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MAR ABERTO | Para sempre, escravos*

por Boca Migotto

As temperaturas absurdas que assolaram o Sul do Brasil nessas últimas semanas de janeiro me fizeram pensar naqueles trabalhadores e trabalhadoras que precisaram encará-lo de frente.

Operários de chão de fábrica, garis, pedreiros, padeiros, policiais rodoviários, ambulantes, enfim, todos aqueles que não puderam – e não podem – desempenhar suas atividades no conforto do lar ou do escritório, sob o disfarce do ar-condicionado. Entre todos estes, eu não consigo conceber nenhum trabalhador que sofra mais nesses dias que aqueles responsáveis por remendar nossas estradas esburacadas. Segundo o que li certa vez, a sensação térmica sobre o asfalto quente, debaixo do sol causticante, lidando com o betume, pode chegar a absurdos 150 graus centígrados. Inacreditável. Surreal. Desumano. Afinal, conforme algumas reportagens, se o próprio asfalto derrete, o que resta ao corpo desses seres humanos?

Por isso, seria adequado utilizar essa absurda onda de calor, bem como as tempestades que a sucederam – em Porto Alegre, por exemplo – para falarmos, aqui, sobre as questões climáticas. Não é de hoje que os cientistas nos advertem sobre os perigos do aquecimento global e, mesmo assim, seguimos insistindo em “não olhar para cima”, negando o óbvio como se, a exemplo do que ocorreu – ocorre – com a pandemia, somente isso seria suficiente para solucionar o problema. Se isso não bastasse, ainda fizemos de tudo para parecermos os mais idiotas possíveis e elegemos um idiota ainda maior como Presidente da República nesse momento decisivo da história da humanidade. Mesmo o idiota declarando, em alto e bom tom, inúmeras vezes, que a Amazônia precisaria ser explorada. Em uma sociedade esclarecida, bastaria tal contrassenso para que o candidato amargasse as últimas posições na corrida presidencial. No entanto, sabemos bem que este não é nosso forte. Resultado, com Bolsonaro Presidente, nunca, nesse país – e olha que o páreo é duro – se hostilizou tanto a natureza.

Recentemente vi – e imagino que muitos leitores também – imagens das praias de Alter do Chão, em Santarém, no Pará, considerado o “caribe amazônico” por conta das suas águas cristalinas e azuladas. Não é de hoje que aquele lugar me seduz. Conhecer a Amazônia sempre esteve nos meus planos e Alter do Chão estaria no meu itinerário. Infelizmente, talvez isso não seja mais possível, o que me faz pensar, inclusive, que tal viagem é ainda mais urgente do que eu mesmo imaginava. Digo isso pois, nos últimos dias, extraordinariamente para essa época do ano, as águas da região apareceram turvas e barrentas, algo que, naturalmente, espantou os turistas. Segundo estudos encomendados pelo Greenpeace, o problema teria sido causado pelo garimpo ilegal na bacia do Rio Tapajós que contaminou mais de 600 quilômetros de cursos d’água, atingindo, assim, as até então paradisíacas praias da região. Os turistas, obviamente, sumiram, em busca de outro “caribe” brasileiro – já que a cotação do dólar inviabiliza voos mais altos para fora do país – onde amenizar o calor. Aos ribeirinho que dependiam desse turismo, no entanto, restou apenas o prejuízo.

Se, ao menos, toda essa exploração significasse o enriquecimento geral da nação, como tantas vezes nos prometeram ao longo da história. Mas, me corrijam se eu estiver errado, pois não me parece que toda a madeira retirada da Amazônia, bem como os minerais ou, ainda, o aumento das cabeças de gado, cagando, mijando e arrotando sobre um solo que, um dia, foi natureza exuberante, contribuíram para o meu, o seu, o nosso bem estar social. Eu, ao menos, continuo aguardando uma fatia desse bolo que, de fato, sempre cresce, mas conforme a História – com “H” maiúsculo – constata, apenas para alguns. Coincidência ou não, invariavelmente, são (quase) sempre os mesmos sobrenomes que engordam desse bolo. Aos demais restaria o consolo de um colesterol e triglicerídeos mais equilibrados? Pode ser, mas, para mim, nem isso. O Brasil me obriga a beber e o álcool contribui para o desequilíbrio do meu hemograma. Minha saúde à parte, apesar da importância urgente em discutirmos questões ecológicas como estas – e já fiz isso em textos anteriores, nessa mesma coluna –, dessa vez não quero olhar para o nosso inevitável futuro calamitoso mas, sim, para um passado o qual insiste em se atualizar cotidianamente em frente ao nossos olhos. O calor insuportável dos últimos dias – finalmente deram uma trégua –, em sintonia com as minhas leituras mais recentes, debruçado na obra de Laurentino Gomes, me fizeram refletir, isso sim, sobre uma outra jabuticaba exclusivamente brasileira – perdoe-me a redundância.

A escravidão, e como esta nos definiu como povo, é um tema tão urgente quando o aquecimento global. Embora, ainda muito mais antigo. É impressionante que, passados mais de 500 anos de uma história marcada pela escravidão de indígenas e africanos, o Brasil ainda não tenha conseguido resolver essa que é a sua maior chaga.

Já dizia o abolicionista, José do Patrocínio, lá no século XIX, que não bastava libertar os escravos, era preciso integra-los à sociedade. Como bem sabemos, isso não ocorreu e o resultado é esse país absurdamente desigual. Entretanto, o questionamento é inevitável. Como foi possível o Brasil, do dia para a noite, literalmente “jogar” mais de 50% da sua população na sarjeta? E como um país que faz isso pôde – e pode – acreditar que o destino lhe reservaria um amanhã próspero? Nesses termos, “Brasil, o país do futuro” ou mesmo “o gigante acordou” são narrativas quase surreais, que apenas podem pertencer ao universo do conto de fadas. Isso nunca se realizará sem, antes, resolvermos nosso passado. E é surpreende que ainda não tenhamos nos dado conta disso, procurando, portanto, nos lugares mais inapropriados, as explicações de porquê “o Brasil não dá certo” quando a resposta está em nós mesmos. E quase sempre é assim, não?

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – o Brasil conta com 56% de pessoas que se declaram negros e negras. Estamos falando de mais da metade da população de um país que, segundo o mesmo IBGE, em 2022, no exato momento quando finalizo esse texto, atinge 214.177.632 brasileiros, e aumenta a cada 21 segundos. Portanto, estamos falando de aproximadamente 119 milhões de brasileiros os quais, diariamente, ainda sofrem com as consequências, diretas ou indiretas, do racismo. Podemos afirmar que a avassaladora maioria dessa população está, e sempre esteve, sobrevivendo à margem da sociedade brasileira e, para comprovar tal afirmação nem é preciso recorrer às estatísticas. Basta olhar para os lados e procurar negros nos hospitais, atuando como médicos, nos bancos universitários – mesmo hoje, depois da revolução provocada pelo PROUNI e pelo acesso ao ensino superior público por meio da lei das cotas raciais –, nas grandes empresas, como executivos e/ou diretores. Praticamente inexistem. Por outro lado, quando viramos os olhos para as periferias, favelas, penitenciárias, sinaleiras das grandes cidades e nas profissões ditas “menos qualificadas”, lá estão eles, reflexo diário da nossa hipocrisia histórica.

Eu até entendo, é brochante admitir que o Brasil foi construído não (apenas) por europeus loiros e de olhos azuis mas, sim, (também e principalmente) por escravos. Para um país eternamente colonial, com sérios problemas de autoestima, apegado ao conservadorismo masculino, essa brochada é inadmissível. Melhor usar uma peneira e esconder o sol causticante sobre nossas carecas ocas de pensamento. Infelizmente, no entanto, nem o mais resistente guarda-sol sobreviverá ao “Nordestão” – típico vento extremamente forte, que inviabiliza a praia dos gaúchos – histórico. Chegará o momento – e este está chegando – quando será inevitável sentar no divã da História. Não há como seguir adiante sem nos confrontarmos como nação.

O homem branco, europeu, colonizador, sempre foi visto, pelo próprio homem branco europeu, fraco demais para desempenhar atividades braçais sob o abrasante calor tropical. A solução mais fácil – e hipócrita – foi escravizar os nativos e, após um verdadeiro genocídio indígena, importar mão-de-obra da África. Portanto, por mais que se tenha tentado apagar a História, os números dessa tragédia humanitária são tão assustadores que se recusaram a submergir no esquecimento. Segundo o site slavevoyages.org, ao todo, foram mais de 12 milhões de escravos embarcados para as Américas, sendo que apenas o Rio de Janeiro e Salvador, juntas, receberam 2,8 milhões de africanos. São duas Porto Alegres inteiras. E está tudo lá no site, em português, nem é preciso muito esforço para conferir. Números, nomes – dos barcos e capitães – de onde saíram, para onde foram, quais as datas. Lá também é possível comprovar que, sozinhos, Brasil e Portugal, foram responsáveis pelo transporte de 5,8 milhões de escravos, o que fez do português a língua oficial do comércio de escravos africanos. Não teve nem para franceses, nem para ingleses, nesse “negócio”, a língua de Camões assumiu o controle. Não é por acaso que, durante o auge da escravidão, entre os séculos XVII e XVIII, 86 em cada 100 brasileiros eram oriundos da África.

Não apenas os números são inacreditáveis, mas os métodos por trás desse “métier”. Para compreender um pouco melhor isso, indico, como introdução ao tema, a leitura dos livros “Escravidão”, volume I e II – o terceiro ainda não foi lançado –, de Laurentino Gomes. No entanto, já que aqui estou, motivado a escrever sobre o tema justamente em função das minhas leituras, farei um rápido resumo daquilo que mais me chamou a atenção na forma como o comércio escravo se constituiu, e se consolidou, ao longo de praticamente 350 anos.

A “linha de produção” da escravidão começava no continente africano, onde os escravos eram capturados em expedições organizadas por europeus e africanos. Sim, embora naquele momento nem o conceito de “continente africano” existisse, a escravidão apenas foi possível porque os europeus se aliaram às tribos locais. Muitas destas, na verdade, constituíam verdadeiros reinos, inclusive alguns muito significativos em população, poder e domínio tecnológico, os quais, já há séculos, escravizavam-se uns aos outros. Mas, ao contrário disso servir como desculpa para amenizar as responsabilidades dos europeus, como tentou argumentar o então candidato, Jair Bolsonaro, em uma entrevista ao Roda Viva, o fato destes, e de brasileiros, constituírem parcerias locais com certos reis africanos, apenas explicita ainda mais a ganância humana. Segundo Gomes, na Fortaleza de São João Baptista de Ajudá – atual República de Benim – importante entreposto para o comércio de escravos, acredita-se que eram vendidos homens, mulheres e crianças oriundos de mais de trinta diferentes grupos étnicos vindos de regiões tão longínquas, no continente africano, que alcançava o Sudão, distante 1.600 quilômetros da costa oeste. As expedições de captura, portanto, mergulhavam fundo no continente e, uma vez capturados e acorrentados, os cativos eram obrigado a caminhar, em fileiras chamadas “libambos”, por em média cinco a seis meses até chegarem aos entrepostos, nas cidades litorâneas. Lá, esperavam por mais cinco meses pelo embarque.

Essa espera ocorria em barracões cerrados, imundos, escuros e sem a mínima ventilação. As necessidades fisiológicas eram feitas ali mesmo. Não havia latrinas. Dá para imaginar o cheiro do lugar. Por isso, uma vez por semana, quando muito, todos eram levados, sempre acorrentados, para o mar, para se lavarem na água salgada. Aqueles que presenciaram esses banhos, e escreveram sobre, relataram que muitos gritavam de dor por conta do sal, que penetrava as feridas em carne viva provocadas pelas correntes e argolas de ferro. Uma vez embarcados, a travessia podia durar entre dois a três meses. Se vindos para o Brasil. Uma viagem para o Caribe ou para o Sul dos Estados Unidos, por exemplo, poderia levar até o dobro de tempo. Aqueles que não resistiam à viagem e morriam, naturalmente, eram jogados no oceano. Foram tantos, que os tubarões mudaram seus hábitos alimentares e passaram a “seguir” as rotas dos navios negreiros, a espera dos corpos jogados ao mar. Uma vez no Brasil, os sobreviventes eram “escovados” com areia e besuntados com óleo para “parecerem” o mais saudáveis possível e, assim, serem leiloados. Só então eram deslocados para as fazendas de café ou cana-de-açúcar, principalmente, ou, ainda, após o século XVII, com a descoberta do ouro, para as minas localizadas nos atuais estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Lá, depois de toda essa epopeia, por conta da precariedade da mais básica infraestrutura em uma região até então praticamente despovoada, milhares deles simples morriam de fome.

A escravidão africana atravessou todos os principais ciclos produtivos do Brasil, desde o açúcar, passando pela mineração, café, charque, além da produção de algodão, tabaco e cacau. Através do trabalho escravo, o negro enriqueceu brasileiros e europeus. Principalmente europeus. Mas não só, afinal, o próprio mercado escravocrata era, em si, um negócio extremamente lucrativo e presente em todos os segmentos da sociedade da época, nos cinco continentes. Conforme escrito acima, Portugal foi o principal país a comercializar escravos da África para as Américas, mas todos os demais estados e reinos europeus estiveram, direta ou indiretamente, envolvidos nesse “negócio”. E todos enriqueceram. Até a Suíça, país que nem ao menos tem saída para o mar, esteve envolvida financiando o “trade” internacional. Da mesma forma, claro, a Igreja, que além de se envolver diretamente no comércio, em nome de Deus ajudou a “legitimar” tal brutalidade através de uma infinidade de argumentos estapafúrdios.

Segundo cálculos apresentados no livro “Escravidão – volume II”, de Laurentino Gomes, em valores atuais, um negro custaria entre 335 a 556 mil reais, conforme seu porte físico, idade, gênero e estado de saúde. Embora razoavelmente caro, o “investimento” se pagava em quatro anos. Como um escravo resistia em torno de dez anos, o lucro superava os 100%, o que garantiu o enriquecimento de inúmeras famílias as quais, até hoje, figuram seus sobrenomes na nossa História, em nomes de ruas e avenidas, por exemplo, ou, ainda mais grave, no nosso cotidiano, como “representantes” do povo, em Brasília. Da mesma forma, foi através da escravidão que a Europa construiu as bases de uma sociedade que muitos de nós, hoje, admiramos e tentamos acessar ao imigrar para o Velho Mundo. O conceito de liberdade, fraternidade e igualdade, por exemplo, pode ter sido cunhado na Revolução Francesa, mas foi pintado com sangue africano. Isso porque o lucro sobre o tráfico negreiro e, após, advindo do trabalho escravo nas minas de ouro, prata e diamantes em toda a América Latina, financiaram praticamente toda a arte, cultura e economia europeia. O Renascimento Italiano e, mais tarde, a Revolução Industrial, na Inglaterra, apenas para citarmos dois exemplos – e que exemplos – foram viabilizados pelo lucro obtido com o tráfico de escravos. Portanto, ao deslumbrarmo-nos com a Mona Lisa, no Museu do Louvre, em Paris, é justo que nos admiremos com a genialidade de Leonardo da Vinci, mas também é preciso lembrar que o gênio italiano foi bancado pela família toscana dos Médici, grandes financiadores das expedições de captura e comércio de africanos para o trabalho escravo nas colônias europeias.

Por tudo isso – e muito mais que nem cabe aqui, nesse texto – é um milagre um ser humano sobreviver a tamanha provação e ainda seguir vivo para trabalhar, por anos a fio, em condições desumanas, sofrendo maus tratos de toda espécie, mal alimentados e sujeitos às mais variadas doenças. Mais ainda, formando famílias e gerando descendentes que, geração após geração, insistiram em sobreviver – e sobrevivem – ao racismo enraizado nas entranhas desse país.

Portanto, todo o descendente africano que, hoje, vive e resiste nas nossas cidades é, em si, um milagre. A prova viva da força do ser humano que, mesmo sujeitado às mais perversas condições, luta até o fim para seguir respirando. Para um povo que sofreu tanto, apenas respirar não é pouca coisa. Se isso não bastasse, a despeito de todo esse sofrimento infringido, ainda assim, os inúmeros povos africanos arrancados de sua terra e trazidos para o Brasil nos legaram uma cultura diversa e diversificada que transpassa a nossa arte, alimentação, economia e, inclusive, nossa língua oficial. Citando Gomes, a partir do “Escravidão – volume II”, na página 249 o autor afirma que os traços africanos “[…] estão por toda parte, na dança, na música, no vocabulário e na culinária, nas crenças e nos costumes, na luta do dia a dia, na força, no semblante e no sorriso das pessoas. Estão também na paisagem, na arquitetura e na arte [em casas, igrejas, portos e chafarizes]”. Portanto, não é pequena a dívida que temos para com as diversas etnias africanas as quais, por conta da obsessão europeia por dinheiro e poder, acabaram se mesclando entre si, e com a incipiente cultura deste lado do Atlântico, constituindo um sincretismo único no planeta.

Infelizmente, insistimos em tapar o sol com a peneira, negando a nós mesmos, brasileiros, a oportunidade de repararmos minimamente essa tragédia humanitária que é a base fundadora do nosso país. Pensem comigo, é como se o Brasil tivesse sido construído sobre um cemitério povoado por corpos e almas de negros e indígenas. Aliás, isso é exatamente o que afirma a jornalista, Eliane Brum, em outro livro urgente para compreendermos o Brasil contemporâneo, “Banzeiro Òkòtò”. Ou seja, você construiria a sua casa sobre um “campo santo” assim trágico, marcado pela dor e sofrimento de milhões de seres humanos? Nem esperarei pela resposta, acredito que “não”. Por isso – mas não apenas por isso – é preciso reconstruímos o Brasil a partir de fundações sólidas, humanitárias e baseadas na justiça social, o que demanda, inclusive, uma revolução conceitual. O Brasil é um país essencialmente negro – o maior, fora do continente africano – e assim precisa ser orgulhosamente percebido por toda a sociedade. É também urgente creditarmos aos negros a construção desse país e reconhecermos o protagonismo dos escravos na História do Brasil.

Infelizmente, não sei se por desconhecimento histórico, preconceito, baixa autoestima ou, até, instinto de sobrevivência, historicamente, quase sempre, aceitamos – e agora falo não apenas dos escravos negros, mas dos trabalhadores, pobres e explorados de todos os tempos – nossa condição subalterna frente uma elite minoritária, escravocrata e irredutível nos seus privilégios. E isso, de fato, impressiona pois, como já observado anteriormente, a população negra do Brasil colônia sempre foi infinitamente maior que a população branca e, esta, sempre temeu uma insurreição por parte dos escravos. Entretanto, muito pouco ocorreu, na luta por liberdade e igualdade, que fosse suficiente para realmente transformar essa lógica injusta e, sobretudo, criminosa. Nisso, temos que admitir, nossa elite é coerente ao seu famigerado “mito”. São mais de 500 anos que a mesma elite corrompe o sistema e se mantém firme e forte nas mais importantes decisões políticas, que dizem respeito a todos nós, e nada lhes acontece.

Revoltas e resistência houveram, claro. Basta lembrar dos Quilombos que se espalharam pelo Brasil profundo. No entanto, a elite portuguesa, e brasileira, sempre foi eficaz em desmobilizar todo tipo de insurreição mais significativa. Basta acessar os livros de História para perceber isso.

Como resultado, me parece, fomos nos acostumando ao papel de figurantes da nossa própria História e, conformados, nos tornamos vítimas daquilo que diz o ditado: “quando os bons se ausentam, os maus se fortalecem. É claro que a História é, sempre, repleta de complexidades. E são tantas que até é impossível traze-las para esse singelo texto. Portanto, não quero simplificar tais complexidades. Mesmo assim, não me furto de refletir sobre as consequências históricas que nos trouxeram, resilientes (demais), a esse presente catastrófico no qual todos nós – uns mais, outros menos – também somos escravos. Mesmo que, muitas vezes, nem saibamos ou não admitamos.

E não é preciso voltar muito na História para nos enxergarmos no espelho da verdade. Após a pandemia de Covid-19 – que, aliás, matou mais de 600 mil brasileiros – segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – Rede PENSSAN – são 116 milhões de pessoas que convivem, diariamente, com algum grau de insegurança alimentar. Se isso não bastasse, a Organização Internacional do Trabalho – OIT – projeta que o Brasil terá 14 milhões de desempregados em 2022 – segundo vários outros institutos, esse número é extremamente modesto. A quantidade de estudantes universitários, professor, engenheiros, advogados, pequenos empresários e artistas que encontraram uma sobrevida dirigindo para a UBER, ou pedalando pelas cidades com uma bolsa da IFOOD nas costas, revela que o desespero bateu à porta também da sempre acovardada classe-média. Em matéria da Folha de São Paulo do último sábado, 29 de janeiro, inclusive, especialistas de diversas áreas avaliam que a crise já chegou às classes mais abastadas, daqueles que recebem mais de 10 ou 15 mil reis por mês. Portanto, mesmo que não haja números para referenciar uma impressão pessoal, acredito que são realmente poucos os pais e mães que, ainda empregados, deitam suas cabeça tranquilamente no travesseiro à noite. Seja por conta das dívidas que se acumulam, seja por medo de perderem seus empregos a qualquer momento, seja pelo futuro dos seus filhos. A insegurança é um fantasma que ronda a todos. E ninguém se sente protegido. Mesmo assim, e apesar de tudo isso, os poucos negacionistas que ainda conseguem – sabe-se lá como –, seguem fazendo de conta que tudo está bem. Esbanjam suas economias em produtos e serviços fúteis para bancarem as aparências. Algo que, de certa forma, não deixa de evidenciar outro tipo de escravidão. Já os desfavorecidos, estes seguem como podem, em uma luta diária pela sobrevivência, seja catando comida em latas de lixo ou em filas de doação de ossos.

Ao mesmo tempo, enquanto tudo isso ocorre, vemos o Presidente passando férias bancadas com dinheiro público – algo que é ilegal, segundo a Constituição Brasileira – enquanto baianos, mineiros e, agora, paulistas, literalmente submergem em enchentes que arrastam suas vidas – e o trabalho de uma vida – em um tsunami de lama e esgoto. É só ligar a TV, em um noticiário qualquer, para perceber que o Brasil, literalmente, está sendo tragado pela mesma terra que sempre subjugou. Mesmo assim, as férias nunca acabam. Em vez de comprometimento com os brasileiros, um pouco de empatia e sensibilidade, o que vem do governo é mais redução do orçamento para áreas críticas como Educação, Trabalho, Previdência, Infraestrutura, Desenvolvimento Regional e Saúde enquanto o idiota – não disse que era um idiota? – “brinca” de comer frango e farofa “como pobre”. Como se aquela cena grotesca, repercutida nas redes e nos meios de comunicação, apagasse as cifras do Fundão Eleitoral, das “rachadinhas” e “rachadonas”, dos recordes de gastos no cartão coorporativo, das mansões compradas e “alugadas” pelos filhos, das motociatas sobre os cadáveres da pandemia, enfim… melhor parar por aqui. Embora a lista seja um buraco negro, já é o suficiente para dizer que, neste país, nunca faltou, e segue não faltando, motivos para uma revolução. Apesar disso, seguimos todos no mesmo passo hipnotizante de uma escravidão moderna.

Muito semelhante ao que ocorreu ao longo dos 350 anos de tráfico e exploração de escravos africanos, quando a elite do período em questão faturava com o comércio de seres humanos para, depois, lucrar com o trabalho desses mesmos seres humanos, hoje nos vemos presos a um ciclo vicioso no qual, novamente a elite – e muitos de hoje descendem diretamente daqueles de ontem – nos faz produzir em troca de um salário mínimo desumano o qual, logo mais, ao sair da fábrica, será gasto no consumo dos mesmos produtos produzidos por nós. Quer dizer, seguimos como escravos de uma minoria que, se hoje não pode mais nos trancafiar e açoitar – embora em muitos casos e lugares isso ainda exista –, mesmo assim, segue nos obrigando a trabalhar sob o escaldante sol de 40 graus em troca de esmolas que, posteriormente, retornarão ao mesmo bolso de onde saíram. Nos tempos da escravidão relatada nos livros aqui citados, ao menos, havia a força que subjugava um coletivo acorrentado ao seu trágico destino, mas hoje, quais são as amarras que nos prendem a esse modelo ilógico? Não somos livres para lutarmos e exigirmos mudança? Para demandarmos um modelo econômico e social justo para todos? Que tipo de transe é esse que nos transforma em gado manso, imbecializados pelas promessas de um consumo desnecessário? Onde está a nossa liberdade? O que é liberdade?

Escravos sempre existiram na história da humanidade. Aliás, praticamente todas as grandes obras e conquistas do ser humano estão associadas à escravidão. Inclusive as pirâmides, que muitos insistem em creditar aos extraterrestres. Portanto, a palavra “escravo” está presente em diversos idiomas e dialetos ao longo do tempo. Escravo, em português; “esclave”, em francês; “schiavo”, em italiano; “sklave”, em alemão; ou “slave”, em inglês. Todas essas variações derivam do latim, “slavus”, palavra usada para designar o povo eslavo, da região dos Bàlcãns, no Sul da Rússia, grande fornecedor de cativos até o início do século XVIII. Ironicamente, mais uma vez os romanos nos ensinando que todas as estradas realmente levam à Roma.

Pois bem, isso serve para nos provar que a escravidão nem sempre esteve associado à cor da pele. Os eslavos, naturalmente, eram – e são – pessoas brancas, de cabelos loiros e olhos azuis. Por isso, quem sabe, esse último dado sirva para nos fazer refletir melhor sobre o que, de fato, signifique ser escravo. Afinal, um ditado popular que todos devem conhecer nos diz que “para um bom entendedor, meia palavra basta”. Pensemos sobre isso, pois quando o ar-condicionado quebrar pelo uso, ou faltar luz, estaremos todos sob o mesmo efeito das nossas escolhas. Independentemente da cor da nossa pele. Portanto, acordemos antes que o calor frite ainda mais o nosso cérebro. Não falta muito.

* Dedicado ao jovem congolês, Moïse Kabagambe, de 24 anos, covardemente assassinado no Rio de Janeiro, no dia 24 de janeiro. Mais uma vez, a realidade nua e crua nos mostra o quanto seguimos presos a um passado escravocrata, pautado pela dor e pela morte.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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