela – e às demais mulheres da época – destinado. E, depois, a esposa de Agamemnon não é a única tratada como maléfica e perigosa nos textos de Homero. O que deixa bem claro que se é possível, hoje, relativizar a submissão das mulheres na Ilíada e, principalmente, na Odisséia, por conta de um olhar contemporâneo que consiga percebe-las mais empoderadas – para usar uma palavra da moda – também é verdade que os cantos homéricos inauguraram, na literatura e nas artes, a tradição de reservar, às mulheres, papéis de personagens submissas ou traidoras e, geralmente, pivôs da discórdia humana. Não é por acaso, talvez, que Ulisses reconheça tantas mulheres quando visita o “inferno”. Desde sua mãe, que morreu de saudades pelo filho, algo que, obviamente, a coloca no papel da “boa mulher”, até a “(…) detestável Erífile, que recebeu ouro em troca da vida do esposo.” Entre uma e outra, Ulisses conta que viu Alcmena, esposa de Anfitrião e Epicasta, mãe de Édipo, mas também as já lembradas anteriormente, Clóris, Leda, Ifimedeia, Fedra e Ariadne, para ficarmos apenas no canto XI. Ou seja, se a casa de Hades é frequentada pelos homens, sobretudo, por conta das mortes cometidas por estes nas guerras, qual seriam os motivos que levariam tantas mulheres para lá?

No “inferno” todos estão na condição de almas sem memória. E quem perde sua memória perde sua identidade.

Para que os mortos voltem a lembrar da sua vida terrena é preciso que bebam o sangue negro do bode. No entanto, é preciso relativizar o universo que Homero criou para o seu inferno, para melhor aceita-lo. Afinal, se as almas não têm memória e precisam beber o sangue para retomá-la, como podem se lembrar de Ulisses ainda antes de terem bebido o sangue? Elpenor, que ainda não fora sepultado apropriadamente e, talvez por isso, não precise beber o sangue para se lembrar de Ulisses, conta os detalhes que envolveram a sua morte. “Tendo me deitado no palácio de Circe, esqueci-me em meu espírito de descer pelo longo escadote, caindo de cabeça do telhado; das vertebras se partiu o meu pescoço e para o Hades desceu minha alma.”

É ele o primeiro a se aproximar de Ulisses. Depois dele, a próxima a chegar é a própria mãe de Ulisses, que ele não permite que beba o sangue. Apenas quando surge a alma do tebano Tirésias, é que Ulisses vai permitir que o sangue seja bebido. E é o próprio Tirésias que solicita: “Mas afasta-te da vala, desvia a tua espada afiada, para que eu beba o sangue e te diga a verdade”. Ora, uma alma sem memória não lembraria dos vivos. No caso, Ulisses. Muito menos de que precisa beber sangue para poder relembrar sua vida terrena. Por isso, embora a essência de Hades, para Homero, parta desse pequeno detalhe contraditório, o universo infernal que nos é apresentado é de muito sofrimento, dor e angustia. Tal qual o inferno Cristão que, assim como Dante Alighieri o fez, deve ter se inspirado em Homero. Algumas passagens do canto XI são especialmente angustiantes, como quando Ulisses enumera uma série de nomes e seus sofrimentos até, finalmente, falar de Tântalo, “(…) a sofrer grandes tormentos, em pé num lago: a água chegava-lhe ao queixo. Estava cheio de sede, mas não tinha maneira de beber: cada vez que o ancião se baixava para beber, a água desaparecia, sugada, e em volta dos pés aparecia terra negra, pois um deus tudo secava (…)”.

Por fim, talvez a passagem mais simbólica do inferno, e que se presta para uma série de outras análises para além do mundo de Hades, é o encontro já citado acima, entre Ulisses com Aquiles. Quando o então herói grego, que tanto buscou a glória eterna quando em vida, agora declara que preferiria viver como o mais reles dos mortais a reinar no mundo dos mortos. Ora, o herói da Ilíada se constrói pelas suas características militares, mas na Odisseia, este se dá pela sua humanidade, a partir de um valor que alguns séculos depois, inclusive, será tema de incontáveis discussões filosóficas. Na Odisseia a guerra ficou para trás, são tempos de paz. É preciso voltar para casa, reconstruir a vida, se conectar ao que realmente importa e, nesse movimento, obviamente sobrará tempo para a reflexão. É por isso que, se por um lado Aquiles está abrindo mão da glória eterna, pois o preço a ser pago, agora no inferno, não lhe parece satisfatório, também Ulisses abre mão de ser um deus para seguir seu retorno para Ítaca como um simples ser humano. “De nada me adianta a eternidade onde eu não pertenço”, é o que diz o herói. Tudo o que Ulisses deseja é uma vida simples e honesta, em paz, e próximo a tudo aquilo que o constitui como ser humano. Algo tão simples como o pão, o vinho e o azeite, tripé da alimentação do Mediterrâneo e que, para os gregos, simbolizava a própria civilização. Nada mais sensato, afinal, desde que o ser humano dominou a agricultura, o ato de cultivar a terra é justamente aquilo que vai separar aqueles que se civilizaram daqueles que permaneceram “bárbaros”. O retorno de Ulisses para casa, portanto, é a perfeita metáfora da busca pela civilidade. A guerra ficou para trás, é tempo de reflexão e diálogo. Para isso é preciso paz. E é justamente o que a civilização grega fará a partir de então, ao fundar as bases da filosofia e da democracia que ainda hoje nos influencia.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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