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MAR ABERTO | Coleciono coisas que os outros jogam fora

Imagem: Boca Migotto

por Boca Migotto

Isso aqui vai ser muito valorizado (Boca Migotto, 2022), curta-metragem realizado em parceria com a Escaiola Arquitetura Rara e lançado essa semana, foi filmado no município de Feliz e propõem uma discussão acerca da preservação do patrimônio arquitetônico a partir do projeto de restauro do antigo cinema da Amália Noll.

Ao longo do curta-metragem, dentre várias coisas, discute-se, principalmente, a necessidade de atrelar a preservação do patrimônio ao turismo como estratégia para que o primeiro aconteça. Uma vez que este é tido como uma indústria limpa – pero no tanto –, justificaria, economicamente, os investimentos necessários para o restauro e manutenção de uma determinada edificação. O conflito está no fato de que, ao mesmo tempo, seria preciso encontrar um equilíbrio nessa relação, pois o turismo pode também ser danoso se, e quando, praticado sem controle. Este não foi o único curta-metragem que nasceu dessa inusitada parceria com o escritório de arquitetura da Juliana Betemos e da Cristiane Rauber. Com elas realizamos, também, o Eu gosto de coisa velha (Boca Migotto, 2021), que narra o processo de inventariamento das antigas casas em enxaimel, construídas na região, e discorre sobre a principal dificuldade para sua preservação. Nesse caso, o receio das pessoas passa pela percepção de que um possível tombamento significaria uma desapropriação ou, ainda, inviabilizaria, economicamente, toda a propriedade.

Estes não são meus primeiros filmes sobre o tema. E, provavelmente, não serão os últimos. A temática da preservação da memória, como um todo, está presente no meu trabalho como realizador audiovisual e também como professor universitário desde muito tempo. Consertam-se gaitas (Boca Migotto, Ana Cristina Paulus e Felipe Gue Martini, 2014), por exemplo, foi realizado em parceria com o NAC – Núcleo de Produção Audiovisual da Faculdade Cenecista de Bento Gonçalves, onde atuei como professor até 2016. A Ana Cristina, que assina a direção comigo e com o meu colega professor, o Felipe, foi nossa aluna e participava do núcleo o qual, por sua vez, nasceu a partir de um curso de extensão concebido, por nós, para qualificar a prática audiovisual entre estudantes da região. Deste mesmo curso também nasceu o curta-metragem Gigante de Ferro – a Ferrovia do Trigo (Matheus Picolli, 2010). A boa aceitação desse curta, aliás, que inclusive foi exibido pela RBS-TV, algo inédito para uma produção realizada por alunos de Bento Gonçalves, nos incentivou a criarmos o NAC e reunirmos, em torno deste núcleo, jovens da região que tinham, por interesse, aprender a produzir documentários. O curta-metragem Eu sou mais eu (José Martim Estefanon, 2012), sobre a musicista bento-gonçalvense, Ana Maria Mazzotti, também nasceu das atividades do NAC a partir de uma segunda edição do mesmo curso de extensão que o Felipe e eu batizamos de É tutto vero, justamente para brincar com a mania local de (quase) tudo denominar a partir do idioma ou da sonoridade do italiano. “Sentare”, fábrica de cadeiras, “solare”, loja de aquecedores, “mangiare bene”, restaurante. Que nos perdoe Orson Welles e Amir Labaki por corromper a expressão já utilizada como título de um filme – inacabado – do primeiro (It’s all true, 1942) e, provavelmente em homenagem a este, nome do principal festival de documentários da América Latina, concebido pelo segundo.

Essa foi uma época de esperança e realizações para todos nós que trabalhávamos com o audiovisual, seja como realizadores ou professores. Atuando constantemente em Bento Gonçalves, estive próximo da criação da Bento Film Commission e a região – mas não só – me serviu como cenário para diversos projetos que visavam, justamente, discutir e colaborar com a preservação da memória local.

Desse período nasceram os curtas-metragens Dormente do tempo (Boca Migotto, 2012) – este filmado no Norte do Rio Grande do Sul, nas cidades de Marcelino Ramos, Viadutos e Gaurama – Memórias em Sal de Prata (Boca Migotto, 2012) – Veranópolis e Canoas – Cine Brasília (Boca Migotto, 2013) – este filmado em Carazinho – e Tcheco (Boca Migotto, 2014) – gravado em Bento Gonçalves. Sem citar os curtas-metragens – documentários, séries e ficção – realizados para a RBS-TV e TVE e, ainda, os longas-metragens, O sal e o açúcar – as tradições doceiras em Pelotas e antiga Pelotas (Boca Migotto, 2013), Filme sobre um Bom Fim (Boca Migotto, 2015) e, claro, Pra ficar na história (Boca Migotto, 2018), filmado em Garibaldi e no Norte da Itália, através do qual eu busquei compilar as diversas experiências e discussões que fui trabalhando ao longo da realização de todos os curtas-metragens aqui citados. Quer dizer, não é de hoje que a questão da preservação da memória, através do audiovisual – e do documentário, essencialmente – permeia minha vida profissional. Mesmo nas inúmeras vezes quando nem orçamento havia para realizar tais produções – a Rouanet nunca me ajudou! – o objetivo sempre foi registrar o máximo possível “as coisas da região”. Quer conferir? Todas essas obras podem ser acessadas através do Vimeo e do YouTube ou, ainda, várias delas fazem parte do catálogo da Sulflix, nesse caso, disponíveis em alta qualidade.

Não só de cinema preserva-se a memória. Sobre esse tema também já escrevi artigos para jornais, revistas e livros. Em um deles, especificamente, publicado na antológica obra 150 anos da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul (2019), organizada por Ademir Antonio Bacca e Luis H. Rocha, sob o título Foi ao cinema e salvou a história (2019), abordei a importância da produção audiovisual para o desenvolvimento do turismo na região e deste para a preservação da memória inerente à imigração italiana. Nesse caso, leia-se como “memória” as edificações antigas, fotografias, documentos, histórias, livros, filmes, o próprio dialeto vêneto – nessas bandas também conhecido como talian – enfim, tudo aquilo que caracteriza e documenta a paisagem cultural da região. Não por acaso, o pano de fundo do curta-metragem lançado essa semana apresenta o turismo como aliado ou vilão dessa política de preservação. O binômio arquitetura e turismo, conforme explica o depoente Javier Mosteiro, professor da Escuela Superior de Arquitectura de Madrid, entrevistado para o curta Isso aqui vai ser muito valorizado, configura uma relação frágil, porém necessária, para a preservação do patrimônio como ponto turístico ou, contrariamente, sua deterioração por conta do mesmo turismo quando praticado desenfreadamente. Mosteiro cita Veneza como, possivelmente, o exemplo mais extremo desse frágil equilíbrio entre um e outro. Mas, para além da bela cidade italiana, percebemos as consequências nefastas do turismo descontrolado em diversas cidades, grandes ou pequenas, em todos os continentes. Por isso, sempre que falamos em preservação, invariavelmente, precisamos trazer este importante setor da economia para o debate, uma vez que ele está intimamente associado à cultura da região visitada. É o que eu sempre digo, ninguém atravessará o Brasil para comprar uma garrafa de vinho em Bento Gonçalves. Para isso basta procurar um supermercado, quanto muito, uma casa especializada na bebida em qualquer cidade média brasileira ou, ainda, realizar um pedido pela internet. O motivo que faz pessoas se deslocarem para a Serra Gaúcha é experimentar e vivenciar a cultura local.

Sobre isso já escrevi, transversalmente, em outros artigos, nesse mesmo espaço aqui na Rede Sina. Mas, dessa vez, por conta da coincidência de o Pra ficar na história ter sido reexibido na Cinemateca Paulo Amorim, na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre, integrando o projeto O que é o cinema gaúcho, apenas alguns dias antes do lançamento do curta-metragem Isso aqui vai ser muito valorizado, me motivei a refletir sobre o tema uma vez mais.

Devo confessar, entretanto, que rever o longa-metragem, depois de tantos anos, mexeu comigo de diversas formas. Afinal, como escrevi acima, aqueles foram anos de esperança enquanto, hoje, vivemos um período de obscurantismo e retrocessos em todas as áreas ligadas à cultura. A produção artística, a educação, a preservação da nossa memória, e até o próprio turismo, são setores concomitantes entre si os quais têm, em comum, também o fato de serem atacados, descaracterizados e desmontados pelo atual governo federal. Incluí o turismo na lista acima pois, diferentemente daquilo que olhos pouco treinados possam ver, o setor está intimamente ligado à cultura como um todo. Não há turismo de carnaval sem música, dança ou o meticuloso trabalho artístico por trás dos enredos das escolas de samba. Não há turismo sem uma educação voltada para a preservação do patrimônio de uma região e, também, não há turismo sem história. Tocar sanfona e cantar – mesmo que mal – a Ave Maria, de Johann Sebastian Bach, Charles Gounod e Franz Schubert – a história da canção é longa e envolve esses três artistas na sua criação – como já fez o atual Ministro do Turismo, Gilson Machado, também exige qualificação artística. Lembrando que para fazer arte, no entanto, não é suficiente, apenas, dominar a técnica, é preciso também sensibilidade. Algo que, duvido, exista nesse governo. Bem ao contrário disso.

O desmonte dessas áreas diretamente ligadas à cultura é uma visão de mundo inerente aos principais personagens do governo Bolsonaro. Basta lembrar o que o próprio presidente declarou quando perguntado sobre o incêndio do Museu Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro, ocorrido em 2 de setembro de 2018, quando ainda concorria à presidência ou, mais recentemente, o esforço desse mesmo governo em sucatear a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, que, não por acaso, também teve um dos seus galpões – e milhares de cópias de filmes, fotografias e cartazes cinematográficos – consumido por um incêndio em 29 de julho de 2021. Que um governo fascista trabalhe pelo desmonte da cultura, me parece, é coerente. A cultura e os artistas, a educação crítica e os professores, principalmente de História, bem como a imprensa livre e os jornalistas sempre foram considerados os principais inimigos de governos autoritários. O que me causa estranhamento, entretanto, é ver empresários do setor turístico, bem como pessoas que se dizem preocupadas com a memória dos seus antepassados, apoiando esse mesmo governo que tem, por objetivo, reduzir tudo isso a sua mísera imagem e semelhança.

Quando realizamos o Pra ficar na história ainda não havia Bolsonaro. Não como candidato a presidente. Mas, mesmo assim, sempre me estranhou que o Luiz Henrique Fitarelli, nosso protagonista no filme, criticasse tanto a esquerda que, historicamente, sempre foi quem mais se pautou pelas demandas da área cultural, e apoiasse a direita que, salvo raras exceções, quase nunca priorizou o setor nas suas políticas de governo. Quer dizer, de um lado havia um Fitarelli quem, enlouquecidamente, lutava como um Dom Quixote contra os moinhos da gringolândia pela preservação da sua própria cultura e, dentre tantos inimigos, os governos de direita muito contribuíram para a dificuldade dessa inglória batalha. Por outro lado, um Fitarelli que desqualificava os governos de esquerda, justamente aqueles que poderiam ajudá-lo nessa batalha, de uma forma muito semelhante a como fazem os bolsonaristas hoje em dia. Se Fitarelli votou em Bolsonaro não sei, torço para que não. Após a estreia do documentário nos afastamos e poucas vezes voltamos a nos falar, no entanto, independente de Bolsonaro, tal contradição evidenciada ao longo das filmagens ainda hoje me dá um nó nos neurônios. Não que os governos de esquerda sempre tenham sido perfeitos no seu trato com as coisas da cultura, longe disso, mas convenhamos, não é por acaso que o atual presidente tanto se esforça para inviabilizar a arte e a educação do país. Não sejamos ingênuos, nossa condição de “inimigos” é consequência, também, da nossa identificação ideológica com os partidos e alguns políticos de esquerda.

Neste filme, realizado por nós da Epifania Filmes e Teimoso Filmes e Artes, em parceria com a Globo Filmes e Globo News, apresentamos um pouco deste amor do Fitarelli pela história da imigração italiana. Convencido de que deveria preservar a memória dos próprios avós – os nonnos, em italiano –, além de colecionar objetos, Fitarelli passou a reconstruir algumas casas antigas em uma propriedade sua, no interior de Garibaldi, comprada especialmente para isso, e, lá, mobiliou esses espaços conforme o passado que existia em sua memória. Uma capela, uma vinícola, uma ferraria, uma marcenaria e uma bodega, tudo montado como se estivéssemos voltando 150 anos da história da região, são os cenários que existiam até, pelo menos, a realização do longa-metragem.

Para muitos garibaldenses, entretanto, aquilo era “coisa de louco”. Afinal, Fitarelli estava gastando dinheiro colecionando coisas velhas que, para a grande maioria das pessoas, não tinham mais valor algum.

No entanto, a percepção dessas pessoas sobre o maluco que colecionava coisas que os outros colocavam fora mudou a partir de quando a Casa de Cinema de Porto Alegre se utilizou daquele espaço como set de filmagem para a série Decamerão – a comédia do sexo (Jorge Furtado, 2009), realizada em parceria com a TV Globo. Principalmente depois que a produção levou para a pequena cidade serrana artistas de renome nacional como Lázaro Ramos, Drica Moraes, Tonico Pereira, Matheus Nachtergaele, Daniel de Oliveira, entre outros tantos. Nesse momento o louco virou um visionário e, eu – de certa forma, outro louco – que estava em busca de um projeto de curta-metragem, propus filmar com ele um episódio para o falecido projeto Histórias Curtas, da RBS-TV. Dentre outras discussões, a ironia de a cidade enxergá-lo, primeiro, como um maluco e, depois, por conta do reconhecimento externo, percebê-lo como um empreendedor visionário seria a analogia perfeita para discorrer sobre nosso complexo de vira-lata, conceito cunhado por Nelson Rodrigues por conta da derrota do Brasil para o Uruguai na Copa do Mundo de 1958, em pleno Maracanã lotado, e que muito bem resume a baixa autoestima do brasileiro. Sobre isso, aliás, existem diversos estudos mas, recentemente, a filosofa Márcia Tiburi publicou um livro sobre o tema intitulado; Complexo de vira-lata: análise da humilhação colonial (2021). Indico a leitura, uma vez que eu mesmo o aproveitei na minha tese de doutorado sobre o cinema gaúcho de Porto Alegre.

Já o curta-metragem sobre o Fitarelli ficou muito legal. As imagens eram lindas, o personagem instigante, a causa nobre, ganhamos alguns prêmios – Melhor Direção e Melhor Montagem – e a Globo News se interessou em viabilizar a continuidade do projeto para transformá-lo em longa-metragem. Foi quando levamos Fitarelli para uma viagem à Itália, em busca das suas raízes. Através dessa viagem ao Velho Mundo, por comparação – diferenças e semelhanças – ao seu pequeno mundo na Serra Gaúcha, propusemos refletir as contradições inerentes à preservação da memória da imigração italiana, enquanto, ao mesmo tempo, instigamos a discussão sobre os motivos que levam os descendentes dos imigrantes italianos, no Rio Grande do Sul, sempre (pretensamente) orgulhoso da sua história, não pensarem duas vezes antes de demolirem a casa dos nonni em nome de um projeto imobiliário que lhes garanta dois ou três apartamentos como contrapartida.

“Eu colecionava coisas que os outros jogavam fora”, título desse artigo, é uma frase dita por Fitarelli no filme. De certa forma, parece até uma obviedade, afinal, o papel do colecionador é, justamente, guardar as coisas velhas que a maioria das pessoas considera desnecessárias e, portanto, podem ser descartadas.

Por outro lado, na sua simplicidade, essa frase poderia ser a síntese do Brasil, um país que insiste em apagar seu passado. E, quanto a isso, justiça seja feita, falamos de algo que antecede e transcende o próprio Bolsonaro. Este, aliás, não deixa de ser consequência desse equívoco continental. Já disse Karl Marx, ainda em 1852, que um povo que não conhece a própria história está fadado a repeti-la, primeiro como tragédia, depois como farsa. Por isso o título do filme, Pra ficar na história, além de ter sido extraído de um depoimento do Seu Elígio Parisi, fotógrafo de Veranópolis, quando o entrevistei para o curta-metragem Rio das Antas – vale da fé (Boca Migotto, 2008), foi escolhido pois representa, em si, uma reflexão pertinente.

É preciso, sim, que a nossa memória não se apague. Mas, também é preciso que a história seja constantemente atualizada, para ser estudada, aprofundada, revisitada, contestada, às vezes, mas, sobretudo, que se preste como referência para conjecturarmos o futuro que queremos para nós e para o nosso país. Do contrário, apenas “ficar na história”, numa analogia ilustrativa, é quase como aquele velho álbum de fotografias que existe, está lá guardado em uma gaveta, sendo consumido pelo tempo e pelas traças, o qual ninguém visita, ninguém folheia e ninguém se pergunta sobre quem são aquelas pessoas que, lá, seguem “congeladas” em imagem sobre um papel fotossensível amarelado. Talvez por isso a pesquisadora caxiense, Loraine Slomp Giron, no próprio Pra ficar na história, ao responder a pergunta de Fitarelli sobre o que ela achava da instituição do museu, respondeu que este, o museu, “é um objeto morto de uma história morta, tu nunca vai poder recuperar o passado e todos os objetos do passado, que não tem relação com a realidade vivida, são mortos também. Por isso, seu papel é representar uma farsa, a farsa do passado”. Afinal, como ela mesma complementa depois, sem a devida reflexão, o passado é apenas uma narrativa construída pelos mais fortes. Nesse sentido, muito pouco contribui, à história, um álbum de fotografias esquecido no fundo de uma gaveta ou mesmo objetos da colonização italiana empilhados em prateleiras de uma casa fechada, que se prestam, apenas, para o deslumbre hedonista do próprio colecionador. Mesmo que seja melhor estarem lá a virarem lenha no inverno rigoroso da Serra, sem a devida reflexão, permanecem mortos. E, talvez, aqui esteja parte da solução para o mistério. A arte, a cultura, a educação, a história, são construções coletivas, e que apenas fazem sentido quando compartilhadas. Do contrário, é como um Picasso na parede da mansão de um magnata. Está bem guardado, sim. É um Picasso, claro. Mas afastado do público nunca cumprirá seu papel como obra de arte que é, justamente, instigar e provocar a discussão. Assim, um Picasso na parede de um magnata deixa de ser arte para ser, apenas, um bom investimento.

Tenho o maior respeito pelo esforço quase solitário do Fitarelli em preservar a história da imigração italiana, do contrário não teria dedicado tanto tempo da minha vida realizando um filme sobre ele. Ainda mais por se tratar, não de um historiador, mas de um veterinário que, por paixão, foi estudando e aprendendo as inúmeras nuances do restauro e, aos poucos, também fez desta atividade sua nova profissão.

Entretanto, a falta de uma catalogação científica de todos aqueles objetos e o devido estudo metodológico que proporcionariam compreendê-los em seu tempo histórico é algo tão necessário – e óbvio – que, inclusive, foi uma das principais discussões levantadas por especialistas italianos quando, no Museo Etnografico de Cesiomaaggiore, na província de Belluno, promovemos a exibição da versão curta-metragem do Pra ficar na história, seguido de um debate com o próprio Fitarelli. As imagens captadas naquele dia acabaram não entrando no longa-metragem, mesmo assim, as questões levantadas pelos participantes do debate repercutiram no colecionador garibaldense que, em determinado momento, já nos encaminhando para o final do filme, em uma conversa com as filhas, acaba por expor a elas a necessidade de se encontrar uma saída para transformar a sua paixão em pesquisa científica. Se, desde então, isso de fato ocorreu, ou se Fitarelli seguiu apenas “brincando de parquinho particular”, como ele mesmo definiu sua relação pessoal com aquele espaço, também não sei. Torço para que essa possibilidade tenha prosperado e, assim, todo esse esforço sobreponha o exótico aproveitamento daquelas casas e objetos apenas com cenário cinematográfico de filmes, séries de TV, publicidade ou festas de casamento.

Desde o Pra ficar na história até o Isso aqui vai ser muito valorizado – aliás, também o segundo título é uma expressão retirada da entrevista de um depoente do filme – se passaram quatro anos ou até mais, se levarmos em conta que o longa-metragem começou a ser filmado ainda em 2015. Nesse período, apesar do discurso insistente por parte dos empresários – daí que surge a frase que virou título – sobre a importância de se preservar nosso patrimônio em nome do turismo da região, casas seguiram tombando, investimentos em cultura seguiram minguando e tanto a região onde se passa um e outro filme seguem, fielmente, e cegamente, apoiando um presidente que, com os perdão da palavra, esta “cagando” para cultura de quem quer que seja. Como isso é possível?

Ao meu ver, ainda precisamos muito refletir sobre as inúmeras nuances por trás de tudo isso mas, uma coisa me parece certa: o que nossos antepassados, aqueles mesmos que muitos de nós tanto dizem querer preservar suas memórias, nos ensinaram, de verdade, foi ganhar dinheiro e guardá-lo debaixo do colchão.

Ainda mais grave, os próprios antepassados, envergonhados das suas vidas miseráveis, no momento quando começaram a acumular capital, fizeram questão de apagar tudo que remetia à sua pobreza, afirmar sua vitória econômica e, a partir de então, exaltar suas conquistas financeiras. Nesse movimento de superação – não deixa de ser, obviamente – a erudição cultural não foi necessária e, portanto, foi, também, menosprezada. Por isso, acumular capital, mesmo que ao preço de apagar a própria história, foi o principal valor perpetuado pelas gerações desde quando os primeiros imigrantes triunfaram. Hoje em dia, apesar da “vida ganha”, no momento quando é preciso escolher entre preservar a memória ou demolir a casa velha do nonno em nome do lucro, é o segundo que pesa mais. A primeira alternativa apenas é considerada se, também ela, significar um bom negócio. É isso o que importa, ainda que tentem nos ludibriar com discursos bonitos sobre os valores intrínsecos ao passado. Nada muito diferente da prática exploratória de Bolsonaro quando, ao mesmo tempo que mente sobre seu governo priorizar a preservação do meio ambiente – até parece que engana alguém –, incentiva o garimpo ilegal em terras indígenas. Inclusive, se dependesse apenas dele, implodiria a Amazônia em busca de ouro e nióbio. Independente do que se deva preservar, se a memória de um povo ou o meio ambiente do qual este mesmo povo depende para sobreviver sobre a Terra, o que realmente importa, para uns e outros, é apenas o lucro acima de tudo.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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