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MAR ABERTO | Volta às aulas

por Boca Migotto

Ao contrário de muitos amigos de infância, eu passava as férias de verão esperando ansiosamente pela volta às aulas.

Não me julguem. É claro que eu gostava das férias, entretanto, para mim, janeiro e fevereiro eram meses tediosos. Enquanto todos saiam da cidade em direção às praias, deixando-a às moscas e fustigada por um calor angustiante, eu permanecia lá durante todo o verão, perambulando, sozinho, pelas mesmas ruas de sempre, então vazias e abandonadas.

Meus pais nunca viajavam. Praia, para eles, era um lugar inóspito, cheio de areia, muito sol, maresia e caro demais. Mas não era apenas o litoral que os repelia. Nem ao menos uma bandinha por algum rio próximo à cidade rolava. A única vez que o meu pai me levou pescar, por exemplo, foi um evento tão decisivo que ainda hoje guardo a memória viva daquela tarde com ele. Por isso, para mim, uma criança, as férias de verão eram um longo período profundamente frustrante. Bastava passar o Natal para que tudo se transformasse em monotonia. Sobrava o calor, faltavam os amigos para brincar. Nesses termos, era melhor mesmo a volta às aulas.

No entanto, mesmo com o início do ano letivo, em março, a primeira semana na escola ainda era bastante difícil. Todos meus amigos regressavam de suas viagens cheios de história para contar e eu ali, reduzido às minhas infelizes e solitárias lembranças de verão. Muitas vezes até mentia que também havia saído da cidade, para não me sentir diminuído demais frente às memórias empolgadas dos meus colegas. Portanto, escrever aquelas clássicas redações do tipo “o que vocês fizeram nas férias” era particularmente humilhante. Ou porque não havia o que escrever, ou porque era preciso fantasiar muito para fazer frente a um museu de grandes (e velhas) novidades. Logo, no entanto, viria o inverno, e isso tudo seria apenas o passado de um futuro inevitável, quando, novamente, as ausências se repetiriam. Mas, até o próximo dezembro, ao menos haveria muito ainda o que brincar com meus amigos. A minha primavera era o outono quando a cidade, de fato, voltava a respirar sua normalidade.

Hoje, penso que esse desejo reprimido de viajar, certamente, ajuda a justificar minha impermanência adulta. Era tanta vontade de sair de Carlos Barbosa que, desde o momento quando descobri que podia “caminhar” sozinho e tinha o mínimo de condições financeiras para isso, passei a viajar sem parar. Nunca importou muito para onde e como. Podia ser para perto de casa ou para o outro lado do mundo. Podia – e foi – de ônibus, bicicleta, trem, carro, avião ou até a pé, de carona. O importante era o movimento e, através dele, o contato com outras pessoas, seus hábitos, histórias e culturas. De preferência, que tudo isso fosse fotografado. Nunca voltei o mesmo de uma viagem. E, foi uma viagem – sei exatamente qual – um dos mais importantes “pontos de virada” da minha vida.

Acostumado com os deslocamentos frequentes, me obriguei a sossegar com a pandemia.

Aos poucos, contudo, passamos, eu e a Patrícia, minha companheira, a procurar destinos próximos e que nos permitissem um mínimo de segurança sanitária. Nesse período, desbravamos os Aparados da Serra, o Litoral Sul, as praias mais próximas de Porto Alegre em momentos de baixa temporada, São Miguel das Missões, Urubici, em Santa Catarina. Enfim, com responsabilidade, máscaras e muito álcool 70% no carro, conseguimos driblar relativamente bem esses dois primeiros anos de pandemia.

No final do ano passado, então, começamos a cogitar a possibilidade de uma viagem para o Uruguai, para passar a virada de ano por lá. Depois de muito refletir se seria o caso arriscarmos uma viagem internacional, nesse momento, e passar por todos os trâmites sanitários para vencer a burocracia imigratória, acabamos decidindo por aproveitar essa “janela” pandêmica e apresentar, ao Arthur – meu enteado que está com quase 8 anos de idade – sua primeira viagem para outro país. Assim, após pipocarmos em São Lourenço do Sul, para um primeiro banho de Lagoa dos Patos, e em Pelotas, para pernoitarmos na casa de amigos que estavam no Laranjal, no dia 29 de dezembro, finalmente, cruzamos a fronteira em direção a um novo ano montevideano.
Já na nossa chegada, uma onda de calor que fazia as temperaturas beirarem os 40 graus botava fogo em uma floresta seca à beira da rodovia. Algo impressionante. A altura das chamas e a intensidade do calor nos permitia imaginar o que são aqueles incêndios os quais, todo ano, através das imagens que nos chegam pela TV e pelas redes sociais, vemos consumir casas e cidade inteiras na Califórnia e/ou em países da Europa como Portugal e Espanha. Um cenário de guerra o qual, ao fundo, contrastava com a imagem, em primeiro plano, de milhares de uruguaios, em seus carros, alheios a tudo aquilo, fugindo em direção ao litoral. Punta del Este era o principal destino.

Enquanto os carros saíam de Montevideo, a gente chegava. E isso nos aliviava. Desde que essa pandemia começou, passamos a intensificar uma característica nossa de estarmos, sempre que possível, na contramão do fluxo. Praticamente todas as viagens mencionadas acima foram feitas dessa forma. Assim, mais uma vez, enquanto uma multidão estava indo para o litoral gaúcho ou Santa Catarina, a gente arriscou o Uruguai. Enquanto no próprio Uruguai, todos estavam saindo da cidade em direção ao Atlântico, nós estávamos pegando uma praia de rio, quase vazia, em Pocitos. E, quando o movimento foi de retorno à capital, nós já estávamos descobrindo outras praias, quase desertas e certamente muito inusitadas, do Rio da Prata, na “costa oeste”.

Nessa lógica de andar (sempre) na contramão, posso afirmar, curtimos o país vizinho com certa segurança sanitária. Ao menos, muito maior que as imagens das praias gaúchas e brasileiras que nos chegavam pelas redes sociais. A virada foi particularmente especial. Com os pés mergulhados nas águas do Prata, a “rambla” relativamente vazia, nos deleitamos com a alegria do pequeno Arthur, empolgadíssimo com os fogos que estouravam no céu e refletiam na calmaria do rio. E assim, nesse ritmo, seguimos. Na manhã seguinte deixamos Montevideo bem cedinho para seguir viagem, pipocando de lugar em lugar até, enfim, fecharmos as férias – e o ciclo iniciado em São Lourenço – na cidade de Tavares, isolados em um chalé inesperado, no meio do mato, localizado entre a Lagoa do Peixe, o oceano e a Lagoa dos Patos. Quem quiser dicas, pode perguntar a vontade. E quem quiser ver algumas fotos, postei várias imagens dessa “aventura” – conforme definiu o Arthurzinho – no meu Instagram.

Imagino que, ao contrário de mim, quando criança, o Arthur terá muito o que escrever em sua redação de volta às aulas.

Inclusive sobre a História da América Latina, que tanto me empolga. Tenho uma paixão imensurada por esse continente e sua – nossa – gente. E uma viagem também serve para isso. Por isso, entre um passeio e outro, o piá – como o chamo, às vezes, carinhosamente – muitas vezes me ouviu fabulando histórias sobre a nossa História. Portanto, meu momento de êxtase foi quando, na Fortaleza de Santa Tereza, já bem próximo do Brasil, ao ver uma maquete de Montevideo quando a cidade não passava, também ela, de apenas uma fortaleza militar, ele reconheceu a “Puerta de la Ciudadela”, um dos símbolos mais importantes da capital uruguaia e que, desde 1959, quando foi reconstruída no seu lugar original, serve como uma espécie de portal entre a Praça da Independência e a Cidade Velha. Ou seja, ele, sozinho, estabeleceu a relação entre o monumento pelo qual passou, em Montevideo, no nosso primeiro dia na cidade, a história que eu tentei lhe contar e aquela maquete, vista quase uma semana depois, quando já estávamos a um passo da fronteira com o Brasil. Nesse momento tive certeza que a viagem havia sido, realmente, um diferencial na ainda curta experiência de vida do pequeno Arthur.

Já eu, confesso, está sendo bem difícil retomar o cotidiano porto-alegrense nesse início de 2022. Apesar da esperança de, este ano, ao menos, acabarmos com um pesadelo que nos persegue há quatro longos anos, tudo indica que 2022 não será nada fácil. Pior, meu realismo pragmático me diz que mesmo 2023, mesmo com um novo governo, seguirá sendo muito difícil. Afinal, não há solução mágica. Um novo presidente, por melhor que seja, é apenas um presidente. Enquanto nós, brasileiros, não aprendermos isso para votarmos mais conscientemente nos nossos representantes – e deputados e senadores são tão ou até mais importantes que um presidente – seguiremos vítimas da nossa própria ignorância política. O que é determinantemente decisivo, uma vez que vítimas do tal “mercado” e da economia já somos há séculos. Nada novo no front, invariavelmente é isso o que ocorre com um povo que não conhece e valoriza a sua própria História.

Mas, mesmo sabendo disso, e mesmo sem muitas perspectivas quanto ao futuro, 2022 será decisivo simplesmente porque será o ano quando os brasileiros decidirão entre a humanidade e a barbárie. E, apenas por isso, mesmo com toda a desesperança do mundo, resistir e lutar é – e será – imprescindível. Portanto, teremos muito o que discutir nos próximos textos, ao longo desse ano tão decisivo para todos nós. Por enquanto, enquanto me readapto ao verão “forno-alegrense”, apenas desejo que tenham gostado da minha “redação de férias”. Feliz año nuevo para todo nós.

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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