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MAR ABERTO | Preto e Branco*

por Boca Migotto

* Nascido como argumento para longa-metragem, a partir da leitura inspiradora do livro “Um antropólogo em Marte”, de Oliver Sacks, este texto foi batizado como “Jardim Cinéreo” e acabou guardado nas gavetas da vida ao longo de muitos anos. Talvez um dia vire filme, talvez livro, talvez termine por aqui mesmo, nesse Frankenstein-técnico-literário.

 

Manhã de sábado de um dia nebuloso de inverno em uma cidade no sul do Brasil, Carlos, 45 anos, alto, bonito, cabelos castanhos, acorda cedo no seu quarto de móveis brancos, sob medida, padrão “novo-rico”. A luz tênue da manhã nublada invade o espaço, vence a resistência da cortina de seda que cobre a grande janela envidraçada e desprotegida de grades.

Carlos se vira, olha para o lado e enxerga sua mulher que ainda dorme. É Sofia, 40 anos, magra, loira, se estivesse de olhos abertos, já saberíamos que são verdes. Ele a beija, tomando o cuidado para não acordá-la, e se levanta. Não percebe o leve sorriso da esposa, improvisado após o beijo carinhoso que Carlos lhe dera. Vai até a janela, fecha melhor a cortina, impedindo que a luz do dia já alto penetre demasiadamente os aposentos do casal. No banheiro faz a barba, cuidadosamente. Depois, na cozinha, grande, colorida e “contemporânea”, estilo Dell’Anno ou Todeschinni da vida, liga a televisão para acompanhar as notícias do dia enquanto prepara seu café. Ele veste um abrigo Adidas importado, o conjunto completo, calça e casaco. Enquanto assiste o noticiário da manhã, descobre que a chuva anunciada para todo o final de semana poderá começar a qualquer instante. No celular, responde algumas mensagens de trabalho, confirma algumas reuniões, às vezes resmunga coisas sozinho do tipo “droga, esqueci” e ai responde a mensagem com um “aqui vai”. Xícara na mão, Carlos caminha pela casa em direção à garagem, passa por uma grande sala onde é possível ver alguns prêmios, certificados na parede, várias maquetes, livros, uma mesa enorme cheia de plantas e um computador. Ao lado, dividido por uma prateleira branca e mais livros, percebe-se vários quadros muito coloridos, de gosto duvidoso ou, quem sabe, poderíamos até dizer, “de mau gosto”. Carlos para um instante e admira uma pintura incompleta que está sobre um cavalete. Contrariado, resmunga: “preciso achar uma solução pra esse quadro”. Diz isso em voz alta enquanto caminha para fora da sala que, agora sabemos, é seu atelier. Passa por uma sala menor, que serve de adega, e finalmente chega na garagem. Abre a enorme porta com o controle remoto. Aos poucos, a luz do dia nublado revela o espaço, seus dois carros, um BMW e uma Land Rover Discovery, e uma motocicleta Harley-Davidson. Carlos coloca a xícara sobre uma mesa, vai até a moto, a contempla por alguns instantes e, só então, se aproxima de uma prateleira de onde retira e separa o equipamento de jardinagem. Carrega tudo para fora. Volta. Abre a porta do BMW, liga o carro, dá um curto ré suficiente, apenas, para tirá-lo da garagem. Do lado de fora, abre a porta do veículo e coloca REM para tocar. De pé, observa a vizinhança, formada por casas de um condomínio fechado. Não se vê grades, não se vê cercas, a não ser por estética, não se vê lixo nas ruas. Todos os jardins impecáveis, com suas gramas aparadas, arbustos podados à perfeição e árvores tão bem cuidadas que mais parecem grandes bonsais, emolduram aquelas casas quadradas, construídas em concreto e vidro. O lugar lembra muito os famosos subúrbios americanos, com famílias felizes, grandes carros estacionados em frente às garagens e, em várias delas, homens “brincando” de jardinagem. Carlos cumprimenta alguns vizinhos mais próximos e, então, também ele começa seu trabalho. Poda algumas roseiras, depois galhos de uma pequena árvore, depois planta algumas flores. O cachorro, um labrador, está solto pelo jardim, Carlos conversa com ele sobre “não comer as novas mudas”.

Sofia abre a cortina da janela do quarto e eles se olham. Ainda de pijama, ela manda um beijo que é prontamente retribuído por Carlos. A música ganha volume e vemos pais e filhos que levam seus cachorros para passear, algumas crianças que jogam bola na rua e um grupo de mulheres que conversam. O céu, cada vez mais carregado, anuncia a chuva para logo. Carlos segue concentrado na sua tarefa de cortar alguns galhos de um árvore maior e Sofia chega até a varanda da casa, se senta em uma espreguiçadeira e o observa, enquanto toma café e lê algo em seu Ipad. É a constatação de um casal feliz. Será? Talvez não, mas o fato é que são jovens, ricos, bonitos, magros, brancos, com sua casa confortável em um condomínio fechado de luxo. Tudo leva a crer que há felicidade naquele lar. Quem sabe, logo mais chegará um filho, para complementar o sonho da família perfeita? No Ipad, Sofia pesquisa sobre Buenos Aires. Apesar do céu escuro, os passarinhos ainda cantam, as crianças ainda jogam futebol, as mulheres ainda fofocam e o labrador de Carlos ainda brinca no pátio enquanto ele segue cortando os galhos daquela árvore. De repente, um forte estrondo e um grito quebra a “orquestração” harmônica dessa típica manhã bucólica de sábado. Sofia levanta os olhos e vê o marido no chão do jardim, um galho ao lado. O marido não se mexe. Ela corre até ele. Um homem, que fazia exercício pela calçada, também corre para ajudar. As crianças param de jogar bola e olham, assustadas, na direção da casa de Carlos. O vizinho da frente se aproxima também. Alguém já liga para a ambulância do seu celular. Deitado no chão, rodeado por folhas e galhos, está Carlos. Sobre ele caem as gotas daquela chuva que persistirá, forte, ao longo de todo o final de semana. Tudo fica escuro para Carlos e não vemos mais nada. Sobre a TELA PRETA, enquanto apenas ouvimos o deslocamento da ambulância pelas ruas da cidade, surge o TÍTULO:

PRETO E BRANCO

No hospital, seguidas conversar de Sofia com diferentes médicos são preenchidas por palavras chaves com: “reversível”, “recuperará”, “sem problemas”, “vai dar tudo”, “vai descansar um pouco”, “chamaremos”. Então, finalmente, Carlos desperta. Está sozinho em um quarto que mais parece um apartamento de hotel de luxo. Uma música suave e quase imperceptível preenche o ambiente complementado por móveis sofisticados demais para um hospital, equipamentos de monitoração modernos demais para um hospital brasileiro e uma televisão de tela plana, pendurada na parede em frente à sua cama, inútil demais para um paciente que está com os olhos vendados por uma faixa que cobre, também, toda sua cabeça. Lá fora ainda chove. Mesmo assim, o dia está claro o suficiente para iluminar Carlos que, assustado e sozinho, se debate e chama por Sofia. A porta, então, se abre. Não é Sofia mas duas enfermeiras. Uma delas tenta acalmar Carlos enquanto a outa chama o médico que logo adentra o quarto. Explica que houve um acidente, que Sofia já foi chamada, que está tudo bem e, assim que ele se acalmar, lhe retirarão a venda dos olhos. Aos poucos, então, Carlos relaxa, começa a relembrar e relatar ao médico o acidente provocado pelo galho quebrado. Sofia chega e Carlos reconhece sua voz. Ela pega na mão do marido e pergunta ao médico se podem retirar a faixa que cobre os olhos de Carlos. O médico acena afirmativamente com a cabeça e inicia o procedimento, auxiliado por uma enfermeira. Então, embora ainda ofuscado pela claridade, o que lhe obriga a fechar e abrir os olhos em busca de adaptá-los à claridade, logo Carlos volta a enxergar. Mas algo está errado. Assustado, Carlos grita que tudo está cinza. Todos se olham e olham para ele. “Tudo está cinza, doutor. Não vejo as cores, tudo está cinza”. Assustado com a reação até quase agressiva de Carlos, o médico lhe aplica um sedativo. De pronto, Carlos se acalma e dorme. Sofia olha incrédula para tudo aquilo e percebe, no olhar do médico, que ele também não tem respostas para suas interrogações. Nada daquilo é normal. Nada daquilo era esperado.

Passadas algumas horas, então, Carlos abre os olhos novamente. Dessa vez há uma enfermeira ao seu lado. Ela o percebe acordando e chama o médico que logo entra no quarto. Carlos está atado à cama. O médico, então, explica que não sabe bem o que aconteceu mas que já entrou em contato com neurologistas e que tem certeza que tudo dará certo. Conversas prévias com os inúmeros especialistas com quem falou apontam para uma consequência provocada pela pancada na cabeça, sofrida ao cair da árvore. Disso eu seu, resmunga Carlos. O médico segue, como se não tivesse escutado seu paciente. Que essa batida pode ter gerado uma ruptura no sistema nervoso e isso, em algumas vezes, pode provocar um daltonismo leve inicial. Mas, provavelmente, logo tudo voltará ao normal. É uma questão de tempo. Carlos pergunta por Sofia e o médico diz que ela foi avisada e está voltando para o hospital.

Acompanhamos Carlos por uma bateria de exames. Ressonâncias, exames de sangue, tomografias, conversas com diferentes médicos, etc. Quando não submetido a algum exame, Carlos permanece em seu quarto, sentado em uma poltrona próxima à janela, de onde observa a chuva escorrer insistentemente pelo vidro da janela. Sofia, muitas vezes, está com ele. Mas ambos permanecem em silêncio. Carlos pouco fala e praticamente nada come. Os dias passam assim, marcados pela rotina hospitalar e pela introspecção reflexiva de um homem que enxerga um mundo em tons de cinza através de uma janela permanentemente molhada. E é assim, sentado nessa mesma poltrona, que Carlos e Sofia finalmente recebem o resultado derradeiro dos exames e avaliações realizadas por todos aqueles especialistas. “Infelizmente, as notícias não são boas”, disse o médico-chefe, às costas de Carlos que a tudo escutava sem tirar os olhos da chuva. Então, após tudo explicado pelo médico e um longo suspense, finalmente Carlos rompe o silêncio para dizer: “Não quero que ninguém saiba disso”. Se levanta e vai até o banheiro, fecha a porta. No quarto, em silêncio, permanecem todos. Lá fora chove. E, no banheiro, Carlos chora o desespero de um pintor que nunca mais enxergará as cores pelas quais tornou seu quadros conhecidos internacionalmente.

Sofia dirige por uma estrada sinuosa, rodeada por montanhas. Tenta conversar com Carlos, que está sentado ao seu lado. Pergunta se ele tem certeza da sua decisão, mas ele não responde. Fala sobre arte, diz que está trabalhando com um novo artista. Ele segue sem falar com ela. Ela desiste de tentar quebrar o gelo e apenas dirige, sob uma chuva torrencial. Carlos está com o olhar perdido, concentrado no efeito da luz dos faróis contrários sobre o para-brisas do carro de Sofia. No rádio, um jazz toca baixinho, mal é possível escutá-lo. Lá fora, trovões e relâmpagos rompem o silêncio da noite. Carlos pega no sono. Por um tempo, apenas ouvimos o som da música no rádio, do motor do carro e da chuva, cada vez mais distantes. O carro segue se deslocando por estradas sinuosas, descendo uma serra perigosa e mergulhando por entre montanhas cobertas de cerração.

Sofia freia e acorda Carlos. O rádio volta a se tornar presente, agora em uma estação AM, com um locutor que fala sobre o inverno que se aproxima. Carlos olha para fora e vê uma casa grande em meio a um pátio arborizado. Olha para os lados e quase não percebe nada. Está escuro, chove, e tudo parece engolido por uma cerração fechada. Sofia abre a porta do carro e, com o auxílio de um guarda-chuvas, caminha até a casa. Carlos permanece no carro, de onde enxerga uma porta que se abre e ilumina um pouco o ambiente próximo a ela. Vê que se trata de uma casa realmente grande, de dois andares, com uma varanda comprida e várias janelas, tanto no primeiro como no segundo andares. Vê Sofia, que fala com uma mulher. Do carro, apenas é possível perceber que a mulher é negra e alta. Essa mulher entrega algo para Sofia, que volta para o carro e entrega para Carlos. São as chaves da sua nova casa. Então, pergunta mais uma vez se tem certeza que precisa desse tempo sozinho. Carlos diz que sim com a cabeça, responde “apenas um mês, pra organizar as ideias” e desce do carro sem se preocupar com a chuva, abre o porta-malas e tira de lá algumas poucas caixas e uma mala, que carrega na direção de um pequeno chalé localizado nos fundos do quintal. De lá, repara no vulto da uma pessoa que mal aparece por trás das cortinas da casa grande. Sofia se junta a Carlos e o ajuda a descarregar mais alguns volumes. Comenta sobre Fernanda, a dona da casa. Diz que está tudo certo, aluguel pago para um mês. “Espero que tu saiba o que estás fazendo”. Ela abre a porta dessa casa menor, uma espécie de chalé, que fica próximo da casa grande onde Sofia foi encontrar Fernanda. Liga a luz e apresenta o local a Carlos. O chalé conta com, praticamente, um único ambiente no andar de baixo, com um pé-direito alto, uma cozinha americana e uma lareira. Uma escada de madeira leva para o segundo andar onde há uma cama, uma mesa de escritório e outra lareira menor. Sofia diz, ainda, que Fernanda está a disposição dele, caso precise de alguma coisa da cidade. Carlos limita-se a apenas concordar timidamente com a cabeça. Ele agradece Sofia e pergunta se ela quer passar a noite lá com ele em vez de pegar a estrada no meio da tempestade. Sofia diz que não, que está muito frio e prefere voltar para Porto Alegre. Então Carlos a beija na testa. Já Sofia o abraça afetuosamente. Para ela, a despedida parece doer. Para ele, nem tanto. Antes de sair, sugere, não sem uma ligeira ironia, que Carlos aproveite a natureza para caminhar pelos morros, “o lugar é lindo”. Ele ignora o comentário da esposa e retira do bolso um molho de chaves. Entrega para Sofia e diz “não vou precisar disso por um bom tempo”. Sofia estranha, mas pega as chaves e sai, caminha rápido até o carro, para fugir da chuva que segue forte, e retoma sua viagem de volta pra casa. Agora, sem o marido. Pela janela, Carlos vê ela ligar os faróis, a luz do carro iluminar o entorno enquanto faz o retorno, e desaparecer na curva da estrada. Só então Carlos dá as costas para a janela, caminha até as caixas amontoadas sobre uma mesa e procura algo. Mexe, remexe, até encontrar uma garrafa de vinho. Abre o vinho enquanto, também, liga um rádio em alguma estação qualquer de música. Entre interferências causadas pelos trovões, no rádio toca uma música clássica. Carlos olha para os lados, descobrindo o ambiente mal iluminado por uma lâmpada de 40 watts. Além do escuro, tudo é sem cor aos seus olhos. De repente, falta luz e o ambiente todo fica praticamente escuro. Carlos, então, dirige-se ao segundo andar onde, da porta envidraçada, vê a casa ao lado iluminada por velas. Está com frio, vai até a cama, se deita, se cobre e dorme, mergulhado nas trevas dos seus pesadelos, embalado pelo tilintar da chuva sobre o telhado de telhas de barro.

Ouvimos o canto de pássaros e o som da chuva, que segue caindo, embora mais calma. Ao amanhecer, a luz do dia revela os detalhes do novo atelier de Carlos. Um ambiente agradável e bem iluminado pela luz natural. Poucos objetos, além dos potes de tinta e pincéis amontoados num canto sobre uma bancada de madeira, cavaletes, livros ainda empilhados e caixas de papelão. Carlos faz um café. No reflexo da chaleira de inox se olha, deformado. Mexe o rosto para cima e para baixo, para frente e para trás, busca as variações possíveis dessa deformação provocada pela curvatura da chaleira. É despertado do seu transe por um movimento lá fora. Carlos passa a mão no vidro da janela, que embaçou com o calor da chaleira, e vê Fernanda, agora iluminada pela luz do dia. Percebe uma mulher de aproximadamente 40 anos, negra, alta, bonita. Ela entra em uma estufa, entre flores e pequenas árvores. Para Carlos, tudo gira em torno de tons de cinza. Mas o ambiente, ao contrário do que ele enxerga, é colorido e iluminado por lâmpadas que aquecem o ambiente e as plantas. Fernanda cuida das flores, e Carlos cuida dela, hipnotizado pelas curvas do belo corpo daquela mulher. Carlos nunca se sentiu atraído por mulheres negras. Embora tentasse disfarçar, a verdade é que Carlos partilhava dos mesmos sentimentos racistas da maioria da classe-média brasileira. Para Carlos, mulher bonita era Sofia. Totalmente dentro dos padrões europeus de beleza. Loira, magra, olhos claros, rosto afinado e, se possível, alta. No entanto, sua “nova condição”, por conta desse raro tipo de daltonismo que apenas o permite enxergar escalas de cinza, alterou todo seu universo e suas percepções. De todas as formas possíveis, em todos os níveis imagináveis. Como artista, reconhecido internacionalmente pela sua pintura marcada pelo uso, muitas vezes, inclusive, excessivo, das cores, Carlos desmoronou da noite para o dia. Como pintar cores quando apenas enxerga tons entre o preto e o branco? Como marido, passou a ter nojo da própria esposa. Sua pele sedosa, antes tanto desejada por ele, agora lhe causava repulsa. Mas como contar isso à pessoa que amava? Todas as coisas coloridas, vivas ou inanimadas, agora lhe eram estranhas. Muitas vezes, insuportáveis. Passou a se alimentar apenas de arroz branco e feijão, pois as coisas naturalmente brancas e pretas, ainda lhe pareciam minimamente “normais”. Saladas, frutas, seu cachorro caramelo, Sofia e, acima de tudo, suas tintas, tudo, lhe transtornava. Por isso, depois de um mês evitando os carinhos de Sofia, na cama, passando longe do atelier, trancado em seu quarto, no escuro, e emagrecendo de fome e depressão, decidiu que era necessário fugir daquilo tudo e buscar abrigo em um ambiente completamente novo. Foi assim que veio parar naquele chalé, isolado, no meio das montanhas e do mato. Mas, agora, daquela janela, observando os movimentos daquela mulher negra, sentiu um tesão inédito tomar conta do seu corpo. Não resistiu e, ali mesmo, de pé, enquanto a água fervia sobre o fogo, fazendo chiar a chaleira ao ponto de a sua tampa saltar longe, Carlos se masturbou até se acabar.

Aliviado, depois de semanas em total abstinência sexual, Carlos fecha o zíper da calça, desliga o fogo e desiste do café. Sobe até o segundo andar, faz fogo para esquentar o ambiente, se serve do vinho aberto na noite anterior e fica em frente ao fogo, observando-o, enquanto vai se embriagando. Acaba dormindo na poltrona e acorda no meio da tarde, com o dia já escurecendo. Lentamente, se levanta e vai para fora da casa, em uma área externa que é uma espécie de mezanino. De lá percebe os morros ao seu redor. Está completamente rodeado por montanhas cobertas de mata e uma insistente cerração densa que lhe lembra uma tampa sobre uma panela. Se dá conta que está em uma espécie de prisão. Então, percebe o movimento na casa grande. Vê Fernanda, que está sentada ao lado de um homem de aproximadamente 80 anos.

É Jorge, um homem idoso, cabelos e barba brancos, veste um terno, um cachecol e tem uma manta de lã sobre as pernas. Apoia-se em uma bengala e usa óculos escuros. Jorge fuma um cigarro atrás do outro enquanto Fernanda lê para ele. A cena é tocante. Ela iluminada pela luz quente de um abajur que está sobre uma mesa de centro, colocada entre ambos, e ele, um idoso, tem seu rosto emoldurado pela sua barba e pelos seus cabelos brancos. Carlos congela seu olhar naquela imagem, observa a cena que, para ele, como sabemos, é desprovida de cores. Então, seu celular toca e lhe acorda daquele transe. Carlos se levanta, vai até o aparelho que está sobre a TV. É Sofia. Ele atente, fala com ela, que lhe pergunta como está, como é o lugar, se está bem. Não ouvimos a voz de Sofia mas, através das respostas curtas e diretas de Carlos, é possível deduzir as mesmas. Ele desliga o telefone e o joga sobre uma poltrona ao lado. Começa a chover mais forte, Carlos fecha a janela. Sente frio, atiça o fogo na lareira e coloca mais lenha. Veste um casaco e acende um cigarro. Desce para o andar debaixo onde retira outro vinho de uma das caixas que trouxe consigo na noite anterior. Encontra uma tela branca, olha para ela. Decide pintar. Procura a paleta de cores, pega várias bisnagas de tinta e as espreme, aleatoriamente, sobre a palheta, misturando boa parte da tinta. Vemos a confusão das cores sobre a paleta mas, aos olhos de Carlos, tudo não passa de tons de cinzas. Começa a pintar. Logo, no entanto, desiste, frustrado, e deixa-se cair sobre um sofá que está ali perto. De longe, observa o resultado do seu trabalho. Ouve um bolero vindo lá de fora. Vai até a janela e enxerga, agora mais de perto, Jorge sentado sozinho na mesma poltrona. O velho fuma e bebe vinho enquanto escuta música. A chuva segue caindo, mas Jorge está protegido e tem um cobertor de lã sobre as pernas. Já está bem escuro, mas ele segue usando óculos escuros, na penumbra da varanda, iluminado apenas pela tênue luz do abajur.

Alguém bate à porta, Carlos vai até a mesma e a abre. É Fernanda, que de capa de chuva veio avisar que Sofia lhe telefonou. Disse que chamou várias vezes, no celular dele, mas como o mesmo não foi atendido, preocupada, ligou para ela. Então, alcança o seu celular para Carlos. Ele se vê obrigado a atender. Pergunta porque Sofia ligou novamente, ouve algo e explica que nem sabe onde jogou o seu celular, “talvez lá em cima”. Enquanto conversam, Fernanda circula pelo espaço bagunçado do atelier. Curiosa, caminha até o quadro que Carlos estava pintando há pouco e olha para a tela. Através do ponto de vista de Fernanda finalmente vemos, de fato, uma pintura quase abstrata, confusa na utilização das cores, mas ao mesmo tempo possível de ser identificada. A cena retrata um homem e uma mulher sentados, vistos a partir de uma janela que moldura a ação ao mesmo tempo que a distorce, através do acúmulo da água da chuva que escorre pelo vidro. Um enquadramento ao mesmo tempo claustrofóbico e distorcido. Fernanda reconhece a cena como sua e de Jorge. Carlos desliga o telefone e o alcança para a vizinha, olha para o quadro, olha para ela e a agradece, meio que expulsando-a da casa. Ela caminha para fora do chalé e, então, abruptamente, se volta para ele e diz que, se ele se sentir só, poderá consolar sua solidão com a solidão dela e de seu marido. Aponta para o quadro, “aquele é Jorge, meu marido”. E complementa dizendo: “estamos todos juntos nessa prisão, cada qual por seus próprios crimes”. Carlos nada comenta, permanece em silêncio. Então, Fernanda explica que o marido, Jorge, é cego. Já ela, bom, como ele pode ter percebido, é negra. “Só isso, naquele lugar, já é suficiente, não?” Carlos permanece em silêncio. Então, talvez porque queira deixar claro a ele toda a situação ou apenas porque quer preencher o silêncio daquela conversa ao pé da porta, Fernanda conta que ler ao marido é sua retribuição por ele ter salvo sua vida. “Jorge me ensinou a ler, lendo descobri as flores e, com as flores, me descobri um ser humano”. Então pergunta para Carlos: “em que momento ou lugar tu és tu mesmo?”. Não espera a resposta e logo reitera o convite: “venha conversar com Jorge qualquer hora dessas, embora cego, ele enxerga melhor do que muita gente e, embora um pouco ranzinza, é um borracho divertidíssimo”. Fernanda dá boa noite a Carlos e volta para sua casa sem que ele tenha aberto a boca para dizer qualquer coisa.

Em preto e branco os dias passam vagarosamente pelos olhos de Carlos. Mesmo isolado, trancado em seu chalé e em si mesmo, os dias seguem: amanhece, escurece, chove, baixa cerração, chove novamente, a cerração se dissipa, escurece, chove. Fernanda cuida das suas plantas. De vez em quando alguém chega, em uma velha Saveiro, para entregar compras. Nem Fernanda nem Jorge se afastam, significativamente, dos arredores da casa. Carlos descobre que aquele é o rapaz da venda da vila, próxima dali, onde Fernanda faz as compras da semana. Ela pouco vai para lá. Um dia, Carlos chama o rapaz para fazer algumas encomendas também para ele e aproveita para perguntar sobre Fernanda. O rapaz diz que o pessoal da cidade não gosta dela pois é negra e “ajuntada” com um velho argentino. Mas, talvez, as pessoas apenas tenham medo daquele casal que vive naquela casa mal-assombrada. “Mal assombrada?”, rebate Carlos. O rapaz desconversa e diz que precisa ir. Praticamente arranca a lista de compras da mão de Carlos, se despede, unilateralmente, corre para a Saveiro, arranca e desaparece na curva da estrada. Os dias seguem. Quando a cerração se dissipa, vez ou outra, revela a Carlos o cume dos morros que envolvem aquele lugar. O céu azul, que para ele é cinza, no entanto, sempre dura pouco e, logo, Carlos se vê novamente claustrofóbico naquele lugar. A música que escuta vindo da casa de Jorge e, também a música que ele mesmo escuta em casa, ajudam a amenizar a solidão daqueles dias de inverno. O frio é de matar, penetra nos ossos, sobe pela espinha, provoca calafrios. Por conta dele, raramente Carlos toma banho e, permanentemente, mantem ao menos uma das lareiras acesa. O celular toca com certa frequência, é quase sempre Sofia. Carlos nunca atende. A umidade escorre pelas paredes do estúdio. Vez ou outra, uma lesma caminha pelos vidros das janelas na casa de Carlos o que faz com que ele fique minutos, horas, intermináveis, acompanhando o andar lento daquele bicho. E, aos poucos, a lógica daquele lugar vai se revelando para ele ao mesmo tempo que vai transformando-o. Mesmo que ele nem perceba. A barba cresce, o cabelo também. Como mal toma banho, raramente troca a roupa. Os relógios, por falta de corda ou de pilhas, pararam de marcar as horas. Não importa, Carlos acompanha o dia através da luz ou dos hábitos cotidianos do casal da casa grande. O velho Jorge tem sua rotina muito bem estabelecida. Pela manhã, logo cedo, independentemente do tempo, senta-se em sua varanda que dá para os fundos do terreno e lá permanece quieto durante horas, aquecido pelo cobertor de lã. Às vezes toma mate, não sempre. Às vezes ouve um tango, às vezes um bolero, às vezes um samba antigo, às vezes, apenas o som do mato e da chuva. Após o almoço deve dormir, pois não é visto até o finalzinho do dia, quando volta para sua poltrona. Todos os dias, por volta das seis horas da tarde, se senta na varanda e espera por Fernanda, que logo se junta para ler para ele. Esse momento dura, aproximadamente, duas horas. Então Fernanda se levanta e vai para a cozinha fazer a janta enquanto Jorge segue lá fora, na penumbra, de óculos escuros, olhando para o vazio dos seus próprios pensamentos. Talvez refletindo sobre o que Fernanda acabara de ler, talvez lembrando do passado como correspondente internacional do Clarín, de Buenos Aires. Observando-o de longe, Carlos constrói as características daquele personagem e, aos poucos, vai pintando quadros a partir dessa observação. Com esse hábito voyeur, adquiriu também o costume de rabiscar em um bloco de desenho situações onde Jorge estaria inserido, e logo são folhas e mais folhas de desenhos esboçados pelo lápis 6B. Rascunhos para seus quadros mas, sobretudo, rascunhos de uma vida preenchida por sua imaginação, uma vez que não teve coragem, ainda, de apresentar-se ao velho. Ao mesmo tempo, a folha branca e o lápis preto conferem, à Carlos, certa segurança. Conforme vai percebendo naturalidade nos seus rascunhos preto e brancos, sua própria existência parece adquirir sentido. Para Carlos, tudo é, também, sempre mais esmaecido, como se houvesse uma catarata a disfarçar a nitidez do desenho. Mesmo assim, é preto e é branco. É natural. É normal. É uma forma de esquecer a própria deficiência.

Uma tarde, enquanto desenha, Carlos vê um vulto passando pela janela empoeirada: é Fernanda. Ela entra na estufa e isso chama a atenção de Carlos que vai até uma janela de onde consegue enxergar através da porta da estufa. Carlos se esforça para vê-la, mas o ângulo da janela não lhe permite uma visão plena. Às vezes a enxerga bem, às vezes à vê por trás do plástico que serve de parede para a estufa. Mas Carlos repara na bunda de Fernanda, nos grandes seios apertados sob o guarda-pó e começa a se tocar. Aos poucos, gradativamente, vai se excitando e sua respiração fica ofegante. Abre a braguilha da calça e se toca por baixo da roupa. De repente alguém bate na porta, Carlos se assusta e se reestabelece. É Sofia. Ela traz consigo alguns canvas e tintas. Sem pedir licença, vai à cozinha e prepara um café. É quando percebe que as caixas trazidas há semanas atrás seguem lá, jogadas sobre a mesa, da mesma forma como foram deixadas na noite que às descarregaram. Também percebe algumas pinturas de Carlos e, principalmente, seus desenhos sobre o sofá e a mesa. Chama por Carlos. Ele surge na sala. Começa a perguntar coisas para ele, enquanto tenta beijá-lo. Ele a repele. Ela segue com as perguntas, como ele está, como tem passado, se adaptou ao lugar, está melhor, etc… Ele é ríspido com ela, pergunta porque ela não o deixa em paz de uma vez por todas. Sofia não entende a violência verbal do marido. Diz que falou com o médico, que existe uma nova chance de reverter o quadro dele. Diz que o médico pesquisou sobre um pessoal, nos Estados Unidos, que vêm estudando sobre esse tipo de daltonismo. Carlos diz que não quer mais saber de nada disso, que decidiu ficar lá por mais tempo, que decidiu se separar. Sofia fica espantada, depois de tudo que ela fez por ele? Eles discutem, ela chama ele de covarde, “tu sempre foi um bunda-mole mesmo. Na vida e na arte”. Ele questiona ela, “como assim, tu sempre lucrou muito com meus quadros”, diz ele. Vender bem, no mundo das artes, não significa que o produto seja bom. Ele sabe bem disso, afinal se diz sofisticado, gosta de boa música, vai ao teatro, frequenta óperas quando viaja. Mas essa boa música, o teatro e a ópera vendem tão bem quanto um sertanejo universitário, uma novela da Record ou uma comédia hollywoodiana? “Pois bem, tuas cópias de Romero Brito são o sertanejo universitário, a novela e o blockbuster da pintura. Vendem super bem, como um bibelô para decorar as casas da classe média cafona”. Como uma BMW na garagem, que supre a baixa autoestima desses homens gordos e seus paus eternamente insuficientes. Tu só vendia teus quadros porque essa gente não faz terapia. Carlos fica puto, agradece ao daltonismo, pois agora enxerga melhor a mulher que tem. Diz que a única coisa nela que ainda o mantinha casado era o fato dela ser linda, mas agora nem mais isso. Joga na cara dela que sua pele se assemelha a um rato, que tem nojo dela, de tocar ela, de se aproximar dela. Carlos a empurra para fora de casa e diz para ela não o procurar mais. Sofia sai, chamando-o de covarde, e entra no carro, bate a porta e arranca. Então freia abruptamente, abre a porta do carona e joga duas sacolas com garrafas de vinho para fora: “fica com esses vinhos e bebe até morrer, desgraçado!”. Bate a porta novamente e arranca. Fernanda observa tudo de dentro da estufa.

Carlos se senta no sofá e permanece em silêncio, ofegante, na sala daquele chalé. O som da chuva sobre o telhado é quebrado por uma batida na porta. Ele se levanta e a abre. É Fernanda, com as duas sacolas na mão. “Acho que algumas garrafas quebraram, mas eu não deixaria de aproveitar as outras”, entrega os vinhos para Carlos que as pega sem falar nada. Fernanda vai embora. Carlos fecha a porta, leva as garrafas até a pia da cozinha e separa aquelas quebradas das intactas. Olha um vinho em especial, lava a garrafa. Acende um cigarro e permanece lá, de pé, em frente à janela que dá para a estufa. Fuma e observa Fernanda lidando com as flores. Então, recolhe aquele seu melhor vinho e sai. Fecha a porta atrás de si e caminha em direção à varanda onde Jorge sempre está. Gradativamente, ao se aproximar, identifica os acordes de um tango que soa baixinho, vindo de dentro da casa. Carlos fica reticente em atrapalhar aquele momento e, por isso, estanca no meio do caminho. Quando está desistindo de prosseguir com sua visita não planejada, ouve a voz carregada de sotaque portenho de Jorge, “adelante, amigo, senta”. Carlos olha surpreso para Jorge e vai até ele. Sobe as escadas da varanda, pede licença e senta ao lado do velho cego, na cadeira usada por Fernanda. Então, olha para a sua janela, no chalé, e isso é suficiente para percebermos que ele, Carlos, se enxerga a partir do mesmo lugar de onde, todas as noites, olha para Fernanda e Jorge. Só que, agora, ele substitui Fernanda. Permanecem em silêncio. O cego e o daltônico, lado a lado. Então, Carlos diz que trouxe um vinho para beberem, pede se tem abridor. Jorge grita para Fernanda, Carlos diz que ela está na estufa, pergunta se pode entrar e procurar pelo saca-rolhas. Jorge diz que deve estar na primeira gaveta da pia. Carlos entra. Enquanto procura pelo abridor, observa retratos de Jorge na Argentina, diplomas na parede, fotos com autoridades dos anos 60, 70 e 80. Muitos militares ao seu lado, nessas fotos. No entanto, em nenhuma delas ele está ao lado de Fernanda. Então, ela entra na casa e os dois se veem frente a frente. Carlos tenta explicar que está lá procurando pelo abridor. Fernanda diz que Jorge lhe contou quando passou por ele. Ela vai até a primeira gaveta da pia, abre e encontra facilmente o saca-rolhas. “Toujours dans le tiroir du haut, Jorge ne te l’a pas dit?”. Carlos não entende o que Fernanda falou: “desculpa?”. “Deixa assim”, diz ela, “ce c’est pas important”. Carlos ri constrangido e sai da cozinha, com o abridor em mãos. Lá fora, abre o vinho, serve os três copos e todos brindam. Fernanda se senta ao lado de Jorge, em uma cadeira improvisada. Carlos está na poltrona que é dela. Todos brindam e bebem o vinho, resmungam que é um excelente vinho, mas é o silêncio que impera. Assim, ali permanecem os três: o velho cego, o pintor daltônico e a negra que fala francês (!?). Permanecem ali por um longo tempo, bebendo e escutando a chuva, que voltou a cair.

Então Jorge fala do garoto da Saveiro. Pergunta, afirmando, se Carlos falou com ele. Sem esperar a resposta, complementa dizendo que o povo da vila é muito ignorante, cheio de preconceitos e ingenuidades. Acreditam que o lugar é mal-assombrado, por conta de uma tragédia que ocorreu, naquela casa, há mais de cem anos. Carlos pergunta sobre o que ele fala e Fernanda se serve do vinho, novamente. Só depois dela servir, também, a taça de Jorge, ele conta a história daquela casa. Segundo o velho argentino, aquela moradia pertenceu a uma família de suecos que imigraram para o Brasil em um grupo pequeno, de umas cem famílias. Ao chegarem aqui, se assustaram com o lugar para onde foram enviados. Ao contrário dos italianos e dos alemães, os suecos eram todos da cidade, artesãos, não sabiam lidar com agricultura. Em pouco tempo, pediram para o rei lhes repatriarem e, a maioria, voltou para a Suécia. Algumas poucas famílias permaneceram, mas não falavam italiano, não falavam português, não eram compreendidos por ninguém, sofriam com o preconceito e se isolaram cada vez mais. Um dia, percebendo que não havia movimento na casa, os vizinhos entraram naquela casa e encontraram a mulher e duas crianças mortas a facadas. Já estavam apodrecendo. Fora, atrás da casa, o homem – marido e pai – estava pendurado, enforcado, e gradativamente decomposto pelo tempo e pelos animais que se alimentaram dele. Por conta da depressão e do isolamento – os relatos da época presumiram – o homem enlouqueceu e deu cabo da vida. Antes, no entanto, garantiu que não partiria sozinho. Matou os filhos, a mulher e só depois se enforcou. Nem se preocupou em enterrá-los. “A história é horrível, mas o preço da casa foi ótimo”. Desde então, nenhum proprietário ficou lá por mais de dois anos. Ou fugiram, sem nem ao menos tentar vende-la, ou enlouqueceram ou, um ao menos, foi encontrado morto. Tudo isso, claro, transformou as histórias de dor e fracasso em lendas de horror. Carlos pergunta há quantos anos eles vivem na casa e Fernanda responde: “treze”. Silêncio novamente.

Amanhece e Carlos acorda com batidas na porta. Se levanta, enrola-se numa manta e desce até o andar debaixo. É Fernanda, que se desculpa por acordá-lo, mas diz que vai para a cidade e quer saber se ele precisa de algo. Carlos diz que não, mas estranha que ela vai sozinha para a vila. Pergunta se aconteceu algo com o rapaz da Saveiro, Fernanda diz que não, que apenas precisa de coisas urgentes para um jantar a noite e diz que ele é convidado. Ela e Jorge decidiram fazer um jantar para ele e não há possibilidade de não aceitar o convite. Carlos agradece, pergunta o que ela pretende cozinhar. Ela diz que fará uma carne assada com um molho especial. Ele parece não gostar. Ela percebe. Pergunta porque. Ele diz que por causa da sua doença, carnes não são alimentos apetitosos, a textura da carne lhe parece suja. Que se não for pedir muito, ela cozinhasse alimentos que são naturalmente brancos e pretos. Então Fernanda diz que mudará o cardápio e caminha em direção a estrada, com seu guarda-chuva. Carlos grita e pergunta como ela irá, ela diz “de ônibus, e ele já está chegando”. Carlos diz que vai junto, sobe correndo, se veste rapidamente e logo está ao lado de Fernanda. “Posso te acompanhar?”. Ela ri e eles saem correndo pois Fernanda percebe que o ônibus está chegando. Realmente, ao chegar no asfalto, logo o ônibus surge na curva da estrada.

Na cidade, que é apenas uma pequena vila com casas velhas dos dois lados de uma única rua calçada com pedras, Carlos percebe o olhar das pessoas que os observam de suas janelas. Os dois caminham sob o mesmo guarda-chuva. E chove bastante. Entram na venda que Fernanda sempre compra e são recebidos pelo proprietário, um descendente de italianos que fala português com sotaque. Ele parece assustado ao vê-la entrar. Tenta parecer natural, mas os atende com pressa, sempre a olhar para a porta. Fernanda e Carlos percebem o nervosismo dele e isso faz com que Fernanda se mostre indecisa quanto a alguns produtos, provocando ainda mais o desconforto do vendedor. Em cumplicidade, Fernanda e Carlos provocam ainda mais essa demora. Uma senhora entra na loja sem saber da presença deles, quando os vê, desconversa e diz que voltará noutra hora, que esqueceu o dinheiro em casa. Desculpas vazias afinal, ali, todos sabem, ninguém compra com dinheiro. A prática ainda é anotar no tradicional “caderninho”. Então, a chuva para e eles também decidem acabar com a brincadeira. Pagam e saem com as compras. Na rua, Fernanda diz que o ônibus demorará uma hora para passar ali. Em uma hora, pela trilha do mato, eles chegam em casa. Carlos diz, então, para caminharem. Enquanto caminham, pergunta se é verdade a história que Jorge lhe contou na noite anterior e que, por conta disso, a casa é assombrada. Fernanda ri e diz que a única assombração que existe é o isolamento. E o preconceito daquela cidade. Ser sozinho pode enlouquecer uma pessoa. Fernanda fala isso enquanto caminha pela trilha, “para essa cidade de merda, eu sou a puta negra que vive em pecado com um estrangeiro cego e velho, quer mais assombração que isso?”. Fernanda diz que, naquele lugar, ser mulher não é fácil. Ser mulher e negra, praticamente um atestado para todo tipo de abuso. Por isso, em treze anos, com a exceção do proprietário da venda, que só enxerga dinheiro na frente, nunca conversou com uma única pessoa da vila. Ao contrário, quando vai até a vila, como Carlos mesmo pode perceber, as pessoas atravessam a rua para evitarem a mesma calçada. E não fazem isso porque têm medo ou nojo dela. “Não. Fazem isso apenas para que eu saiba qual o meu lugar. Enquanto eu estiver no meio do mato, como um macaco, tudo bem. Mas não ouse bater as asas”. Carlos permanece em silêncio, talvez por se reconhecer naquelas atitudes que Fernanda descreve. Quantas vezes também ele agiu da mesma forma? Talvez não assim, explicitamente, atravessando a rua para não cruzar com uma pessoa negra, mas de outras formas, com preconceito. “Mas, agora, além de negra e amante de um velho estrangeiro, serei também a amante de dois homens”, complementou Fernanda. Carlos perguntou do que ela estava falando, apenas para concluir o mesmo que já havia deduzido. “Claro, me viram contigo na vila… o que mais esse povo vai falar?”. Carlos diz que não sabe o que comentar. Então Fernanda ri, sarcástica consigo mesma, e conclui dizendo que hoje está muito melhor, afinal, além de mulher e negra, um dia fora, também, pobre e analfabeta. “Pelo menos agora tenho alimento para o meu corpo e minha alma, graças àquele viejo boracho”. Então Carlos segura ela pela mão, eles param, e olhando nos olhos dela e diz que é daltônico, que só vê preto e branco e que as pessoas brancas, para ele, parecem seres sujos, ao ponto de mal ter vontade de tocá-las. E que é primeira vez, desde que caiu daquela árvore e ficou daltônico, que percebe o quanto toda essa tragédia lhe fez bem. Então, beija Fernanda. Os dois deixam as sacolas caírem e se beijam selvagemente. Começa a chover, mas mesmo assim, ali, no chão molhado, arrancam as roupas um do outro e transam. Já é quase noite quando chegam em casa. Os dois estão embarrados, sujos. Cada um vai para sua casa. Fernanda passa por Jorge e diz que vai cozinhar, o ônibus atrasou e ela precisou voltar a pé. Carlos logo virá devido ao horário que ela o convidou, é preciso cozinhar rapidamente. Jorge pede para ela colocar uma música antes de começar a cozinhar e ela faz isso. Ele fica lá sozinho. Anoitece, vemos as estrelas no céu aberto pela primeira vez desde que Carlos chegou ali. É possível perceber as nuvens esparsas cobrindo e descobrindo as estrelas, ao sabor do vento. Um tango começa a tocar e preencher o ambiente, confundindo-se com os sons da natureza. De longe, aquela casa grande e o pequeno chalé ao lado são apenas dois pontinhos iluminados em meio à vastidão do vale. Para Carlos, a misturas de todos os sons são a companhia perfeita para seu primeiro banho em semanas. Aos poucos, a música que Jorge escuta preenche toda a natureza.

Durante o jantar, eles conversam sobre como é viver ali. Carlos pergunta sobre essa tal maldição da casa. Fernanda e Jorge respondem que é uma bobagem de colonos ignorantes e iletrados. Jorge diz que apenas quis impressionar o amigo. Carlos pergunta porque decidiram viver ali. E Jorge responde “porque é bom”. “É um lugar lindo, mesmo para um cego. É tranquilo e, como te disse outra noite, foi barato demais”. Então Fernanda diz que Jorge não era completamente cego quando se mudaram para ali. Ele estava perdendo a visão já havia um tempo, mas ainda enxergava e pode aproveitar um pouco da beleza da região. No inverno, parece uma prisão, mas no verão a natureza exuberante e a luz do sol faz com que tudo valha a pena. Jorge conta que veio para o Brasil como correspondente, depois passou por México, França e Nova Iorque antes de voltar para o Rio de Janeiro. Quando descobriu que, inevitavelmente, ficaria cego, se aposentou e se mudou para Porto Alegre. Não queria deixar o Brasil e voltar para a Argentina mas, ao mesmo tempo, também escolheu a capital do Rio Grande do Sul por ter um clima e cultura que integrava os dois países. Quando conheceu Fernanda já lia apenas com o auxílio de uma lupa. Fernanda serve a todos com mais vinho e complementa dizendo que aprendeu a ler com Jorge. Ela trabalhava como faxineira, na Biblioteca Pública de Porto Alegre. Foi lá que se conheceram, Jorge a frequentava diariamente. Aos poucos foram se aproximando, conversando, se conhecendo e se perceberam complementares apesar de tantas diferenças. “E tu, Carlos, qual a tua história?” – pergunta Fernanda. Carlos bebe um bom gole do resto do vinho que estava em sua taça, a alcança para que Fernanda volte a servi-lo e, só então, conta que é, ou era, um arquiteto, que ganhava muito bem, tinha uma vida perfeita e muitas pretensões artísticas. Um dia caiu de uma árvore e ficou daltônico. E junto com o daltonismo, descobriu que era um pintor medíocre. Assim, sua vida, de uma hora por outra, virou um preto e branco sem graça. Jorge diz que sempre lhe agradou o cinema noir. Carlos não entendeu o comentário. Jorge começa a rir, sarcasticamente. Carlos e Fernanda se olham se desejando. Jorge propõem um brinde. Eles brindam, bebem e se embebedam em uma noite que parece não ter fim. Já é quase de manhã quando Jorge diz que precisa dormir. Nem complementou a frase e pegou no sono ali mesmo, no sofá para onde haviam se mudado após finalizado o jantar. Após ajudar Fernanda a cobrir Jorge com uma manta bem pesada, para que não passasse frio, Carlos diz que também vai embora. Fernanda o acompanha até a porta. Lá, na varanda da casa, de pé, sem dizerem nada um para o outro, se beijam e começam a transar. O dia amanhece lentamente por sobre as montanhas, brigando com a cerração densa da manhã, quando os dois gozam juntos, abraçados, sobre o parapeito da varanda.

Os dias seguem. Daquela manhã em diante, Carlos e Fernanda passaram a transar todos os dias, enlouquecidamente, em todos os lugares e de todas as formas possíveis. Da mesma forma, Jorge fica cada vez mais sozinho em sua poltrona predileta, sem mais as leituras e a companhia de Fernanda. A rotina deles se altera radicalmente. Fernanda se sente culpada por “abandonar” Jorge, mas não consegue controlar o desejo que sente por Carlos. Eles saem com frequência para dentro do mato, transam nas clareiras, deitados no chão forrados pelas folhas molhadas. Carlos não pinta mais, apenas bebe, dorme e transa com Fernanda. Um dia, no atelier, eles brigam por causa de Jorge. Carlos quer transar mas Fernanda evita e diz que precisa ficar mais com Jorge, que se sente traindo a cumplicidade construída com o marido ao longo dos anos. Carlos, está bêbado, fica com ciúmes, ofende Fernanda, chama ela de submissa. Pergunta o que ela quer com aquele velho cego. Fernanda bate em Carlos e sai do atelier. Caminha em direção à estufa. Carlos, brabo, segue ela, inconformado com a situação. Seguem discutindo, ele tenta beijá-la à força, ela evita ele novamente. Ele ensaia agarrar Fernanda ainda com mais força mas volta atrás ao perceber que está machucando-a. Ela diz que ele está bêbado, depois que ele curar o porre eles conversam melhor. Ela sai da estufa e Carlos fica lá, sozinho, de pé, em meio às flores coloridas de Fernanda.

À noite, em casa, Carlos segue bebendo. Olha pela janela e vê Jorge e Fernanda sentados como faziam anteriormente. Então, possuído pelo ciúmes e alterado pelo álcool, derruba caixas, quebra pratos e chuta a parede. É quando percebe os pincéis e tintas esparramados pelo chão. Se acalma, recolhe-os do chão e começa a pintar. Por dias, mergulha num transe criativo no qual pinta, desenha, bebe e dorme, não mais na cama, mas no sofá do andar de baixo. A lareira permanece acessa vinte quatro horas por dia. Quadros e rascunhos em papel A3 estão por toda parte da sala. Lá fora, o sol forte inunda o atelier de uma luz branca e acalentadora. Um dia, a tinta acaba e Carlos revira suas caixas a procura de mais. Nessa busca quase doentia por mais tinta, encontra em uma das caixas retratos da sua vida anterior ao acidente. São fotografias recebendo alguns prêmios, viajando com Sofia, inaugurando alguma obra. Olha para aquilo com desdenho e loucura. Então, joga tudo contra a parede, despedaçando os porta-retratos. No final, sozinho, de pé, no meio daquela bagunça, olha para a janela e se vê refletido, em preto e branco, no vidro. Barbudo, cabeludo, maltrapilho, em meio aquele universo que criou para si. Se deixa cair no mesmo sofá onde vem dormindo a dias e chora.

O chuveiro é aberto, Carlos entra e deixa a água correr por seu cabelo ensebado, molhar seu rosto sujo de tinta e dias sem banho. Só depois do banho se percebe, agora no espelho do banheiro, um homem acabado. Em escala de cinza, presta atenção a cada detalhe do seu rosto envelhecido, sua pele enrugada, assim como a intensidade do preto que envolve seus olhos. As olheiras escuras e marcadas contrastam com a barba grisalha. Pega um barbeador que está sobre a pia e faz menção de se barbear, no entanto, desiste antes de começar. Sai do banheiro, enrolado em uma toalha.

Na varanda da casa de Jorge, Carlos chega para conversar. Diz que faz tempo que não falam e que ficou sem vinho. E sem tinta. Jorge diz que tem um vinho e chama Fernanda para pegar para eles. Fernanda faz isso, sempre encarando Carlos que, por sua vez, sempre que ela se aproxima, acaricia seu braço e tenta pegar sua mão. Jorge a convida para sentar junto com eles, diz que podem conversar à três. Fernanda diz que tem o que fazer na estufa e sai. Jorge e Carlos ficam bebendo, em silêncio. Apesar do banho, Carlos segue bêbado, com aspecto sujo e desnorteado. Jorge quebra o silêncio e diz que sabe o que está acontecendo. No início não se preocupava com isso, até achava bom, pois ele não consegue mais agradar satisfatoriamente a mulher, “se é que tu me entendes”. Já era um velho quando se conheceram e, agora, cada dia a mais sobre a Terra é algo a ser comemorado. Entende que ela precisa encontrar satisfação sexual. Mas diz que percebeu que tudo se alterou demais e que não quer mais isso. Fernanda não está feliz. Então, pede para Carlos sair. Superados alguns longos segundos de silêncio, Carlos se levanta. Concorda com Jorge e diz que vai permanecer no seu chalé, sem mais molestá-los. Mas, então, Jorge reforça que ele não entendeu bem. Jorge quer que ele vá embora, volte para a capital, “já estás aqui há mais tempo do que deverias, quase todo o inverno”. Diz para ele aproveitar a primavera e se transformar também. E deixa-los em paz, naquele pequeno universo que sempre lhes foi suficiente. Carlos pergunta como ele sabe de tudo isso, afinal, é cego. Jorge ri e, para surpresa de Carlos, revela que Fernanda sempre lhe contou tudo. Descreveu cada momento, cada transa, cada detalhe. Até alguns dias atrás quando “foi, justamente, o momento que eu percebi que era a hora de acabar com tudo isso. É hora de ir embora, meu caro pintor”. Jorge se vira e olha para Carlos nos olhos, como se o estivesse encarando. Carlos sai e caminha em direção ao atelier. Jorge permanece lá, sentado, e bebe mais um gole do vinho antes de acender outro cigarro.

Ao se aproximar do atelier, Carlos vê Fernanda na estufa e vai até lá tirar satisfação. Perguntar porque ela contou tudo ao Jorge. Fernanda diz que ele está louco, que ela nunca contou nada para marido. Carlos chama ela de mentirosa. Eles discutem, Fernanda sai em direção ao mato. Carlos vai para o atelier mas, ansioso, não consegue se acalmar. Olha para os quadros, quase todos tematizam a história dele naquele lugar e com aquelas pessoas. Fernanda, Jorge, ele, a casa, a chuva, os morros, a cerração, o frio, o álcool, a vila, a culpa, a confusão das cores e da vida dele, tudo está, da forma mais confusa possível, representado naqueles quadros. Carlos encontra uma garrafa de brandy e bebe com intensidade. Decide sair e vai em direção à trilha do mato, atrás de Fernanda. Enxerga ela de longe, tenta alcançá-la e, então, percebe que ela entra em uma casa isolada e abandonada. Jorge decide esperar. Está com a garrafa de brandy, senta-se lá e fica a beber enquanto aguarda por Fernanda. Lá dentro permanece por horas, enquanto Carlos se molha, na chuva, ao mesmo tempo que vai virando todo o líquido daquela garrafa. A chuva finalmente passa e o céu se abre, revelando um lindo entardecer. A intensidade das cores daquele pôr-do-sol, através dos olhos de Carlos, lembra mais uma explosão nuclear. Só então Fernanda sai da casa e volta para a trilha. Carlos a segue e ela percebe que estar sendo vigiada. Então, assustada, começa a caminhar mais rápido. Carlos faz o mesmo, no encalço dela. Já está bastante escuro dentro do mato. Então, Carlos a alcança, “sou eu Fernanda, espera, preciso falar contigo”. Fernanda fica muito braba, enquanto ainda respira ofegante. Ele tenta se aproximar, ela o repele. Ela diz que ele está completamente alterado. Diz que ele precisa ir embora, para o bem dele próprio. Ele diz que a ama, que só vai embora se ela for com ele. Ele pergunta que casa era aquela, quem mora lá? Ela diz que não interessa. Ele insiste, quer saber. Ele pede para ela ficar com ele. Fernanda diz que tem nojo dele. Isso deixa Carlos nervoso, fora de si, então, ele a joga no chão. Logo se arrepende, se abaixa e pede perdão, começa a chorar. Fernanda está muito braba, se levanta e se limpa como dá enquanto o chama de covarde. Diz que ele segue sendo o artista medíocre venerado pelos amiguinhos de grana mas que, no fundo, sabe que é um fracassado. Fernanda é bastante ofensiva, como nunca foi. E então para de falar. Carlos, ajoelhado no chão, apenas chora baixo, como uma criança abandonada, murmurando palavras incompreensíveis. Fernanda sente pena dele, se acalma e conta que aquela casa é de uma curandeira da região. Que foi lá buscar um chá, para abortar o filho deles. Carlos se surpreende, olha para ela e pergunta o motivo. Fernanda responde com uma pergunta, “como vou ter um filho teu? Será que já não tenho problemas suficientes? Só faltaria, agora, ser a puta da vila. E o meu filho um bastardo”. Diz que vai cortar o mal pela raiz, que não quer mais uma pessoa negra nesse mundo para viver o racismo que ela viveu. “Ele não merece e eu não tenho esse direito”. Diz que o melhor a fazer é acabar com isso de uma vez e ir embora, se libertar. Carlos para de chorar e vai pra cima dela, implora que não. Deita ela no chão e a força a beijá-lo. Então, Fernanda faz um movimento que deixa Carlos embaixo dela e ela por cima. Olha fundo naqueles olhos que só enxergam cinza, sorri maliciosamente e desliza sua mão pelo corpo dele até chegar na cintura, abre a calça, abaixa a cueca e o acaricia para que fique excitado. Então, abre as pernas e se senta em cima dele, deixando que ele a penetre. Ela aproveita cada segundo daquele momento. Ele também, num misto de tesão e dor. Os dois gozam juntos, sem se beijarem uma única vez, mas de uma forma muito intensa. Fernanda se levanta, arruma a saia, puxa a blusa para baixo e, com Carlos ainda no chão, olha de cima para baixo e diz que foi a última vez. Vai embora caminhando e Carlos fica lá, inerte, sob a chuva que volta a cair sobre seu corpo seminu. Mais tarde, em casa, Carlos escuta uma discussão entre Jorge e Fernanda. Fica ansioso, sem saber se deve ir até a casa deles e se envolver na briga ou permanecer ali. Está muito cansado, exausto da bebedeira e da caminhada e, então, pega no sono. De manhã, acorda com o barulho de um carro. Olha pela janela e vê que é um taxi. Fernanda sai de casa de mala, às pressas. Carlos ainda tenta fazer algo, mas ainda está tão bêbado que tropeça ao tentar levantar. Apaga novamente, no chão do chalé. Tudo fica preto.

Novamente o som de um carro acorda Carlos. Ele abre os olhos e enxerga o chão da sala. Passos de sapatos de mulher caminham na direção da sua porta. Carlos pode perceber a sombra pela fresta da porta. Ela é aberta. É Sofia. Entra no chalé e o vê no chão, aos seus pés. Ajuda-o a levantar. Ela olha ao redor do atelier e se espanta com o que percebe. São vários quadros pintados com cores que não combinam, mas que expressam um sentimento de dor, confusão e profunda angústia. São rostos de Fernanda, cenas dela e de Carlos, apenas de Carlos e Jorge. Autorretratos de Carlos, enquadrado por uma pequena janela que reflete morros muito altos. Enfim, apesar da confusão das cores, são quadros tocantes, belos e potentes. Sofia está estarrecida. “Carlos, quantos quadros maravilhosos”. Então Carlos olha para ela e pergunta porque está ali. Sofia explica que bateu forte várias vezes, mas ele não abria. A porta não estava chaveada… Sofia complementa e diz que Fernanda ligou, avisou que havia saído de casa, que ela precisava vir resgatá-lo. De repente, escutam um tiro. Sofia e Carlos correm para fora, atravessam o pátio entre o chalé e a varanda da casa grande e encontram Jorge morto, com um tiro no peito. No seu colo, aberto e ensanguentado, um livro de Horácio Quiroga. Carlos perde as forças e se deixa sentar na escada que leva para a varanda enquanto Sofia liga para a polícia. Volta a chover, a água molha Carlos que não liga, está petrificado pela cena que acabara de ver. Sofia permanece de pé entre o corpo de Jorge, sentado na sua cadeira e o marido, sentado na escada.

A imagem, em preto e branco, de um autorretrato de Carlos, amarrado por uma camisa de força, preso dentro de uma sala toda branca, chama a atenção em meio a uma grande galeria. Carlos está sozinho, de pé, entre seus vários quadros. Ele encara a si próprio no autorretrato que abre a exposição. Sofia chega e se aproxima dele, pergunta se ele está pronto, ele diz que sim, sem demonstrar muito convencimento. Ela percebe e entrega a ele um jornal através do qual é possível ler a manchete do Caderno de Cultura: “o renascimento de Carlos Rocha tem dia e hora marcada”. Então, Sofia caminha até a janela, que está aberta, e olha a Praça da Alfândega, em Porto Alegre, no final da tarde. Vê várias pessoas chegando para a inauguração da mais nova exposição de Carlos. Alguns repórteres também se aproximam do prédio. É o MARGS – Museu de Arte Moderna do Rio Grande do Sul. A paisagem da praça, vista pelo ponto de vista de Carlos, lembra um antigo filme preto e branco. No entanto, é primavera e os Jacarandás e Ipês estão floridos. O salão começa a encher. Pessoas da imprensa falam com Carlos, fotografando-o e pedindo entrevistas. Algumas pessoas comentam com Sofia sobre a incrível trajetória do artista. Uma repórter já chega com o microfone na mão, gravando e apresentando Carlos como o “pintor daltônico”. Ele apenas responde as perguntas monossilabicamente enquanto olha para os lado. Apesar da badalação e dos elogios das pessoas e críticos, Carlos se resigna a ficar no canto do salão, próximo à janela. Observa o vai-e-vem cinza do Centro da cidade. Então, entre as pessoas na exposição, percebe Fernanda. Ela olha para ele, os dois se encaram com certa distância. Os jornalistas seguem com suas perguntas, pressionando Carlos por respostas. Pessoas também passam por entre eles. Confusão. Então, por um instante, Carlos percebe que Fernanda está grávida. Ela acaricia a barriga, olha para ele e sai caminhando, demonstrando, no seu caminhar, a segurança de uma mulher livre. Carlos permanece lá, sem ação, amassado pelas pessoas contra a parede. Pela janela, ainda consegue ver, rapidamente, Fernanda atravessar a Praça da Alfândega. Grávida, entra num taxi estacionado e vai embora.

Para onde vamos, moça”, pergunta o taxista.

Para o aeroporto”, responde Fernanda.

O taxi desaparece no trânsito intenso do final de tarde da capital enquanto o sol se despede nas águas do Guaíba, destacando ainda mais as intensas cores da primavera gaúcha.

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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