por Boca Migotto
Quando criança eu detestava o verão. Naquela época as aulas começavam apenas em março e, por isso, após o Natal a cidade já se esvaziava e assim permanecia por três meses. Meus amigos todos, claro, passavam ao menos um mês “nas praias” e durante todo esse tempo eu permanecia sozinho. Ainda mais sozinho, uma vez que a solidão até nem era uma novidade para mim, filho único. Mas no verão isso se tornava ainda mais radical, quase insustentável.
Meu pai nunca viajava. Por isso fui conhecer o mar apenas com dez anos de idade, graças a uma excursão que saiu da minha cidade e fez um bate e volta à praia. Já fazia tanto tempo que eu reclamava que queria conhecer o mar que, um dia, minha mãe ficou sabendo dessa excursão e o pai não teve como negar. Saímos de Carlos Barbosa ainda de madrugada para passar uma manhã em Tramandaí e uma tarde no Parque Osório. Foi também a primeira vez que andei a cavalo. Uma égua velha, mansa, que mal conseguia caminhar, mas que me rendeu boas memórias que eu preservo até hoje. Lembro bem a intensidade daquela viagem. Voltamos no final do dia e chegamos já noite em casa. Eu estava exausto, mas dormi o sono dos justos, com um sorriso estampado no rosto.
O problema é que eu gostei muito da praia e ai ficou cada vez mais difícil negar, ao filho, alguns poucos dias de férias no litoral. O pai sempre foi enérgico e teimoso. Para ele, não era não. Já a mãe, salve as mulheres, conseguiu convencê-lo a bancar quinze dias de férias em Arroio do Sal, junto a um casal de primos mais velhos. Dessa vez, sim. Me esbaldei. O pai não foi. Preferiu ficar duas semanas sozinhos em Carlos Barbosa enquanto eu e a mãe compartilhamos esse período com esses primos bem mais velhos que eu e bem mais novos que ela. Só muito tempo depois fiquei sabendo que o pai pagou caro por essa brincadeira. Em troca do “favor” desses primos nos levarem junto para suas férias, o pai praticamente pagou o aluguel da temporada e a mãe, por sua vez, passou quinze dias cozinhando e lavando. Mas foram dias especiais, próximo da minha mãe em uma situação que destoava muito do nosso cotidiano e, por isso, contribuía com novas percepções sobre a nossa própria relação mãe e filho. Depois dessa experiência, no entanto, voltei para o litoral apenas quando já tinha condições de fazer isso por própria conta.
Escrevo essa coluna de Rainha do Mar. O dia está choroso. Não tem praia hoje, e o final de semana promete muita chuva. Semana passada teve sol, mas também teve Nordestão, mar frio, água marrom – o famoso chocolatão – e mãe d’água quando o mesmo mar ousou se acalentar um pouco. Nada pode ser perfeito no litoral gaúcho. Nada mais típico para a maior praia do mundo em extensão longitudinal.
Fazia tempo que não frequentava nossas praias. Depois que descobri Santa Catarina, em especial a Pinheira, a Guarda do Embaú, Farol de Santa Marta e a Gamboa, para lá me mandei de todas as formas possíveis. Já acampei no Vale da Utopia – quem conhece, sabe –, já fui de carona, ônibus da madrugada, carro e até avião. Já fui para passar um final de semana prolongado, me escalando na casa de desconhecidos, ou me espraiar ao longo de todo o verão pipocando em pousadas, barracas e casas de amigos. Foi a partir de Santa Catarina que esse gringo que mal sabia nadar, quando adolescente, descobriu o quanto é bom pegar uma praia. Foi a partir de Santa Catarina que me empolguei por conhecer outras praias. A Ilha do Mel, o litoral do Nordeste, o Rio de Janeiro e até praias do Caribe e da Europa.
Mas, desde que começamos a namorar, a Pati e eu – aliás, no último dia 17 de janeiro fez quatro anos de companheirismo –, por conta da comodidade de ter uma casa em Rainha do Mar, para onde viemos também no inverno, os últimos anos voltei a frequentar nosso litoral. E aí, abraçado ao Nordestão, decidi ir além. Decidi, com a Pati, viajar por ele todo. Então, nos últimos quatro anos (re)descobri Cidreira e Quintão, segui pela beira-mar na direção do Farol da Solidão, conheci, visitei e (re)visitei a Lagoa do Peixe, aprofundei meu conhecimento sobre a Lagoa dos Patos e, por inúmeras vezes, fui para a praia do Hermenegildo e a Barra do Chuí. Meu Instagram é testemunha de todas essas viagens. Por fim, escrevi um livro que se passa na última praia do Brasil, justamente no Chuí, fronteira com o Uruguai. E falando dos hermanos, fui além. Passei a frequentar as praias uruguaias e, bem lá ao sul da Argentina, também, conheci o litoral gelado da Terra do Fogo e da Patagônia chilena.
Minha empolgação por esse litoral latino-americano e, digamos, inóspito, me levou a escrever, pesquisar, fotografar e filmar tais cenários. Em especial, claro, o litoral gaúcho com o qual o cinema produzido nessas paragens tem uma relação muito próxima. Se, para os veranistas, o nosso clima litorâneo e as características particulares das nossas praias abertas tornam-se, muitas vezes, um martírio, para as lentes das câmeras cinematográficas é um deleite visual. Não por acaso, na grande maioria das vezes os filmes gaúchos que se passam nas nossas praias optam por filmá-las em tons de inverno. Dessa forma, o cinema gaúcho associa o nosso litoral ao frio, aproximando-nos de uma estética mais europeia e distanciando-nos da inatingível tropicalidade brasileira. Um enorme contrassenso, afinal, as mesmas praias das quais fugimos para curtir o verão nos servem como elo de ligação ao nosso ideal civilizatório. Ao nosso eterno referencial cultural.
Quero refletir melhor sobre essa relação entre o cinema e o litoral gaúcho, mas também quero compreender como esse mesmo litoral interminável era percebido pelos navegadores que transitavam entre o Brasil, Uruguai e Argentina. Afinal, era uma aventura deixar Florianópolis – na época conhecida como Desterro – para trás e, a frente, por dias a fio, ver apenas mar aberto quase até Montevideo. Tenho a impressão de que podemos encontrar algumas percepções historicamente relevantes ao aproximarmos os relatos escritos pelos navegadores, no século XVII e XVIII, do cinema gaúcho produzido nos séculos XX e XXI. Para isso ando tateando o tema com algumas leituras interessantes. Alain Corbin, por exemplo, abordou o tema da vilegiatura, ou seja, da procura do mar gelado para fins terapêuticos, iniciado ainda no século XVII no Mar Báltico, principalmente na Alemanha, e nos dois lados do Canal da Mancha, na França e Inglaterra, em seu livro “O território do vazio”. Através deste livro voltamos ainda mais no tempo, para compreender um pouco a nossa relação histórica com a praia e o mar. Desde os tempos bíblicos, marcado por dilúvios, passando por gregos, troianos e romanos, percebemos a importância do Mediterrâneo para o desenvolvimento da humanidade embora este, o mar, pela mesma humanidade, tenha sido percebido como um amigo distante. Apesar de estar sempre ai, roçando as pedras e areias de três continentes.
Mas deixando a Antiguidade e o Mediterrâneo para trás – bem para trás – ingleses, franceses e alemães, sobretudo, passaram a olhar para as águas geladas, que banhavam seus países, como um remédio para diversos males. Os primeiros foram os alemães, mas os ingleses não ficaram atrás. Num primeiro momento, esta foi uma prática das elites, mas não demorou para também se popularizar. Eu conheço bem o litoral Sul da Inglaterra. Cidades como Brighton e Hastings se consolidaram como balneários populares e muito procurados pelos ingleses por conta do transporte ferroviário, que facilitava o deslocamento de Londres e de outras cidades do Norte para lá. Hotéis impressionantes, e toda uma rede turística, com serviços voltados ao lazer daquele iminente turista que buscava acesso às benesses do clima litorâneo, foi erguida na região. Mais recentemente, quando surgiram as passagens aéreas do tipo low cost, as classes mais populares também descobriram o Caribe e outras praias tropicais da Ásia. E então o litoral frio do Sul da Inglaterra esvaziou de vez. No entanto, ainda antes disso esses balneários já estavam sendo trocados por outras práticas de lazer e nem de perto lembravam o cotidiano sofisticado de outrora, quando o turismo iniciou com as viagens à praia.
Aqui no Rio Grande do Sul a pesquisadora Joana Carolina Schossler faz algo semelhante ao que Corbin pesquisou em relação ao imaginário moderno e ocidental que envolve o desfrute das praias. O seu livro “História do veraneio no Rio Grande do Sul” traz diversos relatos sobre os pioneiros que desbravaram nossas praias, geralmente a partir da capital ou da Serra, em busca da vilegiatura marítima. Schossler destaca a participação dos imigrantes, sobretudo italianos e alemães, que se interessaram pela prática da cura a partir do banho de mar e, também, contribuíram com o desenvolvimento da região. Desenvolvimento, este, obviamente, que precisa levar em conta o viés lucrativo dos investimentos realizados na região, principalmente a partir da década de 1940, e a consequente especulação imobiliária de todo o Litoral Norte e a região de Rio Grande. Por conta desse “progresso”, menos de um século depois de ter iniciado a urbanização litorânea, passar férias em praias como Tramandaí, Capão da Canoa e Torres, por exemplo, tornou-se a antítese do que foi o embrião dessa história.
Também os objetivos desse movimento rumo ao mar se transformaram. Se no início a busca era pela saúde através dos banhos terapêuticos, aos poucos um hedonismo vazio de conteúdo foi tomando conta das nossas areias brancas. Já há algum tempo o bronze de um corpo sarado e quase nu subjugou a vergonha e o moralismo católico de outrora. Os maiôs de lã que cobriam todo o corpo foram substituídos pelos biquínis e pelas sungas e até o descanso, embora ainda importante para alguns, em especial os mais velhos, tornou-se incompatível com a voracidade juvenil que toma de assalto as praias mais badaladas. Nesse movimento os livros, que por muito tempo eram companheiros fiéis das horas ao sol, foram trocados por aparelhos celulares e caixas JBL. A sociedade se transformou completamente. No entanto, mesmo que, como sociedade, tenhamos interferido na paisagem, as praias e, sobretudo o mar, são os mesmos. Talvez um pouco mais poluídos, mas ainda os mesmos cenários de séculos atrás. De inúmeras outras histórias, com gerações de outros seres humanos como personagens.
Portanto, há muito o que pesquisar e estudar sobre o tema. Inclusive, olhar para como o nosso cinema retratou o litoral gaúcho através das inúmeras obras audiovisuais que buscaram nossas praias como cenário e, muitas vezes, também, como personagens, pode ser um exercício interessante para melhor nos compreendermos como povo. Por último, mas não por fim, voltar no tempo para descobrir como os europeus que por aqui passaram percebiam o nosso mar bravio, nervoso e que nunca dorme, me parece, é quase como um complemento sobre a forma como enxergamos esse mesmo litoral. De certa forma, quem sabe, uma excelente metáfora sobre o que é o Rio Grande do Sul.
I. BOCA MIGOTTO