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Imagem: Tirinha de Roberto Fontanarrosa/Reprodução

MAR ABERTO | Contrabandistas e os inúmeros lados de uma fronteira

por Boca Migotto

Nestor Garcia Canclini é um antropólogo e filósofo argentino que ficou muito conhecido nos anos 1990, quando publicou o livro Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade. Este livro foi meio que um divisor de águas do pensamento latino-americano voltado à Antropologia pois, a partir dele, os efeitos da Globalização e da queda das fronteiras no mundo, em especial na América Latina, tiveram um novo enfoque. Seu estudo foi tão importante que ele inaugurou uma nova linha de pensamento para os estudos sociais no continente.

Eu conheci o trabalho deste argentino, radicado no México, ainda na graduação. Era a segunda metade dos anos 1990 e ele estava na moda. Não havia uma única disciplina das Humanas – naquela época ainda importantes para os cursos da Comunicação – que não indicasse a leitura de um texto dele. Nessa época, talvez, eu ainda não tivesse maturidade suficiente para me aprofundar nas suas leituras. Eu o lia, sim, mas não o estudava. O que é completamente diferente.

Depois, ao voltar para os estudos acadêmicos, no mestrado, em 2008, ai sim. Lá estava ele novamente e dessa vez tive que me aprofundar em vários dos seus textos. Confesso que eu achei que ele sairia de moda, afinal, a globalização veio, o liberalismo tomou conta do planeta mas, por mais que se gritasse, as fronteiras seguiram lá, firmes e fortes como o Muro da Mauá, em Porto Alegre. No entanto, justamente por isso, Canclini foi ficando ainda mais importante. Por isso, inclusive, quando fiz o doutorado e me coloquei a pensar o conceito de fronteira para pensar o cinema feito no Rio Grande do Sul, este Estado, por si só, forjado nas guerras de fronteira, foi impossível fugir do Canclini. Lá estava ele mais uma vez. Foi quando compreendi que alguns autores insistem em seguir contigo ao longo de décadas sem que, muitas vezes, tu mesmo percebas. Bueno, retomei alguns textos dele e foi quando um personagem argentino, de nome “Inodoro Pereyra, o renegado”, se materializou em minha frente.

Em seu livro, citado acima, Canclini se utiliza desse personagem, criado pelo artista gráfico argentino Roberto Fontanarrosa, para analisar a relação que se estabelece, na Argentina, entre o folclore, visto como símbolo do atraso, e aquilo que seria moderno, no sentido de contemporâneo. Publicado pela primeira vez em 1972, Inodoro Pereyra, segundo o próprio Canclini, parodia a “[…] exuberância kitsch da temática folclórica na mídia dessa época”. Para fazer isso, então, o cartunista se utiliza dos regionalismos linguísticos e dos estereótipos do gaúcho, exagerando-os ao ponto de tornar tais aspectos ainda mais inverossímeis quando colocados ao lado da difusão cultural moderna. O autor brinca com os limites entre o folclore – percebido como menor, uma vez que tem suas raízes no campo – e a cultura urbana, percebida como “sofisticada”. Dessa forma, Fontanarrosa se utiliza dos estereótipos ligados ao folclore do gaúcho para estabelecer um diálogo de cumplicidade com as pessoas que, com ele, se identificam, ao mesmo tempo que busca desconstruí-los a partir do seu personagem. Isso inclusive explicaria por que tentativas de publicação das histórias desse personagem, em outros países, nunca funcionaram bem. Por outro lado, dentro da Argentina, Inodoro Pereyra contribui para uma “peleia braba” entre aqueles que “há um século, discutem se a política cultural deve optar pela civilização das metrópoles, rechaçando a barbárie do autóctone, ou por uma reivindicação enérgica do nacional-popular”.

Trouxe Canclini para esse texto, bem como sua analise sobre esse personagem do folclore argentino, porque ambos ilustram bem inúmeras nuances observadas, por mim, ao longo dos últimos anos de vida, produção e estudos.

Sempre fui meio que encantado pelas fronteiras e sua capacidade de definir mudanças radicais a partir de uma singela linha desenhada no mapa. Para Canclini, Inodoro Pereyra, sentado à sombra de uma figueira enquanto mateia na companhia do seu fiel amigo cusco, é a própria analogia da fronteira. Imaginemos, então, a partir das palavras, o universo desse personagem e como ele é aproveitado para problematizarmos as questões da fronteira. Em seu livro, Canclini expõe uma tira na qual Inodoro saboreia seu mate amargo sob uma figueira, em meio ao pampa – no caso argentino, de la pampa –, quando vê surgir um homem aos gritos. Canclini o denomina “Perseguido”, pois ele está fugindo da política. Ao desespero de “Perseguido”, enquanto um batalhão de policiais corre atrás dele, então, Inodoro interpela: “E por que tanto êxito, vivente?”. É quando Perseguido relata que “é contrabandista de fronteiras”.

Ao compreender os motivos que levam aquele pobre gaúcho a fugir da polícia daquele jeito, Inodoro, agora complacente à situação do “vivente”, lhe pergunta: “E o que contrabandeias?”. “Perseguido” responde: “Já não te disse, homem? Fronteiras: balizas, barreiros, marcos, arames farpados, tijolos, linhas pontilhadas…”. Canclini brinca se tratar de um “metacontrabando”, uma vez que “Perseguido” está sendo procurado não por contrabandear produtos entre, através, das fronteiras, algo que, inclusive, caracteriza a própria essência dos primeiros gaúchos, mas, sim, por contrabandear a “fronteira” em si. Ou seja, “Perseguido” ganha a vida negociando produtos utilizados para construir cercas e muros e, assim, separar países. Imagino que Donald Trump, quando presidente, pode ter negociado alguns produtos com o “Perseguido”, a fim de construir o muro que define a fronteira entre os Estados Unidos e o México.

Esse personagem, o gaúcho, independentemente de ser aquele nascido no Rio Grande do Sul, na Argentina ou no Uruguai, o qual se originou do crime do estupro de mulheres nativas por espanhóis e portugueses, tornou-se um bastardo errante, sem pátria e sem dono, que livremente transitava pela região, sobrevivendo de pequenos crimes, dentre os quais, o próprio contrabando. Inodoro Pereyra, gaúcho dos quatro costados, portanto, é representante desse homem fora-da-lei, que desconsiderava os limites políticos impostos por assinaturas em acordos internacionais e seguia sua vida, despreocupadamente, cantando sua pretensa liberdade sobre o lombo do cavalo, tal qual o músico e compositor pelotense Vitor Ramil muito bem ilustrou em sua canção Deixando o pago, do disco Ramilonga, lançado em 1997. Logo, o personagem “Perseguido”, aos olhos de Inodoro Pereyra, não é um fora-da-lei por transgredir as fronteiras da mesma forma como o fazem tantos outros contrabandistas, mas, pelo contrário, ele contribui com a sua construção. Perseguido contrabandeia a própria fronteira. Algo que, para os acordos internacionais que limitam as terras de um e outro lados de um país é legal, no sentido da lei, para o gaúcho Inodoro é percebido como o crime em si.

No entanto, a tira de Fontanarrosa não acaba por aí. “Perseguido” conta que, antes de contrabandear a “própria fronteira”, ele contrabandeava peles de animas, como capivaras, lontras, rãs e vacas, estas, sim, através da fronteira. Este é o verdadeiro contrabandista, responsável por cortar cercas, pular muros, furar bloqueios para, conforme as necessidades de um e outro lados da fronteira, fornecer as desejadas mercadorias.

Na HQ escrita e desenhada por Fontanarrosa, “Perseguido” relatava seu passado com tamanho entusiasmo que não percebe que, do alto da coxilha, despontam mais de vinte policiais da Interpol. Ao perceber isso e sem saber para qual lado fugir, “Perseguido” implora para Inodoro Pereyra o esconder. A resposta ao seu pedido, contudo, lhe causa surpresa. Inodoro diz: “como ecologista, não protejo ninguém que tenha arrancado couro de criaturinhas inocentes”. Ora, mais uma contradição, afinal, dificilmente um gaúcho, tal qual representado por Fontanarrosa, poderia ser um ecologista. Afinal, isso confronta a própria construção desse personagem – gaúcho – associado ao conservadorismo rural. No entanto, para a história avançar e chegar aos “finalmentes”, Inodoro sugeriu que “Perseguido” se escondesse em meio a uma multidão que por ali passava. “Olha, lá vem uma procissão! Entra no meio do povo que eu não digo nada!”. “Perseguido” agradece e corre para se mimetizar àquele agrupamento de pessoas. Só então se dá conta que, na verdade, a ideia foi uma espécie de armadilha. Não se tratava de uma procissão, e sim de uma manifestação de agentes da polícia em greve por aumento de salário. A essa constatação de “Perseguido”, por fim, Inodoro Pereyra resmunga: “a gente nunca sabe onde vai estar metido no dia de amanhã”.

Dessa forma, Fontanarrosa complexifica ainda mais a leitura sobre o gaúcho, seus estereótipos populares e a reação destes perante as inúmeras constatações possíveis a partir dos tensionamentos propostos. Afinal, além das observações realizadas, percebe-se que o “contrabandista de fronteiras”, procurado pela polícia internacional por colaborar com a manutenção destas, se vê agora escondido em meio à própria polícia que, por sua vez, não vai prendê-lo, pois está em greve. Dessa forma, o autor inverte completamente a lógica social e a moral da história nos ensina que a gente nunca sabe de qual lado da fronteira vai estar metido no dia de amanhã e, portanto, o melhor a se fazer é evitar construí-las em nome da própria liberdade. O crime está no ato de construir as fronteiras, não em burlá-las.

Entretanto, construir fronteiras é uma prática de controle social. Não apenas as fronteiras entre países, mas também os muros para proteger cidades e as cercas para preservar propriedades privadas. Na busca pelo controle e manutenção do espaço, sempre há uma boa razão para se erguer obstáculos a fim de evitar o movimento de pessoas e, sobretudo, de ideias. No entanto, toda vez que se ergue uma estrutura que aparta, seja ela física ou psicológica, concreta ou abstrata, se está reduzindo a multiplicidade, que é inerente a todo indivíduo, a apenas “dois lados de uma mesma moeda”. Ora, a multiplicidade nasce do movimento, assim como a identidade é plural. Por isso, ao mesmo tempo em que se tenta controlá-la ou, ainda, se demanda pelo controle, esse obstruir o ir e vir será um processo que muito pode ser ilustrado pela imagem de alguém “enxugando gelo”, ou seja, é interminável.

Por outro lado, em nome do controle social, geralmente algo imposto de cima para baixo, dos hegemônicos para os subalternos, “enxugar gelo” será uma prática que, embora constante, é compensadora, até porque a própria sociedade desenvolveu seus mecanismos para realizar esse trabalho.

De certa forma, a própria sociedade demanda tais controles, afinal, a complexidade das dinâmicas humanas em relação ao meio em que vivem são tão inapreensíveis que não surpreende a necessidade de maniqueísmos básicos em nome de uma convivência mais “pacífica e/ou organizada”. É do ser humano a capacidade e a necessidade de seleção, a fim de excluir as “distrações” em nome da sobrevivência. Mais ou menos como quando atravessamos uma avenida movimentada de uma grande cidade. Se prestarmos atenção em todos os sinais ao nosso redor, como os inúmeros veículos que vêm e vão, as pessoas, todas as publicidades, o horário e a temperatura informados no painel eletrônico, a sirene das viaturas, o grito do vendedor ambulante etc., não damos o primeiro passo. Então, reduzimos as possibilidades para o semáforo, o sinal de pedestre, o movimento dos veículos e a faixa de segurança e, assim, seguimos em frente.

Ao percebermos isso, podemos deduzir que também a identidade – individual ou coletiva – passa a ser construída a partir da diferença, quando, ao contrário, deveria ser estabelecida na diferença. Demarcar fronteiras e fazer distinções entre o que fica dentro e fora está sempre ligado a uma forte separação entre “nós e eles”. É nas fronteiras que ocorre um embaralhar dessas identidades e que, se os controles são necessários, também fugir deles é parte da dinâmica social. Dessa forma, o carnaval, quando usamos máscaras, as festas à fantasia e os cultos religiosos de possessão, para trazer alguns exemplos que o próprio Canclini utiliza, não deixam de ser situações que nos auxiliam na tarefa de tensionar as fronteiras da dicotomia social em nome de uma pluralidade vital. Tudo isso, obviamente, é apenas uma “válvula de escape” para um cotidiano estruturado por regras, leis e costumes bem definidos. Tais fronteiras definem a própria sexualidade humana a partir da diferença binária que governa a conveniência de todos os códigos, da oposição feminino/masculino. Isso significa que nos condicionamos – ou somos condicionados – a enxergar tudo o que nos cerca, tudo que fizemos, até quem somos, baseados em um esquema constituído na dicotomia do que é certo ou errado, quem é amigo ou inimigo, quem é o pai ou a mãe, o que é trabalho e lazer e, assim, ad infinitum. Por outro lado, esse esquema, que para além do controle social também facilita a sobrevivência do indivíduo por meio de seleções binárias, está em permanente tensionamento, principalmente quando surge a necessidade de movimentar-se.

As diásporas, ou seja, as imigrações, o cruzamento de fronteiras e todos os inúmeros movimentos possíveis, inclusive viagens, embora menos traumáticas, podem ser percebidas como fenômenos que geram hibridizações, miscigenações, sincretismos e travestismos, como reações em prol das rupturas binárias e em busca da essência humana. Isso significa que, se de um lado há um necessário transitar pelas fronteiras, institucionalizado pela própria sociedade, por outro há aqueles movimentos provocados pela sobrevivência do corpo e/ou da alma, que buscam barrar esses movimentos fronteiriços, mesmo o de viajantes ocasionais. Nesse caso, diferentemente de esse movimento gerar um “alívio” social, ele provoca transformações, revoluções, renovações e precisará ser, de alguma forma, dissolvido e/ou, ao menos, novamente controlado. No entanto, como toda identidade é artificial, ao menos toda aquela constituída a partir de um pensamento reducionista, a procura pelo movimento será, sempre, um ato de resistência do indivíduo. Afinal, para além de o ser humano nascer potencialmente múltiplo – uma criança, por exemplo, não enxerga as diferenças como um bloqueio para uma relação social –, a própria sociedade, como grupo e coletivo, desde sempre transitou pelo mundo. Essa luta entre o controle e a libertação, portanto, está presente e faz parte da nossa dinâmica social, por isso se dá permanentemente e em diversos níveis. Levando em conta que ao transitarmos estamos em movimento e, uma vez em movimento, interagimos com o meio justamente pelas diferenças, a interação que brota desse deslocamento provoca, inevitavelmente, novas percepções, novas possibilidades e constrói o conhecimento.

Percebe-se, assim, que o encontro com o heterogêneo, com o diferente e com o estranho sempre ocorreu. É da nossa natureza e é determinante para a nossa constituição social. Edgar Morin, outro pensador importante para o campo social, diz que o “conhecimento está na cultura, e a cultura está no conhecimento. Um ato cognitivo individual é, ipso facto, um fenômeno cultural, e todo elemento do complexo cultural coletivo atualiza-se em um ato cognitivo individual”. Ao mesmo tempo, esse movimento pelo qual formatamos o nosso conhecimento – coletivo e/ou individual – gera, ao menos, dois fenômenos. De um lado, a partir daquele que se movimenta, há a incerteza sobre as possíveis consequências advindas do próprio movimento. Um terreno movediço, uma tempestade imprevista, um assalto na próxima esquina e/ou, claro, também boas surpresas, como uma ajuda inesperada, um abrigo provincial, uma nova amizade para a vida. Por outro lado, para aquele que está estático, embora o corpo estranho possa trazer novas – e boas – possibilidades, a primeira percepção é de que o “estrangeiro” significará problemas e, portanto, é preciso se proteger e proteger os seus erguendo fronteiras, muros e cercas. Novamente, porém, as fronteiras, os muros e as cercas podem ser físicas. E de fato são, mas também são psicológicas. Afinal, o “estrangeiro” sempre carrega, consigo, o movimento, e este sempre demanda uma reação. Da relação entre movimento e reação, decorre o caos, ou seja, em uma imagem, sabemos bem o quanto é difícil retomar os exercícios físicos – a academia –, mas, por outro lado, sabemos que após algumas semanas de exercícios, o corpo já volta a responder com mais vitalidade.

Nesse terreno incerto e suscetível a toda e qualquer influência estrangeira em permanente deslocamento, portanto, o forasteiro pode ser percebido como uma ameaça ou como uma oportunidade.

Por conta de toda uma construção ideológico-cultural que, desde criança, vai definindo nossa identidade a partir da diferença, geralmente, esse movimento é percebido como uma ameaça. Até porque, é do instinto do ser humano reagir, num primeiro momento, sob a percepção provocada pelo medo. Afinal, é ele que nos deixa alerta para, se necessário, reagirmos às ameaças e, assim, lutarmos pela nossa sobrevivência. Assim, a soma desse instinto básico com a doutrinação social, muito provavelmente, vai nos fazer perceber o “estrangeiro” – e o seu movimento – como algo a temer e, consequentemente, a evitar e/ou combater. Com o tempo, claro, aprendemos a identificar esse “estrangeiro” e, ao tipificá-lo, melhor compreender se é uma ameaça – e qual o nível dessa ameaça – ou, ao contrário, se é uma oportunidade. Afinal, nos organizamos a partir de um determinismo social que vai pautar nossas crenças, e estas dificilmente são desconstruídas.

Para ilustrar a complexidade disso, basta se lembrar do efeito causado nas pequenas cidades quando da chegada dos ciganos, mambembes e do próprio circo. Inevitavelmente, às vezes mais, às vezes menos, mas sempre alguma reação esses “estrangeiros” provocaram e, geralmente, trata-se de um sentimento complexo, gerado pelo medo, pela excitação, pelo deslumbre, pela necessidade e pela curiosidade. Não por acaso, esses “estrangeiros” seduzem as crianças, enquanto nos mais velhos, não raro, provocam sentimentos de preconceito e repulsa. Talvez seja significativo perceber que, pelo menos quanto ao teatro mambembe e ao circo, fala-se de arte e de artistas os quais, tal qual o contrabandista da narrativa de Canclini, trabalham pela – e na – dissolução das fronteiras. Embora, até certo ponto, o uso de máscaras serve ao equilíbrio social, essas práticas também são controladas. Para funcionarem como “válvulas de escape” e a serviço da manutenção social, também o descontrole precisa ser controlado. O que não ocorre com o “estrangeiro” que, geralmente, é um fator de total descontrole e desequilíbrio. Dessa forma, quanto mais polarizada a sociedade, mais fácil dominá-la. Quanto mais influência sobre elementos que permitem o equilíbrio desse controle, mais fácil a manutenção do status quo, e dificilmente ocorrerá um movimento interno e vertical, o qual pode ameaçar a igualmente polarizada estrutura hegemônica e subalterna.

Não é preciso ser cientista para compreender que o ser humano precisa de exercícios para não desenvolver doenças musculares e que uma máquina precisa ser utilizada para não enferrujar. A essência disso tudo é o movimento. Quanto mais movimento, mais interação e, portanto, transformação. Quanto mais transformação, mais difícil o controle social.

A partir desse paradigma, logo, percebe-se o quanto é importante apontar um inimigo comum. Se é para haver movimento, que este ocorra a serviço do enfrentamento desse inimigo. Isso manterá os dois lados ocupados, cada vez mais alienados quanto à complexidade das dinâmicas sociais e, certamente, evitará que um e outro lado “atravesse a fronteira” para, a partir do outro lado, enxergar-se a si mesmo e, assim, desconstruí-la. É nesse sentido, sobre a importância de inverter o ponto de vista a fim de desfazer as ameaças impostas, muitas vezes sem nem se saber o porquê, que devemos pensar “estratégias de desconstrução”, por meio da qual toda e qualquer dicotomia conceitual perde o sentido de ser e existir. Afinal, ao se colocar do outro lado da fronteira – e vice-versa –, o indivíduo percebe que não há mais o que temer e, por consequência, não há por que seguir preservando as estruturas que nos apartam. Uma vez desconstruídas as fronteiras, os muros e as cercas, por sua vez, aquilo que é estático naturalmente entra em movimento, ressignificando, assim, o próprio paradigma.

Existe um filósofo francófono chamado Jacques Derrida que pensou a “estética da inversão”. Para isso, Derrida não deixa de explicitar sua particular condição humana, afinal, o filósofo viveu na pele o mesmo fenômeno que, depois, inspirou sua filosofia. Uma vez nascido em El-Biar, na Argélia, de família francesa e judia, Derrida cresceu assombrado pelo nazismo e conviveu, bem de perto, com os conflitos pela independência argelina. Perdido entre dois mundos sem, no entanto, se sentir plenamente parte de nenhum deles, observou na sua condição de pária a oportunidade de se perceber no outro. Desse modo, quando Derrida enxerga na “inversão” a possibilidade de inverter a hierarquia que se constitui a partir de uma estrutura conflitiva e subordinante das oposições, é porque, por outro lado, este momento de inversão é estruturalmente inseparável de um momento de deslocamento. Ou seja, não basta, apenas, atravessar a fronteira, é preciso perceber irromper um novo conceito sobre o qual pensar a própria desconstrução desta fronteira. Nesse sentido, o processo da “inversão” de Derrida, permite não apenas transitar entre os dois lados da linha, mas exige desconstruir o sistema posto em todos os seus níveis estruturantes.

Obviamente que isso é muito difícil. Impossível, até (?). Mas, retomando Canclini, percebemos que para além de um discurso político e social, da tira de Fontanarrosa, explicitada no início deste texto, é possível perceber que a desconstrução das fronteiras se dá, em muito, por meio da – e na – arte. Afinal, o humor é construído e renovado nessa série de deslocamentos e é por isso que em todas as tiras de Fontanarrosa, a hilaridade nasce do fato de as fronteiras serem móveis e as personagens e os temas se confundirem. E não se trata apenas de Fontanarrosa, mas todos os artistas e todas as artes servem (também) para evidenciar como, na sociedade, as fronteiras podem estar em qualquer parte. E o quanto estas podem integrar ou, ao contrário, opor, conforme as relações de poder que se estabelecem a partir da inclusão e/ou exclusão. Desse modo, se enxergarmos as fronteiras como uma linha que estabelece oposições, estas se estruturarão, justamente, pela dicotomia entre dois lados os quais, por sua vez, contribuirão para a polarização do “nós” contra “eles”: Grêmio versus Inter, periférico versus central, rural versus urbano, pesquisador versus realizador. Por isso que uma questão se torna fundamental. Reorganizar a cultural do poder, passar de uma concepção vertical e bipolar para outra descentralizada, multideterminada. É preciso que, mesmo quem esteja em movimento, compreenda que movimento é este e a serviço de quem – e do que – ele ocorre.

Por tudo isso, desconstruir fronteiras não é um movimento fácil. Muitos, quase não as percebem, quanto muito podem desconstruí-las. Outros, ao percebê-las, acreditam furá-las e, dessa forma, enganar as “autoridades” que as vigiam. Nem desconfiam que são, da mesma forma, apenas parte do sistema, peças necessárias para a sua manutenção. São como as máscaras que preservam o “cidadão de bem” por trás do folião necessitado de uma fantasia ou, como o próprio carnaval, que permite ao homem vestir-se de mulher sem “destituí-lo de sua masculinidade”.

No fundo, seguem presos, mesmo conhecendo o outro lado da fronteira. Por isso que, para realmente compreender o aparelho fotográfico, é preciso aproximar o domínio técnico do olhar artístico. A organização metodológica da intransigência provocadora do palhaço. A ciência da arte. Apenas assim, em nome de uma efervescência cultural, será possível atravessar a fronteira como um elemento ativo, que a percebe, por ela transita, dela retira seu sustento e a ela também influencia. Tarefa difícil até para o melhor dos contrabandistas, afinal, a tendência sempre é reproduzir o método aplicado com sucesso. “Em time que vence não se mexe”, se diz no jargão futebolístico, mas, um dia ou outro, por conta da repetição, o adversário reconhecerá o método que garante a excelência do time sempre vencedor e o surpreenderá. Isso significa dizer que não adianta apenas identificar o buraco no muro e, por esse mesmo buraco, atravessar a fronteira toda vez, pois, cedo ou tarde, este será descoberto.

Além de coragem, sorte, persistência, o contrabandista necessita ser criativo e estar sempre um passo à frente das autoridades alfandegárias. Para isso, é necessário libertar-se dos paradigmas, a fim de multiplicar as possibilidades e, assim, “sair da caixinha”, como se diz popularmente. Seja qual for a metáfora que mais convém – entrar ou sair, tudo é movimento –, na essência, um indivíduo que se percebe no processo – o que é bem diferente de apenas estar no processo – é consequência de um conhecimento multifacetado o qual é construído a partir da escolha entre dois aspectos aparentemente contraditórios. Isso significa que a mesma fronteira pela qual o indivíduo deve transitar para libertar-se da dicotomia reducionista vai, ao mesmo tempo, influir sobre as chances – ou não – de esse indivíduo por ela transitar.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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