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Foto: Arquivo pessoal

MAR ABERTO | Papai Noel não existe

por Boca Migotto

João Pedro nunca esquecera o dia quando descobriu que Papai Noel não existia. Bom, descobrir não é bem a palavra, afinal, ele não estava em busca de nenhuma resposta. Foi maldade mesmo. Como quase tudo na sua infância, quando esta envolvia seus amigos. Assim eram chamados, amigos. Assim se autodenominavam e assim eram admirados por João Pedro, mas, por serem todos mais velhos que ele, sentiam um prazer singular em fazer do menor da turma um saco de pancadas. Rebaixá-lo, humilhá-lo, isolá-lo e, em algumas ocasiões, até agredi-lo fisicamente.

Quando João Pedro – nome fictício – me contou essa história ele já havia passado dos quarenta anos e já havia frequentado terapia por, pelo menos, a metade do seu tempo de vida. Um longo tratamento para um sintoma social. Em uma sociedade doente, formada sobretudo por abusadores e abusados, ambos precisando de tratamento, fica claro o crescimento vertiginoso das drogarias. Antes fosse um crescimento apenas de terapeutas, estes que também proliferam na mesma velocidade das farmácias. Afinal, o autoconhecimento é a melhor forma de se tentar consertar um adulto quebrado na sua infância. Infelizmente, no entanto, mesmo com as terapias e apesar das drogas, alguns traumas permanecem e insistem em nos perseguir à noite. No caso do João Pedro, a terapia até serviu para amenizar algumas dores, mas não curá-las completamente. E esse dia, o dia quando descobriu que Papai Noel não existia, era, ainda, um dos seus piores traumas. Não por causa do fato em si mas, sobretudo, por conta da atmosfera que envolvia aquela memória.

Era uma manhã. Estavam todos de férias. Provavelmente, segundo o que ele se lembra, pois embora fosse ainda de manhã, também era uma manhã quente. O que reforçava, na sua memória, a hipótese de estarem de férias. Era quente, portanto, provavelmente, verão, e era de manhã e não estavam na escola. Só podia ser, mesmo, período de férias. Talvez início das férias, o que justificaria o assunto sobre o Natal que, provavelmente, estava próximo e servira como gatilho para a grande “revelação”. Todos saiam do porão da casa velha, de madeira, que pertencera ao avô de João Pedro e que, na sua infância, já muitos anos depois da morte deste avô com quem nunca convivera, tinha dois propósitos. Servia de residência à sua tia e, a ele, na qualidade de criança, se prestava a ser uma espécie de playground particular.

Assim, se para a tia a casa tinha função unicamente de casa, para ele, na sua imaginação infantil, o mesmo espaço poderia ser qualquer coisa. Às vezes era um laboratório, onde conservava sapos, cobras e insetos dentro de vidros de café solúvel preenchidos com álcool, às vezes uma nave espacial, que contava com sua central de controle, asas e motor propulsor, às vezes uma delegacia de polícia ou sede dos bombeiros e noutras vezes, ainda, podia apenas ser um lugar para se esconder e ficar sozinho. Um refúgio para quando se sentia triste. E invariavelmente ele se sentia triste.

Naquela manhã não. Naquela manhã estava feliz pois conseguira trazer os amigos da rua para brincarem com ele, no seu lugar preferido. E isso era raro. Geralmente era ele quem se sujeitava às escolhas e brincadeiras dos amigos. Mas, antes mesmo de terminada a brincadeira, os amigos decidiram ir embora. Estavam todos saindo do porão quando, do nada, os amigos lhe falaram: “Papai Noel não existe”. E reforçaram: “Tu é muito bobão em ainda acreditar nele”. Falaram isso e foram embora, deixando-o sozinho.

Sozinho. E sozinho com a prematura descoberta, o que são duas coisas diferentes. Duas infelicidades diferentes para lidar ao mesmo tempo. Uma, a bomba, afinal, Papai Noel não existia, e outra, a sua solidão, uma vez que o haviam abandonado e, portanto, ele não teria mais com quem brincar naquela manhã. Voltaria a ficar sozinho e certamente assim seguiria pelo resto do dia, obrigando-se a criar, para ele mesmo, “fantasias para uma criança só”. Aliás, sua principal brincadeira.

A escritora espanhola Rosa Monteiro, no seu livro O perigo de estar lúcida, conta que quando entrevistou Doris Lessing, escritora britânica, para o jornal El País, sua entrevistada confessara que tivera uma infância muito triste, melancólica até. Segundo ela, citada pela Rosa Monteira logo nos primeiros capítulos em seu livro, “[…] as pessoas frequentemente bloqueiam a lembrança de suas infâncias porque lhes parece uma memória insuportável”. Ao ler isso, e o restante do capítulo, foi impossível não lembrar dessa história do João Pedro. E da minha própria infância. E imaginar tantas outras infâncias de meninos que, ainda meninos, são sujeitados ao universo masculino que os molda – nos molda – como homens imperfeitos. Infelizes no papel que nos exigem desempenhar, de meninos adultos, da mesma forma como mais tarde nos torna homens infantis. Que contradição, não é mesmo?

Mas as frustrações da nossa infância não são uma exclusividade masculina. Rosa – peço licença para me referir a ela pelo primeiro nome –, nesse livro, defende que os escritores, no geral, sofrem de algum problema mental. Ela mesma abre seu livro com a impactante frase: “Sempre soube que alguma coisa dentro da minha cabeça não funcionava direito”. Mais do que isso, a autora condiciona o ato de escrever aos traumas da nossa infância. Loucura e melancolia. Para isso ela relaciona uma lista de escritores e escritoras que tiveram que lidar com infâncias tristes, traumáticas e traumatizantes. Indico muito a leitura desse livro, você vai se surpreender com as infâncias de muitos escritores e escritoras que o mundo conhece e reconhece. Em especial se você é um escritor – diria mais, um artista, independente da área de atuação –, um leitor ou tenha sido, em algum momento da sua vida, uma criança. Pois é, não há desculpas para não lê-lo.

Voltando ao meu amigo João Pedro, que por sua vez, para reforçar a tese da Rosa, também é escritor, sua infância é desoladora embora, ao mesmo tempo, tenha sido extremamente amado por seus pais. Uma coisa não elimina a outra. Aliás, Rosa acredita que um escritor ou escritora – insisto, qualquer artista – nasce justamente dessa contrariedade. O amor (pode ser dos pais) versus o sofrimento imputado pela vida. No caso do João Pedro, que conheceu o afeto paterno e materno, esse sofrimento lhe era infligido pelos amigos. Mas este sofrimento também pode ser a morte prematura da mãe, o abandono de um pai, a necessidade de trabalhar precocemente, a fome, o abuso sexual, a violência física ou psicológica. Independente de onde venha esse sofrimento, amigos, colegas, professores, tios, irmãos ou os próprios pais, é importante que também haja um afeto, uma fonte de amor. É dessa contradição que a complexidade humana se constrói e, assim, permite a um sujeito a capacidade de inventar histórias com potencial de tocar corações. Pelo menos para 50% dos escritores, segundo a própria Rosa. Agora, obviamente, vocação não é o mesmo que talento. E este, o talento, em 99,99% das vezes – este número é meu, para dar uma efeito de força a minha afirmação –  precisa ser construído, trabalhado, lapidado. Portanto, não basta a infância infeliz se você quiser ser um escritor. É preciso trabalhar. Conselho deste que escreve, é preciso ler e reler, escrever e reescrever.

Quanto ao João Pedro, após ouvir aquela frase que ainda ecoava na sua cabeça – Papai Noel não existe – ele me contou que engoliu a informação a seco e foi para casa. Para a sua própria casa, que ficava logo ali ao lado, no mesmo terreno. Entrou na cozinha e encontrou a mãe amassando pão. Ela parou, limpou o suor da cabeça e olhou para o ele, percebendo-o introspectivo demais. Como qualquer mãe, no mesmo instante ela percebera que alguma coisa estava errado com seu filho. E lhe perguntou o que havia acontecido. Ao levantar a cabeça e encara-la, ainda com aquela informação girando em sua cabeça, João respondeu: “Papai Noel não existe”. E foi para o seu quarto.

Foi assim que parte da infância de João Pedro lhe foi arrancada. Naquela manhã de sol, calor e férias, antecedendo o Natal, seu mundo de fantasia ruiu, sua ingenuidade se desfez e parte da sua pureza desfragmentou-se para sempre. Ele devia ter uns seis ou sete anos de idade, talvez menos. Quando penso que o Arthur, meu enteado, tem dez anos de idade e ainda acredita em Papai Noel, e que bom que ele acredita, e melhor ainda que ninguém, ainda, tenha tirado isso dele, concluo o quão foi, realmente, difícil a infância de João Pedro. Percebam que não falo apenas, e unicamente, por conta desse caso particular.

Cedo ou tarde é preciso descobrir que Papai Noel não existe. Afinal, não dá para passar a vida esperando que o bom velhinho surja de dentro de uma lareira, vestido de vermelho, carregando um saco cheio de presentes. E acreditar que, apesar do seu físico, ele consiga fazer isso. E mais, consiga fazer isso em todas as casas do planeta em uma única noite. Portanto, em algum momento toda criança precisa descobrir – e compreender – que todos os presentes que ganhou no Natal vieram do suor e do afeto de algum adulto que os ama. Não de uma fábrica mágica no Polo Norte. O que importa, aqui, é a simbologia por trás desse fato. Convenhamos, existem formas mais sutis para se descobrir que Papai Noel não existe.

Descobrir que Papai Noel não existia causou um trauma e tanto na vida adulta de João Pedro. Novamente, não pelo Papai Noel em si, mas pela forma como ocorrera. E porque a forma como ocorrera apenas ilustra, emblematicamente, as inúmeras outras vezes que os mesmos amigos – que ele considerava amigos – lhe arrancaram à ferro, fogo e maldade a infância da qual ele ainda não estava preparado para sair. A boa noticia, se esta existe, segundo a Rosa Monteiro, é que esse sofrimento imputado ao João Pedro o levou a escrever livros. Alguns deles, imagino eu, já lidos também por alguns de vocês. Quem sabe alguns de vocês até gostam dos seus livros. Mas, apesar disso, fica a pergunta: a que preço? Eu não sei, mas torço para que o Papai Noel me traga tal resposta, como presente, no próximo Natal.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Em 2023 lançou seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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