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MAR ABERTO | Meu lugar no mundo?

Nasci em Carlos Barbosa, morei em Londres e em Paris. Com exceção da primeira, as duas grandes metrópoles citadas na linha anterior fizeram parte dos meus planos para um vida longa e enraizada na Europa. Londres não rolou pois decidi não deixar meus pais sozinhos no Brasil e quando morei em Paris, recentemente, a certeza da minha latinidade falou mais alto já nos primeiros meses de vida europeia. Portanto, por mais que quisesse insistir, e apesar das suas imperfeições, foi sempre Porto Alegre que habitou meu coração e mente.

Principal vitrine do Rio Grande do Sul, um estado notadamente conservador e arcaico, a nossa capital se constituiu a partir da relação frustrada entre o querer e o não poder. Pensada por sua elite – tosca, rude e agro – para ser a representação de suas próprias ambições estéticas, Porto Alegre sempre esbarrou na impossibilidade de concretizar sua urbanidade referenciada na Paris de Georges-Eugène Haussmann. Não foi a única, é verdade, Paris foi referência para inúmeras cidades ao redor do planeta. Mas, aqui, ao contrário de Nova Iorque, Rio de Janeiro e Buenos Aires – para citar três exemplos significativos para nós – não havia capacidade de investimento suficiente para transformar, na prática, aquilo que chegou existir no papel. Restou fazer o possível – o Viaduto da Borges, por exemplo – e invejar eternamente as demais capitais inspiradas no traçado urbano da “Cidade Luz”.

No entanto, por causa disso, projeto após projeto, a cidade foi se frustrando mais e mais e, assim, infectando seus próprios habitantes com o vírus do pessimismo. Desde muito cedo Porto Alegre ganhou fama de planejar obras megalomaníacas que dificilmente saiam do papel e disso, então, nasceu uma espécie de amor abusivo e esquizofrênico o qual pode, facilmente, conjugar num mesmo diálogo “a melhor cidade do mundo” com “uma província onde nada há para se fazer”. O fato é que o porto-alegrense se viu perdido entre dois mundos idealizados. De um lado, mais ao norte, a capital, Rio de Janeiro. Do outro lado da fronteira, mais ao sul, “mi Buenos Aires querida”, uma Paris em solo latino-americano. Mesmo São Paulo, sem o charme tropical do Rio, ou mesmo Montevideo, embora tão provinciana quando a própria Porto Alegre, conseguiram ser invejadas pela “mui leal e valerosa” capital dos gaúchos. Durante muito tempo, até a pequena Pelotas chamava mais atenção do mundo artístico e cultural. As produções europeias, após se apresentarem no Rio e antes de chegarem às capitais do Rio do Prata, ancoravam seus navios na pequena “terra do sal e do açúcar”, sem nem ao menos saberem que existia uma certa cidade de nome Porto Alegre.

Na minha pesquisa de doutorado, que visava compreender um pouco do cinema gaúcho realizado em Porto Alegre e/ou por porto-alegrenses, logo ficou claro, era necessário compreender melhor a origem e as consequências dessa frustração histórica. A “dança dos caranguejos” no balde da discórdia seria apenas uma lenda urbana? Para isso, mergulhei nos livros daquela que, possivelmente, foi a pesquisadora que mais dedicou sua vida a compreender nossa capital; Sandra Pesavento. E um livro seu foi fundamental, o qual, inclusive, indico com todas as forças: “O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre”, de 1999. Antes de compreender Porto Alegre, no entanto, é preciso olhar para a história do Rio Grande do Sul.

Para o bem e para o mal, a posição geográfica do nosso estado, suas particularidades históricas, culturais e climáticas fazem desta terra um território atípico no Brasil e na América do Sul. Culturalmente, o Rio Grande do Sul é formado a partir da mescla de diversas etnias, a começar pelos povos indígenas que habitavam esse território sem fronteiras, passando pela colonização lusitana e hispânica sem esquecer, claro, os inúmeros povos africanos que, apesar de terem vindo para cá à força, como escravos, foram fundamentais na construção e consolidação da riqueza advinda, principalmente, das charqueadas a partir do século XVIII. Embora pouco se fale – e se queira admitir – há ainda a contribuição dos muçulmanos que, embora tenham sido expulsos da Espanha no século XVI, por conta dos quase oitocentos anos de permanência na Andaluzia marcaram consideravelmente a cultura ibérica e, consequentemente, acabaram por influenciar, de tabela mas de forma significativa, a constituição do gaúcho. Num segundo momento, é preciso somar a essa formação étnica a contribuição genética e cultural dos alemães, italianos, poloneses, suecos, suíços, russos, chineses e japoneses. Certamente esqueci várias outras etnias mas o que importa, aqui, é perceber que todos estes povos vieram para cá com uma mão na frente e outra atrás, praticamente expulsos de seus países onde pereciam de fome e sem oportunidades de trabalho.

No entanto, esse povoamento é recente. Demorou muito para que as terras ermas, e sem portos naturais, ao Sul da colônia portuguesa, despertassem o interesse econômico de Portugal ou da Espanha. Mesmo após o Tratado de Madri, em 1750, a vinda da família real para os trópicos, em 1808, ou a constituição do Império do Brasil, em 1822, o Sul do país basicamente era lembrado apenas quando havia alguma ameaça de guerra ou revolução. Tudo isso, possivelmente, contribuiu para essa sensação de rejeição que acompanha os gaúchos. Entretanto, foi somente a partir do final do século XIX, com as tentativas frustradas de modernização da sua capital, que tal sentimento passou a ser registrado pela literatura regional, principalmente através dos primeiros jornais porto-alegrenses. Dessa forma, a partir desse momento, a frustração, que até então apenas pairava no ar, disseminada em rodas de mate ao redor do fogo de chão, passou a ganhar as páginas dos periódicos e, assim, ser lida, incorporada e discutida também entre a elite gaúcha. É importante destacar esse movimento da oralidade para a escrita pois simboliza o início da construção efetiva de um imaginário sobre a capital.

Segundo as pesquisas de Sandra Pesavento, nesse período de transformações urbanas significativas em todo o Brasil, Porto Alegre buscava se modernizar conforme os parâmetros europeus do século XVIII e XIX. No entanto, as suas limitações orçamentárias impediam a consolidação de projetos mais significativos.

Ao mesmo tempo, a ascensão de uma burguesia intelectual – e rica – local, que viajava o mundo e retornava para Porto Alegre ansiando (re)viver, aqui, tudo o que havia experimentado nas principais cidades fora do Brasil, ou mesmo em São Paulo e Rio de Janeiro, contribuiu para o surgimento – ou reforço – de um sentimento contraditório. Por um lado, essa burguesia intelectual, também responsável pela abertura das primeiras empresas jornalísticas, almejava não apenas a modernização da capital, mas também uma mudança comportamental da sociedade que se aproximasse, o máximo possível, do padrão europeu. Por outro lado, essa mesma elite intelectual, em Porto Alegre, desejava que isso ocorresse sem dor e sofrimento. Ou seja, sem perder os privilégios garantidos pelo status quo essencialmente ligado às históricas oligarquias do campo. Aqui já é possível perceber que a Porto Alegre que nasce das páginas dos jornais é reflexo, não da diversidade cultural apontada acima – indígenas, negros, europeus de diversos países –, mas da elite ruralista que, na época, já detinha o poder econômico na antiga Província de São Pedro.

É nesse momento, então, que o positivismo é percebido como pensamento ideológico capaz de conciliar tais interesses e, ao mesmo tempo, servir de contraponto ao liberalismo político e econômico. Ambos, positivismo e liberalismo, surgiram no bojo da Revolução Federalista de 1893-1895, entre chimangos e maragatos, e são percebidos como fatores determinantes para a eclosão da histórica polarização política no Rio Grande do Sul. Os maragatos, liderados por Gaspar Martins, representavam os federalistas, e os chimangos, liderados por Júlio de Castilhos, representavam os republicanos. Assim, o positivismo é analisado como base doutrinária dos republicanos enquanto o liberalismo como base doutrinaria dos federalistas. Uma vez que os chimangos se deram melhor, contando com as bênçãos do governo federal, o positivismo também ganhou força. Não apenas no Rio Grande do Sul, mas em toda a Velha República.

Surgido na Revolução Francesa como consequência do desenvolvimento científico e comercial em detrimento à centralização absoluta do Estado, o positivismo buscava a harmonia social a partir da integração da religião cristã, ainda com raízes no medieval, com as transformações científicas e a industrialização das cidades surgidas no bojo da Revolução Industrial. “Conservar melhorando” era a expressão utilizada pelos positivistas, que viam como negativos os tumultos revolucionários – embora admitissem que a nova ordem, que estava emergindo, apenas fora possível por conta de uma revolução que permitiu tais desdobramentos – e percebiam como positivas a reconstrução e a reorganização social. Desejavam construir um Estado mais moderno, para dele usufruir, sem, no entanto, provocar uma ruptura desnecessária com os setores mais tradicionais e conservadores os quais, em última instância, faziam parte do mesmo “clubinho”. Oficiais do Exército, latifundiários, comerciantes e alguns industriários em ascensão, todos almejavam que o Brasil percebesse o Sul como um território voltado para o futuro – a exemplo de Rio e São Paulo – sem que, para alcançar isso, fosse necessário abrir mão dos velhos privilégios de sempre. A vitrine desse Rio Grande do Sul que servisse como exemplo ao Brasil, necessariamente, seria a capital, Porto Alegre. Portanto, era preciso transformar a cidade, melhorando-a estruturalmente sem que, no entanto, isso significasse também uma mudança social.

Na França, os positivistas eram representados pela Igreja e pela nobreza deposta que, embora tivessem perdido alguns privilégios, ainda eram muito influentes sob o ponto de vista cultural e, especialmente, econômico. Algo bastante conveniente, pois permitiria a ascensão da burguesia sem que, para isso, fosse necessário perpetuar o conflito com a histórica elite francesa.

Para os positivistas, claro, esse sistema levaria paz à sociedade e estabilidade ao regime político. O desenvolvimento científico e industrial pavimentaria o caminho para o progresso e a felicidade humana. Percebam que a arte – e os artistas – não fazem parte desse projeto o qual, basicamente, imaginou um futuro onde industriários seriam as peças mais importantes de uma Nação-Estado, na qual caberia aos governos apenas intervir a favor de corrigir os privilégios individuais em busca da solidariedade, da igualdade social e do estímulo à produção. Sim, basicamente o mesmo discurso repetido infinitamente até os dias de hoje. Nenhuma surpresa, afinal, é onde está o dinheiro que rege a sociedade capitalista.

Mas isso é uma outra história, sigamos com Augusto Comte pois, segundo ele, o sistema político positivista seria regido por um regime científico, industrial e pacífico, cujo lema era o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim. É desse slogan, inclusive, que vem os dizeres “Ordem e Progresso” presentes ainda hoje na bandeira brasileira – redesenhada em 1889, por Raimundo Teixeira Mendes, quando da Proclamação da República. Percebam que se já não havia espaço para arte, também o amor foi percebido como superficial. Corta-se o amor, mantém-se a ordem e o progresso. É impressionante o quanto o nosso passado revela o presente.

Embora o positivismo tenha sido importante para fundamentar o pensamento dos republicanos em todo o Brasil, dentre os estados brasileiros, foi no Rio Grande do Sul que o mesmo encontrou as melhores condições de se fazer presente. Não por acaso, alguns dos principais conspiradores republicanos eram militares gaúchos ou, ao menos, por aqui haviam passado. Dizem que não houve, no mundo, outro lugar onde o positivismo melhor se adaptou. Não sei é possível afirmar isso com tal veemência, mas é fato que o mesmo serviu aos interesses da elite gaúcha de forma bastante semelhante ao que ocorreu na França salvo o fato de que, lá, como sabemos, revoluções populares transformaram a sociedade de dentro para fora. Muito diferente do que ocorreu com a Revolução Farroupilha. Por isso, foi necessário readequar alguns conceitos positivistas para a realidade local. Dessa forma, com a morte de Júlio de Castilhos, em 1903, principal entusiasta e defensor do positivismo no Rio Grande do Sul, a versão local do regime francês ganhou uma flexibilidade ainda maior, o que permitiu sua definitiva assimilação pelo público e pela realidade gaúcha urbana.

O principal aspecto desse então menos positivismo e mais castilhismo era pensar a moralização dos indivíduos por meio da tutela do Estado como elemento fundamental para a organização social. Ou seja, o governante teria, para si, o direito e o dever de moralizar a sociedade por intermédio da educação civil.

Foi assim que, durante a Velha República, o Rio Grande do Sul conseguiu incrementar uma série de melhorias de infraestrutura como estradas, viadutos, iluminação pública, obras de saneamento básico e abertura de escolas públicas. Com isso, a modernidade – ou algo próximo disso – alcançou, finalmente, a provinciana Porto Alegre, vitrine deste estado arcaico, porém em ascendente influência política. A vida social urbana passou a ganhar novos ares, e o próprio cinema – principal tema da minha tese de doutorado – teve condições de se estabelecer com mais força nos centros urbanos, definindo, dessa forma, uma nova ordem social que via o espaço público como lugar de lazer e convívio, a exemplo do que havia ocorrido nas maiores cidades do mundo. Com saneamento, iluminação pública, comunicação e estradas, foi possível aos cidadãos ilustres usufruírem das cidades até mais tarde da noite. Dessa forma, mesmo que timidamente, Porto Alegre passou a ser uma capital (mais) pulsante, dando início a uma vida cultural e social intensa, inspirada na “façon de vivre” parisiense ou no “american way of live” nova iorquino. Cafés, confeitarias, livrarias e outros espaços públicos justificavam os tradicionais “footings” – estamos justamente no período de transição da influência da língua francesa para a inglesa – pelo centro da cidade, e assim se consolidou uma rede de serviços e comércio que atraía e mantinha as pessoas nas ruas até tarde da noite. Obviamente, tudo isso ocorria apenas nos bairros centrais onde a elite porto-alegrense constituiu seus negócios e construiu suas moradias e, na medida que a cidade ia crescendo, também ia empurrando sua periferia para mais distante do Centro.

Tudo isso – e apesar disso – provocou uma pequena revolução de costumes, o que gerou uma certa satisfação social. Tal sentimento coletivo, consequentemente, fortaleceu o Partido Republicano, que conseguiu perpetuar-se no poder. Apesar das adaptações sobre o positivismo, realizadas por Castilhos e seguidas por Borges de Medeiros, que governou o Estado por dois períodos, de 1898 a 1908 e, novamente, de 1913 a 1928, o lema de Comte – “conservar melhorando” – seguia presente, embora tais melhorias urbanas não significassem, necessariamente, uma modernização de pensamento. Ao contrário, por causa dessas “melhorias”, o castilhismo era assimilado inequivocamente pela sociedade, restando muito pouco espaço para questionamentos e/ou debate público.

A elite republicana gaúcha começava a se estruturar nas cidades a partir da implantação das indústrias e do aprimoramento dos serviços públicos. Fazia isso, entretanto, sem romper completamente os laços com o campo e as oligarquias locais. “Conservar melhorando” também significava uma forma de, no interior ou na capital, essa elite seguir se perpetuando no centro do poder – e das decisões – e, assim, determinando de forma moralizante os preceitos a serem seguidos por toda a comunidade sul-rio-grandense. Isso se manteve praticamente inalterado ao longo das décadas, disseminando valores os quais estão, ainda hoje, arraigados na sociedade gaúcha: a indústria tradicional e o agronegócio como bases da economia do estado; a dificuldade em aceitar inovações – principalmente culturais – que possam significar um perigo à ruptura dessa ordem; o consequente conservadorismo de pensamento, ancorado numa moralidade construída a partir do mito do gaúcho como aquele homem valente, destemido e honrado e a neutralização daqueles que emanam uma percepção – e opinião – diferenciada sobre tais valores. A priori, um enfrentamento significativo a essa lógica histórica de pensamento e manutenção do poder vai ocorrer somente após a Ditadura Militar, por conta da abertura política, da redemocratização e, principalmente, como reflexo de uma Globalização já bastante intensa na Europa e nos Estados Unidos.

Felizmente, se há algo positivo a respeito desse conservadorismo enraizado no Rio Grande do Sul é o fato de que, aos olhos da História, as revoluções surgem justamente dos ambientes onde a repressão se faz mais presente.

Portanto, não chega a ser uma revolução, é verdade, mas chama a atenção pela sua contradição que, nesse mesmo lugar – “no fim do fundo da América do Sul que nem mesmo Júlio Verne sonhou”, conforme canta Vitor Ramil em sua clássica “Joquim” –, independentemente das ideologias – partidárias ou não –, foram eleitos governadores do Rio Grande do Sul uma mulher (Yeda Crusius), um negro (Alceu de Deus Collares) e, agora recentemente, um governador que se assumiu, publicamente, homossexual (Eduardo Leite). Foi ainda nessa cidade onde ocorreu a produção de um dos primeiros longas-metragens dirigido por um negro no Brasil – “Um é pouco, dois é bom” (Odilon Lopes, 1970) – e que também é um dos primeiros filmes – embora sem o sucesso esperado – a tentar romper com a temática rural do cinema gaúcho. Para completar o quadro das contradições, é também nesse conservador estado do Sul do Brasil que surgiu a primeira Miss Brasil negra, Deise Nunes, eleita em 1986. Para aqueles que possam considerar um concurso de beleza algo não necessariamente significativo para uma análise político-cultural acerca deste histórico tensionamento entre as forças progressistas e conservadoras do estado, lembro que também foi em Porto Alegre que o PT – Partido dos Trabalhadores, ascendeu nacionalmente no final dos anos 1980 – também fruto da conjuntura apontada acima – dando início a um projeto de administração pública que o perpetuou no centro das decisões municipais por quatro renovadores mandatos consecutivos.

Consequência desse mesmo projeto político, em 2001, quando tanto a Prefeitura Municipal como o Governo do Estado estavam sob administração do PT, Porto Alegre foi sede de um evento – naquele momento ainda bastante acanhado – o qual, meio que de surpresa e sem ninguém entender muito bem o que vinha a ser, tomou de assalto o Parque Harmonia, próximo à orla do Guaíba. Mesmo lugar onde ocorre, todos os anos, a festa máxima que comemora uma revolução perdida, símbolo do nosso mais profundo conservadorismo arcaico. O Fórum Social Mundial (FSM) nasceu como contraponto ao Fórum Econômico Mundial, evento que ocorria, na mesma época, em Davos, na Suíça. Já no ano seguinte, em 2002, o mesmo evento realmente se internacionalizaria de uma forma que, até então, Porto Alegre jamais sonhara. De repente, e sem muito aviso prévio, milhares de estrangeiros, de todas as partes do mundo, passaram a percorrer as ruas da cidade. Foram mais de 30 mil pessoas, de diversos países e continentes, que chegaram a Porto Alegre e, na cidade, permaneceram por aproximadamente uma semana, discutindo política, apresentando projetos sociais implantados em diferentes países do mundo, consumindo cultura, trocando experiências e interagindo de diversas formas em inúmeras línguas.

O evento mudou completamente a cidade, que, nessa época do ano, tinha por característica estar vazia em função das viagens de férias de verão. Por essa razão, por mais que os comerciantes locais torcessem o nariz para a temática social do evento, logo se deram conta que “um outro mundo possível” passava pelo aumento das vendas em uma época de “vacas magras”. “Comunistas” também gastavam em dólares e euros. Para fora da cidade e do país, o FSM escreveu o nome de Porto Alegre no cenário internacional. E isso eu mesmo posso testemunhar porque em 2003, quando morava em Londres, pela primeira vez percebi que Porto Alegre não era uma cidade totalmente desconhecida. Ao me apresentar e falar das minhas origens, muitas pessoas me diziam conhecer “a capital internacional do socialismo”. Muitas, inclusive, tinham estado no FSM, e era comum ouvir de italianos, franceses e espanhóis, principalmente, o quanto queriam conhecer e/ou retornar para Porto Alegre. E muitos destes, de fato, vieram.

Uma prova bastante significativa disso, acredito, pode ser conferida no filme Bonecas Russas (Les poupées russes, de Cédric Klapish, 2005), uma continuação do sucesso franco-espanhol O albergue espanhol (L’auberge espagnole, de Cédric Klapish, 2002). Nesse filme, a personagem Martine, vivida por Audrey Tautou, conta para o ex-namorado, Xavier (Romain Duris) que ela “dois aller au fórum social, c’est à Porto Alegre, au Brésil” (“devo ir ao Fórum Social, será em Porto Alegre, no Brasil” – tradução minha). Isso mesmo, não poderia haver um sonho maior para uma cidade historicamente referenciada em Paris que ser pronunciada num sonoro acento francês, pela voz aveludada da doce Amélie Poulain de O fabuloso destino de Amélie Poulain (Le fabuleux destin d’Amélie Poulain, de Jean-Pierret Jeunet, 2001). Nesse caso, levando em conta o ano de lançamento de Les poupées russes, é bem possível que a personagem de Tautou “estivesse vindo participar do FSM de 2005”, a maior de todas as edições, que contou com um público participante de mais de 150 mil estrangeiros.

Essa edição consagrada do evento, no entanto, representou o clímax das administrações petistas no Rio Grande do Sul, marcando, simbolicamente, o início do fim de uma era que se estende até os dias de hoje.

Isso porque em 2004, pela primeira vez desde 1988, o PT não conseguiu eleger seu candidato e, dessa forma, após dezesseis anos, e um natural desgaste do projeto petista, José Fogaça venceu Raul Pont no segundo turno daquelas eleições e assumiu o Paço Municipal em janeiro de 2005, ainda com o FSM em andamento. Desde então, embora ainda tenha tido forças para eleger Tarso Genro governador, em 2010, o PT viu sua influência política local encolher vertiginosamente ao ponto de, nas eleições de 2020, abrir mão da cabeça de chapa e indicar Miguel Rossetto, um nome histórico do partido, para vice de Manuela D’Ávila. Como bem sabemos, mais uma vez, as forças progressistas perderam para o atual prefeito, Sebastião Melo. Tal movimento político, embora dificilmente perceptível no início do século, hoje, analisado a partir do necessário afastamento dos fatos, é revelador. Seria muita ingenuidade – e, de certa forma, foi – acreditar que Porto Alegre – e o Rio Grande do Sul – se transformaria assim facilmente num “outro mundo possível”. Não demorou muito para que as elites conservadoras enfraquecessem os movimento progressistas – não somente aqui, mas em todo o Brasil – e retomassem as rédeas da cidade que sempre lhes pertenceu.

Apesar disso, a cidade vivenciou um período único na sua história. Todas essas últimas conquistas provocadas por setores progressistas promoveram, nas últimas décadas, um ambiente político, social e cultural que proporcionou, por um lado, uma transformação radical no sentimento de autoestima do porto-alegrense para com sua cidade e, por outro lado, muito em função do sucesso dessas iniciativas, a conquista de espaços importantes na sociedade gaúcha. Obviamente, tais conquistas também sofreram um contra-ataque efetivo por parte dos representantes desse mesmo conservadorismo histórico, o qual resultou em retrocessos significativos principalmente para o setor da cultura. A arte incomoda e, portanto, os artistas precisam ser combatidos. Sempre foi assim e assim sempre será.

Essa semana, escutando a Rádio Gaúcha, ouvi da voz das radialistas do programa “Atualidade” que um determinado empresário do ramo de serviços seria “aquele que faz a cidade acontecer”. Ao entrevista-lo, o referido empresário disse que a cidade está “fardada ao sucesso”. Isso mesmo, “fardada”. Talvez o erro gramatical deste que, segundo a Gaúcha, faz a cidade acontecer, não seja por acaso. Vivemos, hoje, um Brasil dominado pela farda dos militares de pijama que, nas últimas décadas permaneceram nos quartéis onde, inclusive, é o lugar deles. Como bem aprendemos ao longo da ditadura, militares não fazem a cidade acontecer. Da mesma forma os empresários. Não sem o protagonismo dos artistas. Uma cidade, seja ela qual for, para frustração das apresentadoras da Gaúcha, é constituída a partir do imaginário o qual se desenvolve, muitas vezes involuntariamente, através dos filmes, das músicas, dos livros, das pinturas e das inúmeras representações artísticas que têm o poder de transferir às ruas, prédios e parques significados que transcendem o concreto. Nesse sentido, o que seria de Paris sem o Impressionismo, do Rio sem a Bossa Nova, de Buenos Aires sem o Tango, de Lisboa sem o Fado? Por isso, é lamentável que Porto Alegre, cada vez mais, sufoque seus artistas e os espaços boêmios onde estes se inspiram e costumam se apresentar. Talvez não seja por acaso que a cidade está se transformando numa grande “praça de alimentação ao ar livre”, onde a arte apenas tem espaço quando transformada em comida e bebida nas bandejas dos glutões que ainda podem pagar por pratos ditos “gourmets”. É essa a Porto Alegre elitista, “feita pelos empresários”, que veio substituir a capital do Orçamento Participavo. Uma cidade “fardada” ao lucro acima de tudo. No entanto, sem alma, incolor e cada vez mais homogênea.

Poderia perder dias listando nomes de artistas locais – esse equívoco já foi cometido essa semana, em uma coluna do GZH – extremamente talentosos que sucumbiram ao ostracismo provocado pelo próprio cenário onde filmaram seus curtas-metragens, contextualizaram suas histórias ou montaram seus palcos. Portanto, parece mesmo que a “cidade dos caranguejos” segue atualizando-se a cada bar fechado pela Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (SMIC), a cada projeto cultural inviabilizado – ou não apoiado – pela Prefeitura, a cada edição do Fumproarte, que insiste em não mais acontecer, mas, especialmente, toda vez que o ressentimento e o conservadorismo porto-alegrense, hegemônicos, decidem que as mais variadas expressões socioculturais, por eles percebidas como subalternas, devam ser exterminadas. De certa forma, o positivismo moralista segue se atualizando nas políticas públicas da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. E aí não importa se estamos falando do carnaval de rua, do Fórum Social Mundial, das feiras de artesanato ao ar livre e/ou do Bom Fim dos anos 1980. A elite porto-alegrense sempre conta com as armas apropriadas para manipular a população – principalmente a classe média – a partir dos seus medos mais latentes, desqualificando, assim, os méritos dessas iniciativas e/ou potencializando seus problemas para, consequentemente, destituir os movimentos.

É claro que o tempo, e algum dinheiro, conferiram alguma maquiagem a essa Porto Alegre bicentenária. No entanto, trata-se apenas de uma ilusão que é refletida nos prédios envidraçados das regiões mais nobres da cidade, simulacros de uma arquitetura urbana, importada dos mesmos colonizadores com os quais, ainda hoje, tanto nos identificamos, muito desejamos e em quase nada nos assemelhamos. Ironicamente, esses mesmos prédios, vestidos de espelhos, refletem o cotidiano e sistemático esfacelamento da nossa memória. Chegará o dia em que esses prédios, assim como a própria sociedade, revelarão, apenas, sua frágil superficialidade.

Ítalo Calvino diz que a cidade “é feita das relações entre as medidas do seu espaço e os acontecimentos do seu passado”. Quem mais preserva o passado de uma cidade melhor que os artistas que, na tentativa de darem conta do seu presente, eternizam a sua percepção sobre o lugar onde viveram? Levando em conta que a cidade é muito mais como a imaginamos e que muita dessa imaginação também decorre das artes, até mais do que da ciência, é essa construção que, no dia a dia, se apresenta aos olhos do presente e, com ele, convive. Ao transeunte que percorre suas ruas, utiliza seu transporte, bebe em seus bares, relaxa ou se exercita em seus parques, a cidade se revela quase como uma fábula. É o que ocorre com o Bom Fim dos anos 1980, por exemplo. Chega um momento que pouco importa se Nei Lisboa realmente compôs “Berlin-Bom Fim” em uma mesa da Lancheria do Parque, se os punks pulavam para dentro do Ocidente a partir dos galhos das árvores que alcançavam as janelas do bar ou se aquilo que ocorreu na esquina da Osvaldo Aranha com a João Telles foi, de fato, um movimento cultural ou apenas uma reunião de bêbados e drogados, como os moradores mais conservadores definiam a aglomeração cotidiana que ocorria no bairro. O importante é que isso tudo simboliza uma Porto Alegre libertária e inovadora a qual, inclusive, pode inclusive ser questionada a partir dessa afirmação. Não era bem assim, faltou falar disso, esqueceram daquilo, exageraram nisso. Que seja. O fato é que ninguém fala sobre aquilo que não existiu.

Costumo dizer que artistas (geralmente) não criam suas artes por decreto. Mas, para criarem, precisam de decretos. Afinal, artistas também comem, bebem, pagam aluguéis e contas. Artistas precisam circular pela cidade, pelo país, pelo mundo. Entrar em contato com outros artistas e com a arte destes. Como fazer isso se mal sobrevivem na própria cidade onde moram? Acho que foi Vinicius de Moraes que disse que “São Paulo era o túmulo do samba”. Nesse sentido, talvez possamos sugerir que Porto Alegre é, hoje, o túmulo das artes.

Entre a já histórica dificuldade de viver da arte e da cultura nessa pequena-grande-capital, somado à política nacional de esvaziamento cultural e à pá de cal que significou a pandemia para todo o setor, penso que Porto Alegre – através dos seus últimos administradores – pretende se constituir como cidade-referencia sem a participação da classe artística. Sinto informar, mas acho que faltou frequentar as classes de História. Uma cidade é um organismo vivo e dinâmico e como tudo que emana vida, também a cidade demanda da arte para se expressar. A nova Orla do Guaíba, a eterna reforma do Cais do Porto, a anunciada revitalização do Centro Histórico ou o resgate do Quarto Distrito, tudo isso é ótimo e necessário, mas sem os artistas, nem o concreto armado se sustenta de pé por muito tempo. Portanto, nesses 250 anos de história, que serão comemorados no próximo sábado, dia 26 de março, mais do que qualquer coisa, Porto Alegre deveria refletir sobre como pretende tratar seus artistas a partir de agora para, quem sabe, resgatar sua autoestima, perdida em alguma mesa de algum bar falido.

* O título deste texto parafraseia o filme “Porto Alegre, meu canto no mundo”, documentário de Cicero Aragon e Jaime Lerner, realizado em 2007.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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