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Crédito: Ricardo Stuckert

MAR ABERTO | Lula e a Jornada do Herói

por Boca Migotto

Iniciei este texto no dia 3 de outubro, um dia após a apuração do primeiro turno das eleições majoritárias de 2022, ainda absorto pela avalanche bolsonarista que, desta vez, ao contrário do pleito (dito) atípico de 2018, serviu para validar o governo Bolsonaro e explicitar que o buraco onde o Brasil se meteu é muito mais fundo do que imaginávamos. E acreditemos, ele já era bem profundo.

Passada a adrenalina da apuração e realizada a reflexão ao longo de várias horas de insônia, ficou a certeza sobre a incerteza do futuro desse país. Não só para mim. Imagino que qualquer pessoa minimamente bem informada percebeu o quão trágico foi o primeiro turno desta eleição e o quanto tudo pode ficar ainda pior. O Brasil não resistirá a mais quatro anos de Bolsonaro. Mas, infelizmente para a democracia, o bolsonarismo foi para cama, domingo a noite, ainda mais forte. Saber que mais de 40% dos eleitores do país validaram as atrocidades, as barbaridades, as brutalidades, as incompetências e as crueldades desse governo é aterrorizante. Ainda pior – se é que isso é possível – é compreender, na sua plenitude, os resultados desse movimento o qual, ontem, foi consagrado nas urnas pela mesma democracia que todos nós tanto defendemos.

O Brasil caminha, a passos largos, para um estado de permanente tensão social, orquestrado por um líder reconhecidamente – inclusive por ele próprio – antidemocrático. O lema “Deus, Pátria e Família”, tantas vezes exaltado por regimes autoritários ao longo da história, é, mais uma vez, apenas uma máscara utilizada para disfarçar o mal alojado por trás destas bandeiras. Afinal, nenhum autocrata, em busca de poder absoluto, vai assumir que pretende retirar os direitos da população. Bolsonaro não é o primeiro nem o mais criativo. Apenas para citar os mais notórios, antes dele vieram Mussolini, na Itália e Hitler, na Alemanha. Em nenhum destes lugares houve um aviso prévio mas, de repente, sem que a população tivesse se dado conta, o mal já havia se alojado em todos os segmentos da sociedade. As liberdades individuais foram tolhidas e, num primeiro momento, sobrou para aqueles que resistiram, contestaram ou não se enquadraram no padrão imposto. Num segundo momento, no entanto, já não havia régua para medir quem era amigo ou inimigo. Todos estavam sujeitos a ataques, prisões, torturas e assassinatos. Inclusive os aliados de primeira ordem.

Retomando as eleições do último domingo, apenas para ilustrar rapidamente, nós, brasileiros do Rio Grande do Sul, elegemos, para o Senado, Hamilton Mourão, um defensor aberto da Ditadura Militar – e, portanto, de um estado de exceção –, em vez de optarmos por um democrata como o ex-governador, Olívio Dutra. Mas a vergonha não é apenas gaúcha. Paranaenses elegeram Sérgio Moro, responsável pela maior farsa judicial que esse país já viu, e paulistas elegeram Marcos Pontes, “o astronauta que enxerga a terra plana”. No Distrito Federal, Damares Alves, aquela que além de ver Jesus no pé da goiabeira, acima de tudo também se notabilizou, quando no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pela defesa das cores que meninos e meninas deveriam usar. Embora isso pareça uma bobagem, é assim que as imposições começam. Mas sigamos, pois os equívocos não se restringem ao Senado. Para Câmara Federal, salvo exceções, diversos estados elegeram uma penca de capitães disso e coronéis daquilo. Em quatro anos de Bolsonaro apenas cegos não perceberam o quão incompetentes, e até corruptos, são nossos militares quando em cargos públicos. A pandemia é um exemplo claro disso.

Ainda mais grave. Eu diria, gravíssimo, no momento mais crítico da humanidade, quando enfrentamos um inevitável “ponto de não-retorno” da crise climática, elegemos um ex-Ministro do Meio Ambiente que passou boiadas inteiras sobre indígenas, ambientalistas, rios e árvores. Inclusive apontado, pela Polícia Federal, como traficante de madeira nobre.

Para espanto geral da nação, Salles fez uma votação superior a de Marina Silva, uma histórica defensora do meio ambiente. Os cariocas, por sua vez, inexplicavelmente consagraram, com uma votação expressiva, o ex-Ministro da Saúde, responsável pela (falta de) gerência da pandemia de Covid-19, que matou quase 700 mil pessoas no país. Por desdenhar a falta de oxigênio em hospitais de Manaus, esse militar da ativa teria permitido que inúmeras pessoas morressem asfixiadas, além de atrasar a compra das vacinas que, segundo cálculos conservadores, poderia ter salvo mais de 200 mil vidas. Ainda, o Paraná consagrou Deltan Dallagnol e, em São Paulo, foram reeleitos Eduardo Bolsonaro, que só enxerga armas na sua frente, Rosângela Moro, e a inexpressiva, porém insuportavelmente barulhenta, Carla Zambeli. Magno Malta, Jorge Seif Jr., Tereza Cristina, Hélio Lopes, Carlos Jordy e Sóstenes Cavalcante são alguns outros nomes que completam a lista de bolsonaristas no Congresso mais reacionário desde a redemocratização.

Para governar os principais estados da federação também elegemos bolsonaristas por todos os cantos. Os mais preocupantes, no entanto, são Cláudio Castro, no Rio, e Romeu Zema, em Minas Gerais, ambos ainda no primeiro turno. E garantimos um segundo turno para o carioca, Tarcísio de Freitas, em São Paulo, e o intolerável Onyx Lorenzoni, no Rio Grande do Sul. O segundo ainda não está garantido, mas o Tarcísio, convenhamos, terá que fazer força para perder para o Haddad. Para fechar com chave de cloroquina o domingo de terror e pânico, a votação expressiva de Bolsonaro, mesmo ficando atrás de Lula, foi um balde de água fria na esperança de que o Brasil estaria, enfim, acordando do pesadelo fascista. Não está. Bolsonaro foi para o segundo turno em segundo lugar, mas com um gosto marcante de vitória, afinal, nenhuma pesquisa apontava uma votação tão expressiva já no primeiro turno. Parece que o voto útil, que tanto se pediu para resolvermos quatro anos de desgoverno, foi ouvido, mas pela extrema-direita. Agora, imaginem o que será desse país se, por acaso, Bolsonaro realmente vencer as eleições no dia 30 de outubro. Se isso não fosse suficientemente assustador, levando em conta o histórico dessa campanha até aqui, as próximas quatro semanas, provavelmente, serão marcadas pela violência em todas suas variáveis possíveis. Hoje mesmo, quarta-feira, foi a vez de um petista matar um bolsonarista a facadas. Não há justificativa plausível para tal crime, mas estava na cara que era apenas uma questão de tempo para isso ocorrer. Depois de vários petistas mortos pela intolerância bolsonarista, chegaria a hora quando um se negaria oferecer a outra face. Num segundo mandato de Bolsonaro, a incitação ao ódio escalará níveis alarmantes.

É preciso que Lula vença, pois, do contrário, com o Congresso na mão, apoio dos governadores nos principais estados, boa parte da polícia e forças armadas aparelhada e, segundo os fatos, relações íntimas com integrantes da milícia carioca, nem mais o STF conseguirá resistir à força do bolsonarismo. Impeachment de ministros da justiça, em desacordo com o autoritarismo do presidente, passará a ser uma realidade. Um STF “terrivelmente bolsonarista” será o objetivo para, assim, Bolsonaro ter o caminho livre para mudar a Constituição conforme sua vontade, calar a mídia e impor seus devaneios autocratas. Boa parte dos brasileiros, parece, não têm a mínima ideia do que estão fazendo. E quando se derem conta será tarde demais. Segundo Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, é assim as democracias morrem. Corroídas por dentro, disfarçadas por um verniz constitucional, mas de portas abertas para todo tipo de contravenção.

Por isso tudo, qualquer análise fria dos fatos nos guia para constatações aterradoras. Mais do que nunca, eleger Lula e tentar impedir a eleição dos governadores bolsonaristas que disputam o segundo turno, é vital para a manutenção da democracia brasileira. Diria até mais, é uma questão de vida ou de morte. Não apenas para o Brasil e para os brasileiros, mas para toda a humanidade afinal, a proteção da Amazônia e, portanto, do nosso futuro no planeta, também está em jogo. Quer queiram, quer não, nesse cenário desolador, a esperança está toda sobre os ombros de Lula. Parece até um roteiro de filme.

E é mesmo inegável que a vida de Lula impressiona tanto que dá até filme. Não por acaso, embora mediano, um já foi filmado. Lula, o filho do Brasil (2009), dirigido por Fábio Barreto. No entanto, este retrata apenas uma parte da vida do ex-Presidente. Para conferir, nas telas, a sua ascensão à presidência, é preciso recorrer ao excelente documentário de João Moreira Salles, Entreatos (2004). Apesar da quase inverossímil trajetória do menino que saiu do Nordeste, com a família, num pau-de-arara, para, no centro do país, décadas depois, vir a se tornar Presidente da República, a fase mais recente da sua vida, desde quando foi preso, é ainda mais impressionante. Afinal, sair da cadeia, onde esteve detido por conta de um conchavo de forças políticas – apesar dos propagados indícios, nada sobre os motivos que o levaram a prisão foi, de fato, comprovado –, para voltar a ser presidente nos braços do povo, e apoiado por muitos dos mesmos que contribuíram com a derrocada do PT, é algo tão surreal que, se fosse roteirizado, precisaria ser minimizado para não correr o risco de parecer falso.

O “presidiário” que se tornou a única esperança do Estado Democrático de Direito é um sobrevivente. Renasceu das cinzas após ser solto e, mais uma vez, suplantou o próprio destino que, a ele, foi por tantos determinado. Até porque, para começar, Lula nem deveria estar entre nós.

Quantos milhares de nordestinos, assim como ele, não morreram pelos caminhos da vida, de fome ou frio, sob as marquises da maior cidade do país? A leitura da sua recente biografia, Lula – Volume I, escrita por Fernando Morais, revela as incontáveis agruras pelas quais ele e sua família passaram quando migraram para São Paulo. Os lugares insalubres onde moraram, a falta de dinheiro para comer, o pai alcoólatra, que fez com que a mãe pegasse seus oito filhos e saísse de casa em busca – mais uma vez – de uma vida melhor, a morte prematura da sua primeira esposa, a depressão por conta disso, o trabalho pesado na indústria metalúrgica, onde Lula perdeu um dedo, a prisão devido a sua participação na greve dos trabalhadores, quando, inclusive, morreu sua mãe, e a superação disso tudo para ajudar a fundar o maior partido de esquerda da América Latina e vir a se tornar o primeiro presidente de origem operária do Brasil. Uma verdadeira “jornada do herói”. Lula é um gigante, e poderíamos parar por ai. No entanto, quis a história que Lula fosse preso. Encarcerado na sede da Polícia Federal, em Curitiba, Lula ainda perdeu seu irmão, Vavá, quando, inclusive, de forma desumana e injustificada, lhe foi negado o direito de participar do funeral e, ainda mais dramático, recebeu a notícia da morte do seu neto, Arthur Lula da Silva, morto aos 7 anos de idade.

Foi Joseph Campbell que escreveu “A jornada do herói”, um método narrativo utilizado para a construção de histórias e roteiros cinematográficos. “A jornada do herói” foi apresentada em 1949, pelo próprio Joseph Campbell, em seu livro “O Herói de Mil Faces”. No entanto, foi Christopher Vogler o responsável por, décadas depois, levar a teoria de Campbell para os estúdios da Disney. Com base no texto orginalmente escrito por Campbell, Vogler, então, desenvolveu um guia chamado “A Jornada do escritor: estruturas míticas para novos escritores”, publicado em 1992. Basicamente, de forma rápida e simples, a metodologia estudada e elaborada por Campbell apresenta uma estrutura narrativa padrão que, ao longo de décadas, já era replicada nos filmes de tradição hollywoodiana. Isso porque Campbell estabeleceu uma estrutura simples, mas extremamente eficaz, que pode ser reproduzida ad infinitum em diversas histórias, desde os filmes de super-heróis, passando por Rocky Balboa e Rambo, até o Rei Leão. Apesar das adaptações necessárias ao longo dos séculos, inclusive para descontruir o tedioso maniqueísmo entre o bem e o mal, de uma forma ou de outra, desde antes dos gregos, a estrutura é basicamente a mesma. Mudam os personagens, as paisagens, os desafios, os objetivos, mas o mecanismo estrutural, salvo raras exceções, segue o mesmo roteiro.

Nessa estrutura, toda história, calcada na jornada deste herói, sempre inicia de um “lugar comum”, uma vida pacata, uma certa simplicidade que é quebrada por um “chamado”. Pode ser uma doença rara que precisa de uma cura, o sequestro de uma criança, uma injustiça social, salvar o planeta de seres alienígenas. O importante é que aquilo que tirará o anônimo herói da sua pacata vida seja um motivo nobre. O herói, claro, vai relutar. Mas cederá ao chamado e se lançará em uma aventura para a qual ele mesmo não tem certeza se será capaz de superar. Isso é importante, pois dá ao herói características humanas e provoca, no espectador, a torcida pelo sucesso da sua jornada. Em algum momento de dificuldade, o herói se encontrará com um mentor. É ele o responsável por dar aquele empurrãozinho que o herói precisa para seguir sua jornada. Então, ocorrerá o “cruzamento do primeiro limiar”. Isso é fundamental para a autoconfiança do herói, afinal, uma série de testes e desafios, bem como inimigos, estarão à espreita ao longo da jornada. O herói precisará superá-los, no entanto, será necessário muita resiliência, coragem e força para que ele vença os desafios.

Muito importante, na estrutura narrativa, é que a jornada seja sublinhada por reflexões psicológicas do próprio herói. Um segredo de vida, alguma contradição ou um trauma interno a serem, também, superados, deve acompanha-lo.

Assim como Lula, e qualquer um de nós, o herói não é perfeito. Mas são justamente os defeitos que ajudam a construir suas características humanas. Por isso, para vencer o desafio externo, ele precisará também resolver seus próprios conflitos internos. É nesse momento que a provação se apresenta e o herói é desafiado. Vai ser difícil vencer o desafio, por isso, é inevitável que ocorra a transformação psicológica do herói. Que ele evolua de alguma maneira. Apenas após superados os desafios – interno e externo – então, virá a “recompensa” e “o caminho de volta para casa”, para o seu mundo e para aqueles que ele ama. Agora o herói está transformado, é outra pessoa. Antes disso ocorrer definitivamente, entretanto, o inimigo que todos julgavam derrotado, reaparece. Um novo embate ocorre e é preciso lutar uma última vez antes da conclusão final da história e da “redenção do herói”. Final feliz.

Pensando em Lula, e em todas as dificuldades enfrentadas por ele ao longo da vida, visualizo nas diversas fases da sua história essa mesma estrutura. Podemos pensar na sua infância pobre e em como aquele menino que mascava chiclete “usado” por não ter como comprar um novo, veio a se tornar o maior líder popular desse país. Apenas isso uma verdadeira jornada de superação e redenção. Mas vai além, também podemos pensar que esse líder popular das greves do ABC, no final da década de 1970 e início dos anos 1980, que mal teve oportunidade de estudar e, mesmo assim, foi um nome importante na luta dos trabalhadores e da própria redemocratização do Brasil, veio a se tornar Presidente da República.

Por fim, no entanto, sua história mais recente, marcada pela prisão mediante um processo judicial comprovadamente ilegítimo, é ainda mais surpreende. Lula sai da cadeia para liderar uma aliança de forças que pretende salvar o Brasil das garras nefastas do neofascismo bolsonarista. A estrutura da “jornada do herói” está quase toda desenhada através desse movimento. Percebam, Lula é privado da sua liberdade, atacado em sua honra e acaba preso por 580 dias. Perde a esposa, o irmão e o neto. Mesmo preso e injustiçado, mantém um discurso ético, reforça sua crença na democracia, emana a bondade em detrimento ao ódio, afirma não buscar revanchismos mas, sim, seguir lutando em nome dos mais fracos e oprimidos. Ao ser posto em liberdade, é “chamado” para concorrer às eleições por ser o único nome capaz de derrotar Bolsonaro, o anti-herói perfeito. Afinal, Bolsonaro está no poder, é ardiloso, defende as armas, incita o ódio e trabalha pelo mal. Mesmo que tentemos evitar o maniqueísmo entre o bem e o mal – até Bolsonaro deve ter alguma coisa boa – é fato que o conflito entre ambas forças se estabelece. Lula precisa lutar contra a máquina do estado, nas mãos de Bolsonaro, contra as Fakes News, que visam descontruir seus valores, e contra os poderosos, aqui representados por diversos setores reacionários da sociedade. Para isso, Lula precisa de aliados, mentores e seguidores. Consegue, apesar das dificuldades, constituir uma força ampla realmente capaz de derrotar o inimigo. Reúne ao seu lado ex-adversários como Geraldo Alckmin. Alguém lembra da parceria entre Rocky Balboa e Apollo Creed?

Lula está quase lá, as eleições se aproximam e ele tem a chance de resolver a questão ainda no primeiro turno. No entanto, algo sai errado.

O inimigo era mais poderoso do que se poderia imaginar. Conta com aliados igualmente poderosos, impõem derrotas significativas e está ainda mais forte do que antes. Mesmo assim, Lula e seus companheiros, agora acrescidos de nomes como FHC, José Serra, Roberto Freire, Simone Tebet, Ciro e tantos outros, não desistem. A batalha é prorrogada, a vitória indefinida e a derrota é uma possibilidade. O final está em aberto, será decido no final do mês. E o herói precisará ainda mais resiliência e autoconfiança para superar o mal, na derradeira batalha. A batalha final, quando se decide o tudo ou o nada.

Quem me conhece sabe que não sou um lulista de carteirinha. Inclusive, muitas vezes, o critiquei abertamente por diversos motivos. Também não sou ingênuo de acreditar, cegamente, que Lula não estava ciente quanto à corrupção do seu governo. Nesse caso, o ingênuo seria Lula, pois ele sempre soube, era preciso jogar o jogo. Ao mesmo tempo, se os governos Lula foram positivos para o Brasil, o mesmo não se pode dizer do governo e meio de Dilma Rousseff. Isso é fato, basta olhar os números. Contudo, conforme Campbell, o herói é um ser imperfeito. E imperfeito somos todos nós. A corrupção é inerente ao ser humano e, por isso, houve corrupção no Império Romano, há corrupção em todos os países, até na Suécia, na Dinamarca e no Japão, e, no Brasil, esta começou assim que o primeiro europeu aqui pisou suas botas encardias. Quem pode afirmar que os povos originários já não eram adeptos da corrupção?

Com isso não quero dizer que devamos “passar pano”, mas sempre que elegemos alguém, única e exclusivamente, com o discurso de acabar com a corrução, nos demos muito mal. Apenas na História do Brasil, temos Jânio Quadros, Collor e próprio Bolsonaro para não me deixarem mentir. Ironicamente, a mesma Dilma que não aceitou se corromper, foi vitima de um processo de impeachment e sofre, até hoje, as consequências da sua integridade moral. Aliás, golpe. Golpe, este, o qual, inclusive abriu as portas do inferno onde, hoje, estamos todos imersos. Portanto, se por um lado obviamente é preciso, sempre, trabalhar pela diminuição da corrupção, também é necessário racionalizar e perceber, a partir da própria história, que esta é uma bandeira quase sempre levantada, justamente, pelos políticos mais demagogos. “Que atire a primeira pedra quem nunca pecou”, não foi Jesus que disse isso? Geralmente, quem aponta o dedo para os pecados alheios está, na verdade, se enxergando no espelho.

Lula não é perfeito porque é humano e, comparado a Bolsonaro, o simples fato de ser humano já me soa como um diferencial determinante nesse jogo sórdido que está em curso no Brasil. Mesmo imperfeito, nesse momento Lula é a única opção frente o que se avizinha caso Bolsonaro seja reeleito.

Não há voto branco ou nulo que alterará o desastre social e político desse país caso Lula perca essa eleição. Convenhamos, apesar dos erros do PT, os valores que sempre pautaram as esquerdas dialogam muito melhor com uma sociedade mais justa e inclusiva do que o discurso de ódio da extrema-direita. Diminuir a desigualdade social, garantir e qualificar o acesso à educação aos excluídos, melhorar o salário mínimo, gerar empregos, proteger nosso meio ambiente, garantir as liberdades individuais de cada cidadão, melhorar o acesso à saúde, desenvolver o país de uma forma mais homogênea, defender os direitos básicos de todos os brasileiros, conforme está escrito na nossa Constituição, bem como, a manifestação religiosa de todas as pessoas, conforme suas crenças, e proteger as minorias, contribuído com a diminuição dos preconceitos, me parece, são pautas muito mais coerente com aquilo que está escrito na Bíblia, com aquilo que contribui para com a construção de uma pátria igualitária e soberana e, por fim, com a harmonia e felicidade de todas as famílias. Tudo isso, obviamente, é muito difícil de se construir e de manter mas, mais uma vez amparado pela história, são conquistas que apenas foram obtidas através de regimes plenamente democráticos.

Nos filmes hollywoodianos, sabemos, o final é sempre feliz. O inimigo, que representa o mal, é derrotado. O herói é aclamado e retorna vencedor para o seu mundo. E os espectadores voltam para suas casas, depois das luzes do cinema acesas, com a certeza que torcer para o mocinho é sempre a garantia de que se faça justiça. Na vida real, no entanto, muitas vezes, é a injustiça que prevalece. E no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, nós sabemos bem o quanto injusta a vida pode ser. Maniqueísmos a parte, me parece que há dois lados bem definidos nessa história. A manutenção da nossa frágil democracia versus a escalada de um regime autoritário. Não sei se o leitor concordará comigo, mas eu credito plenamente que o bem está mais associado ao primeiro. Se assim for, é Lula quem o representa. Portanto, no segundo turno vai depender de cada brasileiro decidir entre democracia e fascismo. Entre Lula e Bolsonaro. Entre o bem e o mal. A jornada está chegando ao fim e a vitória do herói, dessa vez, depende de todos nós.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento está lançando seu novo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado, defendida em 2021. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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