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Dizer do luto

Somente de uns tempos para cá percebi que o novembro havia se transformado num mês de chegadas e partidas muito singulares em nossa vida familiar. Maria chegou a este mundo numa manhã de novembro, dia 09, no ano de 2014. Eu viera para casa pela manhã e adormecera depois de uma noite insone acompanhando meu pai, já terminal, no hospital. Despertei por volta das 11h30 com o som do telefone.  Era Edmário ligando de Salvador para avisar que Tássia dera a luz a uma menina linda. Meu pai partiu no dia seguinte.

Nos anos que vieram, as partidas seguiram mais presentes dos que as chegadas. Meu tio, meu primo, um amigo querido, uma amiga partindo de modo inesperado e, hoje, completam dois meses que o pai dos meus filhos também se foi.

Vindas esperadas, partidas previstas. Para estas últimas, mal olhamos. Saber delas dói. A imprevisibilidade diante da finitude do viver traz desassossego e a gente finge não ver.

O fato é que quando alguém parte, a vida de quem fica se fragiliza e transforma. De repente, tudo muda, passa a se movimentar num tempo outro. Não há controle, apenas fluxo. Nunca há controle, apesar de pensarmos que sim.

É como flutuar num limbo entre o vácuo e uma corrente de ar que não se sabe até aonde irá te levar. Passa-se a conviver com a perturbadora sensação de não ter mais o tempo lógico que até então regia os dias anteriores.  Perde-se a data da semana, do mês. Um dia pode ser o hoje, ou foi o ontem, ou será o amanhã ou o anteontem. Pode ser o ano que passou, pode ser o que o virá ou o que nunca chegará. E ela permanece presente por tempo indeterminado, até que passe.

Luto é uma mescla de nostalgia, tristeza, memórias fragmentadas, ausência que não finda, saudades de certo viver. É um vazio que ocupa todos os cantos e a gente não sabe onde está. Não sabe quando vai acabar, quando  a gente vai acordar, quando vai seguir, quando  vai querer sair e estar com outras pessoas, ou ainda, quando deixa de ser dor.

Um dia tudo parece bem, noutro tudo está vazio e triste; um dia é memória, outro, a ausência que não finda. Um dia é vontade de movimento, noutro, impedimento; um dia você é ação, no outro, ausência absoluta de forças e de vontades. Ou tudo vira dia de não vontades. Fazer nada também é bom!

Não é só a morte de uma pessoa a lembrar o limite radical da vida. Não é a perda. É o que a gente enterra junto com ela. Muitos lutos simultâneos emergem. É o que colapsa e o que segue conosco; é aquilo que, de repente, deixa de fazer sentido, num movimento quase paradoxal.  Sentidos transmutam.

Complexo, porque revolve o que temos de mais profundamente afetivo e conflitivo. Revolucionário, porque profundamente transformador a impor ressignificações.

Hoje este luto veio mediado pelas demandas legais e burocráticas a  me lembrarem que, há dois meses, a vida como a conhecíamos foi interrompida. Dois emails institucionais caíram na minha caixa de mensagens, obrigando a rever a história de uma vida.  Cotidiano que se reorganiza de modo impositivo e traz o tempo vivido na forma de uma documentação detalhada e longa. Ganhos, perdas, percursos, registros… e aquele ser identitário, inteligente, afetuoso, idiossincrático, humano é, repentinamente, transformado em números, em dados. E fim!   É a burocracia a ditar que aquela vida, tal qual era vivida, terminou e depende de que outros consintam que prossiga de novas maneiras. Ciclos que se encerram, outros ciclos que se abrem.

Não sei ainda dizer da partida do Clovis. Não consigo. Não sei  se irei fazê-lo.

Procuro não pensar nos tempos da dor, embora eles apareçam como lapsos, acionados por algum gatilho, sempre à espreita. Prefiro pensar que aquelas dores finalizaram para ele e também para nós. Foram muitos anos de doença. Não sei se algum dia entenderemos este período, ou se apenas aceitaremos como passado, bem como as estratégias de enfrentamento desenvolvidas nesse tempo.

Nesse espaço curto da sua ida, amigos  próximos trazem histórias, memórias afetivas que narram aquilo que a gente esqueceu na imediatez dos dias, dos anos. É quando se torna possível dimensionar o significado daquela vida no universo do outro.  Muitas delas são lembranças tocantes, cheias de intensidade e emoção a dizerem de atitudes diversas que tocaram a alma do outro. O suficiente para a gente entender que a vida acontece, de fato, nas pequenas coisas, nos gestos  e cuidado que temos uns com os outros. E assim tecemos um memorial onde preservamos o que nos foi caro daquele ser que se foi,  e aquilo a nos ligar uns aos outros.

Certo dia, uma amiga querida que sofreu perdas importantes, me disse  sobre o  tempo curto que temos para estar nesta vida uns dos outros. A vejo reelaborar seus infortúnios  com ferramentas diversas, mas não consigo falar sobre nossas perdas e danos. Acho que não precisamos.  Ela sabe que eu sei, e que contamos uma com a outra, incondicionalmente.

Também não consigo dizer mais sobre a perda do Clovis.  Resolvi escrever impulsionada pelos acontecimentos imediatos e de ordem prática. Talvez para tentar apreender o tempo; ou para entender o meu enlutamento em meio ao luto dos meus; ou apenas para explicar a outros queridos, preocupados, que estou bem; que é assim mesmo e a vida vai continuar a insistir. Que a tristeza vai virar uma saudade a ser carregada junto com o riso e com novas vivências, como algo precioso, parte do nosso ser. E que vou seguir  sim, por um tempo indefinido neste mundo.

ROSANA ZUCOLO

Jornalista, professora universitária aposentada, mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa. Se dizia  ” parideira de jornalistas” a renascer com eles todos os anos. Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois irmãos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs,  duas casas,  dois cachorros, duas cachorras, dois gatos… alguns deles também já partiram.

 

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