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MAR ABERTO | SÃO TANTAS AS ROMAS SOBRE UMA MESMA ÁFRICA

por Boca Migotto

Desde as Guerras Púnicas, ainda durante a República, Roma se fez presente no Norte da África como uma força política, econômica, cultural e, sobretudo, militar, que, desde então, ampliou sua presença não apenas naquela região mas, também, no Oriente e Europa Ocidental. A partir dessa afirmação é preciso perceber que mesmo dominando praticamente todo o mundo antigo conhecido, o controle sobre a África se mostrou fundamental para que Roma expandisse sua influência sobre todo o Mediterrâneo, bem como, ampliasse a força do seu exército – fundamental para a manutenção do império que estava ascendendo –, intensificasse o comércio de cereais para alimentar sua crescente população urbana e, não menos importante, recolhesse os impostos e os inúmeros produtos que geravam a riqueza fundamental para a administração da máquina estatal.

A África mediterrânea, sem sombra de duvida, era uma região bastante rica e, portanto, essencial para o fortalecimento de Roma. Ao mesmo tempo se mostrava indispensável para que um comércio marítimo romano ocorresse sem maiores sobressaltos. A diversidade cultural e econômica da região se refletia em Cartago, não por acaso, uma cidade que fazia frente à Roma antes de sucumbir, após três longas guerras que duraram quase um século. Dessa forma, para o Império, que viria substituir a República em pouco tempo, as províncias do Norte da África se mostraram cruciais para a manutenção do poderio romano sobre toda a região. Da mesma forma, conforme Thébert afirma, “[…] a África romana [também] representa um campo de estudos privilegiado, pois trata-se de uma das mais importantes províncias do Império.” (THÉBERT in VEYNE, 2009, p. 290).

Antes de avançarmos na reflexão, entretanto, é importante compreendermos o conceito de Império aplicado tanto para Roma, que nesse momento ainda estava na sua fase republicana, como para todo o significado gerado a partir de então. Conforme Mendes, Bustamante e Davidson (2009), a historiografia construiu a noção de império a partir da definição para uma política expansionista, patrocinada por um determinado Estado que, por sua vez, por conta da opressão ou persuasão, vai exercer influencia política, econômica e/ou cultural sobre determinados povos ou populações por, este Estado, dominados e administrados. Os autores, no entanto, chamam a atenção para a importância de percebermos que, por trás do conceito de império há, certamente, a necessidade de se perceber a “[…] diversidade, a pluralidade e a singularidade dos processos ou das práticas imperiais para se investigar como e por que os impérios se constroem, se expandem, se legitimam, se consolidam e se desagregam” (MENDES, BUSTAMANTE e DAVIDSON, 2009, p. 19). Por isso, estudar e pensar os impérios sempre é uma prática complexa que precisa levar em conta a construção de uma diversificada e problemática contextualização cultural que não é unilateral e, muito menos, simplesmente imposta de cima para baixo. Por mais opressor que venha a ser o poder central de determinado império, sempre haverá espaço para o oprimido contribuir com a sua própria dinâmica cultural. Um bom exemplo pode ser a influencia da cultura africana sobre o Império do Brasil, Portugal e Algarves. Por mais subjugados que os africanos capturados e escravizados tenham sido, foram determinantes para a cultura brasileira e imprimiram sua marca na nossa língua, gastronomia, arte, nas nossas cidades e, inclusive, no nosso sincretismo religioso.

Portanto, realizada tal digressão conceitual, voltemos à conquista da África e ao fato de que, ao contrário do que a historiografia europeia do final do século XIX e início do século XX pensava, de que territórios dominados por Roma sofriam uma influencia de mão única, através da qual esta levaria a “civilização” aos povos nativos, significou, isso sim, um intercâmbio comercial, político, cultural, cientifico e artístico entre ambos os lados do Mediterrâneo. Não que Roma não tentasse impor sua visão de mundo, seja pela opressão ou pela sedução. Nesta região, existiam culturas tradicionais anteriores ao domínio romano, como a púnica e a berbere. O processo de expansão romana, iniciado ainda na República, fez com que Roma subjugasse diferentes sociedades e estabelecesse o seu império. O Império Romano empenhou-se em construir uma identidade entre as múltiplas culturas, que estavam sob seu domínio, visando a formação de uma comunidade de abrangência mediterrânea. (BUSTAMANTE, 2012, p. 3)

Embora seja impossível subjugar completamente uma sociedade secular como Cartago – e veremos que isso não foi possível nem com a destruição total da cidade –, é compreensível perceber que a historiografia colonial europeia, a exemplo de Roma, tenha se esforçado por construir essa ideia de um Império de mão única, que através da conquista, levava suas benesses civilizatórias aos demais povos sob sua influencia. Algo que, a priori, vemos ocorrer ainda hoje em diversos conflitos mundiais, sobretudo, na mesma região em torno do Mediterrâneo. Afinal, do que se tratou as invasões dos Estados Unidos ao Iraque ou ao Afeganistão ou, ainda, do que se trata a atual guerra entre Israel e os palestinos se não, também, uma tentativa midiática de justificar a dominação destes espaços por conta de interesses econômicos através do velho discurso de um Estado democrático e civilizatório que levará a liberdade e a visão de mundo ocidental onde há, sobretudo, repressão e barbárie? Percebam que não estou defendendo o terrorismo – é bom deixar isso bem claro – mas, apenas, colocando os conflitos mencionados em sua perspectiva histórica. Um povo que passa 50 anos, 100 anos, mais se século, às vezes, sob o domínio de um império, é um povo constituído por gerações – pais, filhos, netos – de pessoas oprimidas e subjugadas que, certo ou tarde, se levantarão contra tal injustiça pratica contra tais populações. E os meios utilizado para isso podem ser os mais variados, desde a política da não-violência de Gandhi, na Índia, até o terrorismo praticado pelo Hamas.

É claro que houveram outros povos que subjugaram populações mais frágeis antes de Roma, mas os “italianos” deram outro significado para tudo isso. Roma foi a primeira superpotência internacional e não apenas subjugou diversos povos como influenciou inúmeras outras tentativas que vieram depois dela. A França de Napoleão, A Alemanha de Hitler, o próprio Estados Unidos, são todos impérios que se inspiraram no Império Romano. Não por acaso, nesse mesmo viés colonialista, a Europa ocidental do final do século XIX também ganhava muito a partir da concepção de que era herdeira do processo civilizatório romano sobre outras regiões do globo. Conforme nos conta Lepelley (2016) sobre a redescoberta da região pelos europeus, a partir de 1830, a percepção de franceses e, principalmente, italianos, era de que estavam retomando para si um território o qual, por direito, lhes era herdado dos romanos. Lepelley conta que na medida que militares e arqueólogos europeus foram encontrando traços da presença romana na África – no caso italiano, especialmente na Líbia – mais crescia o conceito da Épica do retorno, título que Massimiliano Munzi, inclusive, deu ao seu livro sobre o tema.

É verdade que nesse processo os conquistadores descobriram “[…] dezenas de milhares de inscrições latinas, ruínas de cidades qualificadas muitas vezes de Pompeias africanas, obras de arte, dentre as quais muitos mosaicos” (LEPELLEY, 2016, p. 421), no entanto, defender, a partir disso, que seria natural à Europa subjugar a África, por conta de uma primeira dominação romana sobre o mesmo território, é quase como sucumbir ao argumento pós-medieval de Portugal, e da Igreja católica, sobre o seu direito natural de escravizar negros e indígenas pois, estes, não eram batizados pelo cristianismo europeu. Assim, de forma semelhante a como ocorreu nos séculos XV e XVI na América, a mesma justificativa para tamanho genocídio, mais uma vez, funcionou. Com isso, os europeus conseguiram, em pleno século XIX, impor seu olhar dominador sobre a África e recolonizar boa parte da região. Segundo o mesmo Lepelley, é possível reproduzir, abaixo, três passagens diferentes que exemplificam isso. Primeiro, Gas Boissier [latinista] em um discurso pronunciado em 1891, no Congresso das Sociétés Savantes, dizia: “aceitemos a herança, senhores […] nós viemos continuar uma grande obra de civilização interrompida durante séculos. […] Nós retomamos a posse de um antigo domínio, e esses velhos monumentos diante dos quais o árabe não passa sem um sentimento de respeito e de espanto [!], são precisamente nossos títulos de propriedade”. (LEPELLEY, 2016, p. 421)

Discurso semelhantes a outros franceses contemporâneos, como podemos observar abaixo, ainda segundo Lepelley, na introdução de seu grande livro sobre O exército romano da África, publicado originalmente em 1892, René Cagnat escrevia: “Nós podemos, portanto, sem medo comparar nossa ocupação da Argélia e da Tunísia àquela das mesmas províncias africanas pelos Romanos. Como eles, nós conquistamos gloriosamente a região, como eles, nós asseguramos a ocupação, como eles, nós tentamos transformá-la à nossa imagem e ganhá-la para a civilização”. (LEPELLEY, 2016, p. 421)

Se não essencialmente absurdo, ao menos para um olhar contemporâneo – assim esperamos, embora a extrema-direita esteja ai para nos mostrar que absurdos passaram a ser reproduzidos como normalidade –, tudo pode ficar ainda mais assombroso se olharmos para a Itália que, por sua vez, ainda mais que a França, se via herdeira direta das conquistas romanas e, portanto, se via também ainda mais no direito de reivindicar o território da Líbia, em 1911. Seguimos com Lepelley para chegarmos a Massimiliano Munzi, que lançou um livro, em 2001, intitulado L’epica del retorno: archeologia e politica nella Tripolitania italiana (Tradução: A épica do retorno: arqueologia e política na Tripolitânia italiana), no qual ele nos descreve a reprodução de um desenho publicado no mesmo ano da conquista da Líbia. A descrição deste desenho esclarecedor sobre o sentimento europeu – nesse caso, sobretudo, italiano – de posse sobre a África é a seguinte: “Um marinheiro italiano, tendo acabado de desembarcar, encontra na areia o esqueleto de um soldado romano, ainda conservando todo o seu equipamento: seu capacete, seu escudo, sua couraça, seus calçados. O marinheiro recupera o gládio do soldado e a legenda proclama: L’Italia brandisce la spade dell’antica Roma (Tradução: A Itália brande a espada da antiga Roma).” (LEPELLEY, 2016, p. 422)

Assim, percebemos o quanto, mais uma vez na história, se reproduziu e ainda se reproduz uma Roma expansionista na forma de uma Europa moderna, que para suas colônias leva suas línguas latinas, culturas civilizadas, engenharias sofisticadas, produtos tecnológicos e demais conceitos liberais em troca das matérias primas – ah, o ouro negro! –, commodities e produtos manufaturados que países africanos, asiáticos e sul-americanos poderiam – e deveriam – fornecer. Para esta historiografia, portanto, a romanização – percebamos que a grafia da palavra, ironicamente, quase nos leva a ler “romantização” – africana estava marcada por uma bipolaridade constituída por “nativos e bárbaros” versus “romanos e civilizados”. Mais uma vez, nada muito diferente de como se deu a colonização das Américas por portugueses, espanhóis, ingleses, holandeses, belgas e franceses, a partir do século XV ou, ainda mais recentemente, a exploração do território africano subsaariano a partir do século XIX. No entanto, finalmente, esse olhar historiográfico eurocêntrico, parece, começou a ser contestado. “[…] a partir de meados do século XX, com o surgimento de movimentos de independência afro-asiática, a produção historiográfica desenvolveu um novo viés, uma perspectiva pós-colonial, que resgatou a pluralidade e o dinamismo dos elementos nativos, demonstrando uma sensibilidade para a singular hibridez das experiências histórico-culturais”. (BUSTAMANTE, 2012, p. 3)

Este movimento pós-colonial é complexo e não se fecha em si. Muitas são as causas para que isso passasse a ser possível e incontáveis são as consequências que decorrem desse novo olhar sobre uma história que, por séculos, nos foi simplesmente dada e, por nós, americanos do Sul, africanos e asiáticos apenas reproduzida. Embora possamos apontar algumas possibilidades, não cabe em um artigo como este aprofundar questões tão complexas como o decolonialismo ou, até, a nova configuração econômica e geopolítica que tenta deslocar o foco do Atlântico Norte para o Pacífico e o Sul Global. Por isso, voltemos à Antiguidade e à expansão romana sobre a África nos séculos III e II a.C., quando Cartago foi tomada por Roma e, assim, esta obteve a hegemonia sobre o Mediterrâneo. Foi desse modo que Roma pôde, amparada também pelas relações de comércio que ocorreram através do Mediterrâneo, espalhar a cultura helenística para outros território até então ainda virgens da influência romana. Nesse sentido, embora essencialmente estruturalista, Thomas J. Barfield diz que a construção da estrutura de um governo imperial se dá através de um complexo processo que está baseado em cinco características principais: “1) a existência de um sistema administrativo para explorar a diversidade, seja econômica, política, religiosa ou étnica; […] 2) estabelecimento de um sistema de transporte destinado a servir ao centro imperial militar e economicamente; […] 3) criação de um sofisticado sistema de comunicação, que permita administrar diretamente do centro todas as áreas submetidas; […] 4) manutenção do monopólio de força dentro do território imperial e sua projeção frente às regiões externas; […] 5) construção de um “projeto imperial” que impõe certa unidade através do império”. (MENDES, BUSTAMANTE, DAVIDSON, 2009, p. 20-21)

Dessa forma, segundo os autores, é importante focar a interação das redes de poder entre as elites locais e imperiais, levando em conta a importância de um sistema de deslocamento de pessoas e mercadorias que permita ao centro imperial manter o trânsito político, militar e administrativo com suas colônias, bem como o fluxo da informação. Assim, é preciso também definir e gerenciar as linhas limítrofes do império, algumas vezes mediante imposição militar, noutras através da diplomacia político-cultural, algo essencial, inclusive, para a sobrevivência de um império que está essencialmente amparado no compartilhamento de valores centrais sobre os periféricos os quais, por sua vez, nunca serão subjugados na sua totalidade e, portanto, demandam um certa flexibilidade para que possam, invariavelmente, serem assimilados pelas culturas periféricas.

Esses elementos, podem parar para pensar, estão presentes no Império Romano, Inca, Asteca, Português, Espanhol, Norte Americano e foi exatamente o que ocorreu com Roma a partir da sua primeira conquista africana. Segundo Sant’Anna (2015), “O território cartaginês, fundado como parte do movimento colonizador fenício, ocorrido entre os séculos IX e VI a.C., compreendia, na época da Primeira Guerra Púnica, o norte da África, a porção oeste da Sicília, a Sardenha e parte da Hispânia.” (2015, p. 48). A importância dessas conquistas, portanto, sobrepõe as questões militares, uma vez que é a partir de então que Roma vai virar a chave em relação a sua própria história. Basta lembrar que até a segunda metade do século III a.C., segundo Mitchell (1971), citado por Sant’Anna, “[…] Roma praticamente não possuía experiência em diplomacia, sendo ainda um poder agrário sem grandes interesses fora de seus limites territoriais.” (2015, p. 49). Tudo vai mudar a partir de Cartago mas, não sejamos ingênuos, afinal, Roma já era consciente sobre a força do território cartaginês que, para muito além da Líbia, dominava parte da Hispânia e da Sardenha e avançava, perigosamente, sobre a Sicília, constituindo-se, assim, em um vizinho perigoso que, cada vez mais, cercava a República por todos os cantos da península. Além de dominar muito melhor que os romanos a arte da navegação. Dessa forma, o ataque se mostrou a melhor defesa e Roma precisou avançar sobre os enclaves cartagineses na Sicília, uma decisão que garantiu a presença romana sobre a África por aproximadamente oito séculos. Por isso, podemos afirmar que “[…] a África romana começa em 146 a.C., quando a República anexou o norte da atual Tunísia, após ter destruído Cartago e ela termina quando da tomada da mesma cidade de Cartago pelos conquistadores árabes muçulmanos, em 698 […] Trata-se, portanto, de uma longuíssima história”. (LEPELLEY, 2016, p. 434).

Apesar da brutalidade e irracionalidade que envolve todas as guerras, é fato que estas também significam períodos de inovações tecnológicas. Não foi diferente com Roma que, desde a Primeira Guerra Púnica, se viu obrigada a repensar suas estratégias de combate, bem como sua tecnologia bélica. Nesse movimento, os gregos foram importantes na transmissão de conhecimento náutico, uma vez que, ao menos na primeira Guerra, batalhas significantes foram travada no mar, ambiente que os cartagineses demonstravam excelência e superioridade em relação aos romanos. Desde então, até o encerramento dos conflitos, com a conquista romana sobre Cartago e a destruição total da cidade, se passaram longos anos de guerra e paz que tiveram, como cenário, inúmeros terrenos na Europa, no Oriente Médio, no Norte da África e no próprio Mediterrâneo, e envolveram diversas frentes de batalha que, nem sempre, estavam associadas diretamente aos cartagineses. Uma espécie de guerra mundial, se levarmos em conta o mundo conhecido por estes povos naquela época.

Então, em 146 a.C., um exército liderado por Cipião finalizou um cerco de três anos sobre a cidade africana e, finalmente, conforme relato de Sant’Anna, citando Políbio, Diodoro e Apiano, a “civilização” da qual a historiografia europeia dos séculos XIX e início do XX enaltecia, vence a barbárie da seguinte forma: “[…] tudo se resumia, nas palavras de Apino (8. 128-135), “a gritos de dor, lamento e sofrimento de todos os tipos”. Logo o fogo se espalhou e consumiu a cidade, auxiliado pelo trabalho dos legionários romanos, que destruíram os edifícios de uma vez, e não aos poucos, fazendo com que muitas construções cedessem com suas estruturas de pedra sobre os habitantes. Muitos foram vistos, ainda, com vida, feridos ou queimados em maior ou menos escala, emitindo gemidos terríveis. Apiano acrescenta, ainda, que outros caíram de lugares altos em meio ao fogo, pedras e madeira, terminando esfacelados nas mais horríveis formas, esmagados ou mutilados. Cadáveres foram usados para tapar fossos, permitindo, assim, a passagem das tropas. Diz-se que alguns foram arremessados nos fossos de ponta-cabeça e outros de cabeça para cima, tendo seus crânios destroçados por cavalos durante a travessia, pois funcionavam como ponte humana. Tamanho horror persistiu por seis dias e seis noites, até que, no sétimo dia, um grupo de suplicantes apareceu diante de Cipião e o convenceu a poupar as vidas daqueles que, protegidos na cidadela, concordassem em deixar Cartago para sempre. Mais de cinquenta mil homens e mulheres deixaram a cidade sob a guarda do exército romano. Cartago estava completamente arrasada. […] Encerrado o cerco, o território cartaginês transformou-se na província da África”. (SANT’ANNA, 2015, p. 70-71).

Paul Valéry escreveu que a História não pode ser separada do historiador pois este busca, sempre, compreender o presente, e a si mesmo, através do conhecimento sobre o passado. Portanto, historiador e História estão ligados umbilicalmente. Tal afirmação, inclusive, me faz pensar sobre o quanto estou eu, nesse momento, realizando essa reflexão e escrevendo esse texto, dissociado – ou não – do evento militar que envolve Israel e Faixa de Gaza às vésperas do Natal do ano de 2023. Uma vez assinalada tal desconfiança pessoal em relação a minha pretensa neutralidade no tema, retorno ao fluxo do pensamento aqui apresentado para afirmar que é nesse sentido assinalado por Valéry, de certa forma, que podemos perceber o quanto o Norte da África é uma região extremamente importante para compreendermos a Europa atual e, em consequência, a própria influência deste continente sobre todos os territórios por ela colonizados. Uma vez que a relação entre Europa e África, a exemplo da própria fluidez das águas do Mediterrâneo, não se deu unilateralmente, é preciso levarmos em conta que parte do continente europeu sofreu forte domínio africano, principalmente árabe. Isso se dá hoje, mediante a imigração muçulmana – embora nem todo árabe siga o Islamismo – das ex-colônias para países como a França e Itália, por exemplo, mas também já havia ocorrido no passado quando, após a queda – alguns historiadores preferem o termo “transformação” – do Império Romano, ao longo dos anos 700 e 1500, boa parte da península Ibérica esteve sob domínio dos mouros e, estes, por sua vez, tiveram participação direta ou indireta na história das mesmas navegações que vieram a descobrir e colonizar as américas a partir de portugueses e espanhóis.

Quer dizer, de certa forma poderíamos estabelecer uma linha histórica entre o Brasil, encontrado por portugueses apenas em 1500, com o mesmo Império Romano que, por séculos, dominou e impôs sua visão de mundo sobre os povos do Norte da África os quais, por sua vez, séculos depois, marcaram presença, sobretudo, na região da Andaluzia. Por isso, seguindo no raciocínio de Paul Valéry, olhar para a Antiguidade desde hoje é perceber, também, o quanto o presente está contaminado por esse passado. Ao mesmo tempo, e por outro lado, esse mesmo processo de islamização que marcou a ciência, a arte e a cultura da península Ibérica – e repercutiu na América pós-Colombo – na África do Norte, por sua vez, significou uma ruptura com a cultura europeia-romana. Ao menos no sentido que Lepelley traz para o debate ao afirmar que “os países do Magreb [ou Magrebe, no português] são geograficamente muito próximos da Europa mediterrânica. No entanto, a conquista árabe e a islamização, a partir do século VII, fizeram dessas terras um mundo muito diferente: um profundo fosso cultural, religioso, político foi cruzado, fosso que não existia na Antiguidade”. (LEPELLEY, 2016, p. 420)

Mesmo assim, em essência, percebe-se que há uma histórica interrelação cultural entre o Norte da África e a Europa Ocidental e, embora essa relação ora penda mais para um lado do Mediterrâneo, ora penda para o outro, é fato que o eurocentrismo domina – ou dominou, por séculos – a narrativa historiográfica sobre suas colônias. Por exemplo, muito se tentou associar o berbere a uma espécie de maldição anticivilizatória que denotaria uma dupla incapacidade deste povo, tanto no sentido de fazer nascer uma verdadeira civilização a partir das suas práticas tribais – e, portanto, sair da pré-história –, em nome da constituição de um verdadeiro Estado estruturado em políticas elaboradas, refletindo as experiências europeias, bem como, por conta disso, padecer permanentemente frente o domínio estrangeiro que, por sua vez, lhes imporia suas civilizações.

Tal visão de mundo, como sabemos e foi possível perceber ao longo deste texto, não é uma exceção. A historiografia mundial – e em especial, a ocidental – está impregnada de um olhar eurocentrista que precisa ser descontruído até por uma questão de justiça histórica. Sobre a África, por exemplo, estamos falando do continente onde surgiu o ser humano e onde se desenvolveu algumas das civilizações mais prósperas e importantes da antiguidade. Desde os fenícios, passando pelos egípcios e até levando em conta o caldeirão cultural do Oriente Médio, onde surgiram três das principais religiões que influenciam milhões de pessoas no mundo contemporâneo, a África é um caldeirão cultural que precisa ser melhor estudado. E estudado afetuosamente. Não é por acaso que Roma avançou, o máximo que pôde, sobre o referido continente.

A África, inclusive para além dos próprios romanos, sempre foi importante para os europeus por inúmeros motivos. Alexandria, no Egito, por exemplo, era tão admirada pelos latinos que foi da dinastia Ptolomeu que os romanos copiaram o modelo de administração. “[…] concebido como uma espécie de vasta propriedade privada em que a receita era globalmente administrada pela coroa. Em pouco tempo esta exploração converteu-se no ponto de partida preconizada por Augusto para o Egito […] lembrando que a ovelha deveria ser tosquiada, mas não esfolada”. (DONADONI in MOKHTAR, 1983, p. 192-193). Mas não só romanos, uma vez que a cidade fundada por Alexandre Magno, em 332 a.C., era uma espécie de Nova Iorque da Antiguidade. Naquele espaço cosmopolita conviviam romanos, gregos, fenícios, egípcios, judeus, cristãos, a partir do Cristianismo, enfim, uma verdadeira profusão cultural que ajuda a explicar, inclusive, a magnitude da famosa biblioteca de Alexandria.

Em relação a aproximação entre egípcios e romanos, é preciso lembrar que a relação do Egito com o Império era, sim, diferenciada. Havia algumas liberdades concedidas aos egípcios que não eram permitidas aos demais territórios. Um bom exemplo pode ser o calendário que, no Egito, era contado a partir do reinado dos imperadores egípcios e não dos cônsules romanos em exercício. Roma via o Egito como o “celeiro do Império” mas, por outro lado, isso não garantiu uma contrapartida substancial ao comércio entre ambos territórios. Havia a complacência romana sobre o Egito, é verdade, mas ainda assim se tratava de uma relação de exploração e, portanto, unilateral e definida por Roma. No geral, no entanto, essa relação era relativamente tranquila. Houve o cerco à Jerusalém, a Guerra dos Judeus em Alexandria mas, à exceção desses eventos, todos os primeiros séculos do Império foram relativamente tranquilos na região, ao ponto de Trajano reduzir as legiões estacionadas sobre o território africano e de Adriano, seu sucessor, se dar ao luxo – e curiosidade – de mergulhar nas paisagens, cultura e história egípcia.

A partir do século II, no entanto, a condição de “celeiro do Império” foi transferida para os território da região do Magrebe. As terras do Egito estavam exauridas e os agricultores, na impossibilidade de pagarem os altos impostos aos romanos, fugiram para o deserto. Essa crise agrária, contudo, já estava em sintonia com o enfraquecimento e a transformação do Império Romano ocidental, a ascendente influencia o Império Romano do Oriente, a partir de Constantino, sobre o Egito, bem como o fortalecimento do cristianismo que, em especial em Alexandria, vai se encontrar com a filosofia grega. “Em Alexandria o cristianismo assumiu, desde muito cedo e por um processo normal de desenvolvimento, um caráter acentuadamente diferente do cristianismo do resto do país. A cultura grega, de que a cidade estava impregnada, manifestava-se até mesmo na maneira com que a nova religião foi recebida. A mudança para o cristianismo tomou forma não de um ato revolucionário, mas de uma tentativa de justificar determinados conceitos novos e integra-los no amplo quadro da filosofia e da filologia da Antiguidade”. (DONADONI in MOKHTAR, 1983, p. 208)

A complexidade das relações culturais que influenciarão o Egito, o Império Bizantino e a transição do cristianismo para o islamismo, no entanto, demanda outro artigo. Nos cabe pensar, aqui, no deslocamento agrícola que ocorre para a região do Magrebe que, por séculos, teve Cartago como principal ponto de referencia desde quando os primeiros colonos oriundos da Fenícia lá desembarcaram. Assim, ao retomar a relação de Cartago com Roma, é importante explicar que a denominação da cidade se origina no nome fenício Kart Hadasht, que significa “cidade nova”. Embora não haja resquícios suficientes para tal afirmação, muitos historiadores deduzem que Cartago teria sido, desde o princípio, destinada a ser a principal colônia dos fenícios no Ocidente. “No século VI antes da era cristã, Cartago tornou-se autônoma e passou a exercer supremacia sobre as outras povoações fenícias do Ocidente, assumindo a liderança de um império na África do Norte, cuja criação teria profundas repercussões na história de todos os povos do Mediterrâneo ocidental. Tal evolução foi favorecida principalmente pelo enfraquecimento do poder de Tiro e da Fenícia – a metrópole – que caíram sob o jugo do Império Babilônico”. (WARMINGTON in MOKHTAR, 1983, p. 452)

Desde então, Cartago cresceu em importância e influencia e rivalizou, disputando os territórios da Sicília e Sardenha, com os gregos, num primeiro momento, assim como, mais tarde, também com os romanos. Para ambos, gregos e romanos, ninguém comercializava melhor que os cartagineses que, por sua vez, haviam se transformado em exímios negociantes e contribuído para tornar a sua cidade, consequentemente, na mais rica do Mediterrâneo. Cartago e Roma tinham acordos de paz deste 508 a.C., quando a cidade etrusco-latina era ainda uma comunidade de tamanho médio. No entanto, nem um novo acordo, firmado em 348 a.C., foi suficiente para segurar uma Roma já bem mais poderosa que, nas décadas seguintes, acabou por entrar em um conflito com Cartago, que conforme já vimos anterior, repercutiu em outras duas guerras e teve, por encerramento, a total destruição da cidade africana. Mesmo assim, a resistência do povo subjugado se manteve ao longo de séculos, conforme podemos ler em Warmington: “[…] foi necessário esperar mais de um século até que Roma suplantasse realmente Cartago enquanto potencia política e cultural dominante no Magreb. Por diversas razões os romanos apropriaram-se de uma pequena parte do nordeste da Tunísia, após a destruição de Cartago, e mesmo assim não se ocuparam mais desse território. No restante da África do Norte, Roma reconheceu uma série de reinos vassalos, que de maneira geral conservaram sua própria autonomia”. (WARMINGTON in MOKHTAR, 1983, p. 469)

Por conta da prosperidade que territórios como a Numídia e Mauritânia viveram nesse período, bem como a relação com a língua fenícia, em uma versão mais contemporânea tida como neopúnica e, principalmente, por receber sobreviventes cartagineses, a influência cultural de Cartago, mesmo após completamente destruída, perdurou por muito tempo. Somente em 44 d.C. a Mauritânia foi dividida em duas províncias e toda a região do Magrebe foi plenamente dominada por Roma. A partir desse período, então, mais ou menos em 40 d.C., o líbio e neopúnico, embora ainda utilizados oralmente, foram finalmente substituídos pelo latim como língua escrita. Estava se dando a transformação que retiraria parte da influencia fenícia da região que, desde muito antes dos etruscos, havia marcado a entrada do Magrebe na história do Mediterrâneo e estreitado laços comerciais e culturais com a costa norte e leste, para um novo capítulo que colocava toda a região sob influencia do Império Romano. Influencia, esta, que duraria até a invasão vândala sobre Roma e, também, no Norte da África.

Entretanto, todo esse período marcado por conquistas romanas em território africano, desde a queda de Cartago, não foi obtido de forma tranquila ou pacífica. Embora existam poucos registros dessa fase da história africana, é possível afirmar, segundo Mahjoubi (1983), que Roma sofreu muita resistência. Ao mesmo tempo, conforme já observado anteriormente, também é preciso levar em conta que tudo que sabemos sobre essa eventual resistência é relatado por fontes literárias ou epigráficas, segundo o ponto de vista romano, e analisadas de forma ainda mais imprecisa por uma historiografia europeia do início do século passado. Mesmo assim, é possível afirmar que as guerras de resistência que ocorreram mais ao sul da região dominada por Roma num primeiro momento, envolveram desde a Tripolitânia até a Mauritânia. Mais uma vez, então, pesa o fato de essas guerras serem apresentadas pelos historiadores como luta entre a civilização e o mundo bárbaro. Tribos nômades do deserto lutando para evitar o avanço da civilização e, portanto, dessa forma, ignobilmente, também negando os benefícios de uma forma “superior de cultura”.

No entanto, levando em conta a descrição de como se deu a chegada dos romanos à região, é possível não apenas compreender a resistência como, inclusive, relativizar quem eram os civilizados e quem eram os bárbaros nessa disputa bélica. “Os campos dos Númidas sedentários tinham sido devastados. As áreas tradicionalmente percorridas pelos nômades eram constantemente reduzidas e limitadas. Os veteranos e outros colonos romanos e italianos instalavam-se por toda parte, a começar pelas regiões mais ricas do país. Companhias coletoras de impostos e membros da aristocracia romana, senadores e cavaleiros, aproximavam-se de vastos domínios. Enquanto seu país era assim explorado, todos os autóctones nômades e todos os habitantes sedentários que não viviam nas raras cidades poupadas pelas sucessivas guerras e pelas expropriações foram reduzidos a uma condição miserável ou expulsos para as estepes e para o deserto. Portanto, sua única esperança era a resistência armada e seu principal objetivo a recuperação das suas terras.” (MAHJOUBI in MOKHTAR, 1983, p. 475)

Finalmente, mais ou menos no ano 100 d.C., os romanos fundaram a colônia de Timgad e criou-se uma zona fronteiriça formada por uma rede de 50 a 100 quilômetros, progressivamente deslocada para o sudoeste, composta por trincheiras e defendida por postos militares permanentes. Mesmo assim, Roma nunca conseguiu subjugar os berberes que, se utilizando de camelos, se deslocavam como facilidade e rapidez pelo sul e oeste do Saara. Numa nova tentativa de dominar completamente a região, o romanos criaram os assentamentos – limitanei –, formados por soldados-camponeses, para os quais eram distribuídas terras ao longo da fronteira. Esses soldados-camponeses não pagavam impostos mas, em contrapartida, deles se esperava a proteção dos limes. De forma semelhante a como ocorreu, também, ao longo das fronteiras Norte do Império, esses limites impostos pelo Estado, e efetuados por famílias que se viam abandonadas no meio do nada, mais do que separar as terras que pertenciam à Roma da região livre dos berberes, acabou por tornar-se uma área de intensos contatos comerciais e culturais. Ainda antes do Império, as primeiras experiências de colonizações propostas por Caio Graco, por meio da lex rubia, em 123 a.C., são um bom exemplo de como o projeto nasceu fracassado. Conforme sabemos, devido a questões políticas e motivos econômicos, Graco não foi feliz na sua tentativa de “reforma agrária” e os colonos para lá deslocados acabaram escravizados por senadores e cavaleiros que tomaram, para si, as terras dos assentados. Apenas a partir de Otávio Augusto, retomando os planos do pai adotivos, Júlio César, é que houve algum progresso nas relações entre Roma e suas províncias africanas. “De acordo com uma lista fornecida por Plínio, cujas fontes ainda suscitam controvérsias, em pouco tempo havia seis colônias romanas, quinze oppida, civium romanorum, um oppidium latinum, um oppidium immune e trinta oppida libera.” (MAHJOUBI in MOKHTAR, 1983, p. 485)

Em 212, por conta da Constituio Antonina, os diversos grupos que constituíam o Império Romano na África, com exceção aos escravizados, foram incorporados como cidadãos. Nesse momento a sociedade era dividida, conforme a língua e costumes, em três grandes grupos formados por 1) romanos ou italianos imigrantes, 2) cartagineses e líbios sedentário e, por fim, 3) líbios nômades. Essa integração, aos poucos, também permitiu a ascensão desses novos cidadãos à política romana. O primeiro senador africano veio de Circa e viveu no tempo de Vespasiano mas, um século mais tarde, a África já contava com 170 senadores, constituindo o segundo maior grupo político depois dos italianos. O mesmo ocorreu com os militares que integravam as legiões romanas, evidenciando o quanto a conquista do Norte da África fora importante para toda a manutenção do Império. O próprio Tácito (1952), em seus Anais, relata o recrutamento massivo de africanos após a Campânia e, posteriormente, Roma, serem devastadas por uma epidemia tão colérica que todas as casas relatavam a incidência da morte enquanto, nas ruas, só se via enterros. “Não escapava deste perigo nem sexo nem idade; escravos e cidadãos desapareciam em um instante entre os lamentos de suas mulheres e seus filhos que, ao mesmo passo que choravam a seus maridos e seu pais, já tocados pelo mal, eram muitas vezes conduzidos à mesma fogueira […] Nesse mesmo ano se fizeram recrutamentos na Gália Narbonense, na África e na Ásia para completar as legiões da Ilíria, das quais muitos soldados, ou por doentes ou por velhos, iam recebendo suas baixas.” (TÁCITO, 1952, p. 433)

Fica claro, portanto, que a África era uma fonte inesgotável de recursos de todo o tipo. Pudera, alguns historiadores falam em uma população urbana próxima de 4 milhões de pessoas. Portanto, subjugando a África, Roma contava com milhares de soldados, agricultores, artesãos e comerciantes com quem podia compartilhar experiências mas, sobretudo, recrutar soldados para suas legiões, obter produtos agrícolas e artesanais, além de recolher impostos. Na região, os principais produtos econômicos eram oriundos do cultivo de cereais, da manufatura da azeitona para retirar o azeite, bem como a produção de cerâmicas, também para sua utilização no estoque e transporte deste azeite. Mas, por outro lado, com o domínio romano muitos produtos foram proibidos e pararam de ser produzidos em terras africanas e passaram a ser importados da Europa, o que refletia uma balança comercial cômoda para Roma e deixava as províncias sempre em situação comercial desfavorável. Por fim, alguns produtos que não se encontrava na Europa tiveram seu comércio facilitado através das novas fronteiras do Império na África. Nesse sentido, os países forneciam ouro, através de várias rotas que ligavam a minas da Guiné às praias do Mediterrâneo, esmeraldas e pedras preciosas, animais exóticos e até escravizados negros da África subsaariana. Em contrapartida, Roma pagava a conta através do fornecimento de vinhos, objetos de metal e vidro, além de cerâmicas e têxteis, todos produtos com valor agregado.

É bem verdade que, numa relação entre dominantes e dominados, a balança comercial sempre vai pesar mais para um lado mas, mesmo que isso seja um fato, também é preciso levar em conta que não se trata, apenas, de uma relação unilateral entre civilizados versus bárbaros, conforme apontado, nesse texto, inúmeras vezes. “Após ter sido negligenciada durante longo tempo pelos historiadores de Roma, as artes provinciais e as culturas “periféricas” estão, atualmente, no centro das preocupações. Isso se deve a uma compreensão mais clara dos limites da romanização e das diferentes formas que ela assumiu em seus contatos com as sociedades indígenas. Além disso é preciso considerar que a arte de uma determinada província não pode ser dissociada de sua vida econômica, social e religiosa. A propósito, para estudar e apreciar a arte desenvolvida nas províncias africanas durante a dominação romana, tornou-se necessário considerar o persistente substrato líbio-púnico que continuou a existir e a evoluir durante séculos.” (MAHJOUBI in MOKHTAR, 1983, p. 507)

Por esse motivo, é muito importante reconstruir o olhar historiográfico hegemônico, não somente sobre a África, mas em relação aos diversos povos que, por séculos, foram subjugados por europeus e seus herdeiros norte-americanos. O roteiro é sempre o mesmo, a narrativa se renova apenas na troca dos nomes e datas, mas o fato é que o legado imperialista romano não está presente no nosso tempo apenas através das suas maravilhas arquitetônicas, sua contribuição para o Direito ou suas estradas ainda hoje utilizadas para o deslocamento de pessoas e mercadorias. Roma está presente, em nós, sobretudo, por conta do seu legado bélico, voltado à conquista de outros territórios. Não por acaso, a estética do Terceiro Reich, como já mencionado anteriormente, foi fortemente referenciada na Roma Antiga. Por outro lado, Cartago é um bom exemplo de como a resistência de povos e culturas se dá, muitas vezes, inclusive, de forma inconsciente, mesmo quando toda uma cidade ou um país é completamente destruído. E também não há historiografia hegemônica capaz de apagar os resquícios dessa contribuição cultural. Segundo Mahjoubi, “[…] a História costuma distinguir duas culturas na África, uma “oficial”, de caráter romano e outra popular e provincial” (1983, p. 509), no entanto, é fato que muitas vezes, em inúmeros monumentos, de forma semelhante a como ocorre com a arquitetura remanescente, as duas correntes se encontram, se misturam e até se confundem.

Se Thébert afirma que “[…] a integração da África ao mundo romano só intensifica relações já existentes, não as cria.” (2009, p. 298), também é verdade que, segundo G. Charles-Picard, citado por Mahjoubi, a “África deu muito mais a Roma do que recebeu e mostrou-se capaz de fazer frutificar suas influências com um espírito que não é nem da Grécia nem o do levante helenizado.” (1983, p. 509). Portanto, se desde o fim do Império Romano já vimos a história se repetir inúmeras vezes e o enredo parece ser sempre o mesmo, também é verdade que há resistência em todos os sentidos. Tanto militar quanto cultural.

Em vários momentos, ao longo da História, inclusive, os cenários se repetem. Os séculos avançam e lá no Oriente Médio, naquele enclave entre a África, Ásia e Europa, em pleno século XXI, novamente uma potencia militar, dita esclarecida e democrática, tenta riscar um povo, tido como bárbaro, do mapa. A Faixa de Gaza é, hoje, a Cartago de um passado distante. Mas também já foi o Afeganistão e o Iraque de um passado recente. A mesma África explorada por europeus nos séculos XIX, XX e XXI, em busca de diamantes, é a África que forneceu a mão de obra escrava para que a Europa explorasse a América Latina desde o século XVI, e é a mesma África que, como vimos, romanos exploraram num passado tão longínquo que, parece, não nos pertence. Ao mesmo tempo, assim como a história de exploração deste vasto continente, que atravessa séculos mas sempre está nas mãos de algum império de ocasião, também a Roma Antiga repercute diretamente nós, hoje, em pleno século XXI. Mas, também é fato que se a resistência não ocorre através das armas, ela se dá através das ideias. E até para isso é importante revermos esse olhar hegemônico sobre a História. Afinal, se há algo que o estudo da História nos revela é que esta, a História, é uma permanente disputa entre David e Golias. Se nem sempre David vence a briga, quase sempre ele incomoda e, certamente, embora não seja uma Fénix, sempre renasce das cinzas.

Bibliografia CONSULTADA

BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. África do Norte no Império Romano – representações musivas de identidade e alteridade. Anais do XV ERH-ANPUH-RIO, 2012.

LEPELLEY, Claude. Os romano na África ou a África romanizada – arqueologia, colonização e nacionalismo na África do Norte. Revista Heródoto. Unifesp, 2016.

MENDES, Norma Musco; BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha e DAVIDSON, Jorge. História da vida privada – do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne. São Paulo : Companhia das Letras, 2009.

MOKHTAR, G. (coord). A África antiga. São Paulo – Ática : Unesco, 1983

OLIVEIRA, Júlio César Magalhães de. Sociedade e cultura na África romana – oito ensaios e duas traduções. Intermeios, 2020.

SANT’ANNA, Henrique Modanez de. História da República Romana – Petrópolis, RJ : Vozes, 2015.

TÁCITO. Anais – Vol. XXV. São Paulo, SP : Editora Brasileira Ltda, 1952.

VEYNE, Paul (org). História da vida privada I : do Império ao ano mil. São Paulo, SP : Companhia das Letras, 2009.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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