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MAR ABERTO | NORDESTE

por Boca Migotto

Viajar, chega ser clichê dizer isso, é transformador. E nem falo de uma viagem longa. Um passeio descompromissado no bairro vizinho, uma esticada rápida até o litoral norte gaúcho, uma visita pelas cidades próximas num domingo de sol, se, de olhos bem abertos, muitas vezes pode ser mais revelador e transformador que atravessar o planeta.

Agora, obviamente, quanto mais diversa e diferente for a cultura visitada, maior será o impacto e, consequentemente, a reflexão possível a partir desse contato. Esta, acredito, é a palavra: reflexão. Toda experiência é válida. Mas, assim como ler um livro, assistir um filme, aprender uma nova língua, viajar vale a pena, mesmo, quando nos proporciona refletirmos sobre seus encontros e desencontros.

É possível ler um livro sem muito pensar sobre o que se está lendo, é possível assistir um blockbuster para, justamente, desligar-se e em nada pensar ao longo do filme e, naturalmente, é possível aprender uma nova língua sem se dar conta sobre o quanto esta está associada a algo muito maior que uma simples construção frasal. No entanto, é quando aproximamos a prática da reflexão que algo novo surge e contribui para que nos transformemos como seres humanos. Nesse sentido, deixando a leitura, a cinefilia e os idiomas de lado, e focando nos deslocamentos físicos nesse mundo cada vez mais virtual, penso que há duas (pelo menos duas) formas básicas de conhecer outros lugares. Novamente, independentemente de para onde estamos indo.

A primeira forma é o turismo de massa. Embora raso, não deixa de ser legal. Afinal, viajar sempre é bom. Mas, admitamos, o turismo de massa nos joga para dentro de um padrão de viagem formatado e pré-definido o qual pouco nos permite surpresas genuínas. Pior, esse turismo, além de pouco revelar sobre a cultura que visitamos, é, também, predatório. Trata-se de um turismo que, geralmente, ocorre através de excursões, com milhares de pessoas desembarcando ao mesmo tempo em um único lugar, entrando e saindo de estabelecimentos credenciados, para consumir produtos, muitas vezes vendidos como artesanato local mas produzidos a quilômetros de distância. Esse turismo não me interessa e dele fujo como o diabo da cruz.

A outra forma de viajar, e que me agrada muito mais, busca justamente romper, minimamente que seja, com esse turismo enlatado. É o turismo do viajante. Viajar por conta e risco pode ser mais trabalhoso, menos confortável e até render algumas surpresas desagradáveis. No entanto, tem suas vantagens pois permite que façamos o nosso próprio roteiro, visitemos lugares que estão fora do circuito turístico, tenhamos tempo para conversar com os moradores do local e, assim, possamos aprender sobre as diferentes formas destas pessoas, a partir do seu meio ambiente, perceberem o mundo. É justamente desse contato que surge a reflexão que vai nos fazer retornar para casa diferentes de quando saímos. E ai fica a pergunta, por que viajar se não é para voltar um pouco diferente?

Para isso, no entanto, os livros que lemos na vida, os filmes que assistimos, as línguas que estudamos, e tantas outras coisas que vivemos no nosso dia-a-dia são fundamentais como parâmetro para construirmos essa reflexão que passa, ainda, pela capacidade de não julgar os hábitos e a cultura visitados. Um leitor de Jorge Amado perceberá a Bahia – pelo bem e pelo mal – muito diferente de um leitor de Érico Verissimo ou de um não leitor. Aliás, em movimento ou parados, é a leitura que nos dá a capacidade de interpretação do mundo. Portanto, viajar é, também, ler. Parece cansativo, alguns dirão. Melhor mesmo é pagar por um pacote turístico, chegar no destino com o hotel reservado, ter um guia que nos leve pela mão para aquilo que realmente nos importa, sem perda de tempo, e sem se preocupar com nada mais além do protetor solar, de algumas fotos para postar no Instagram e alguns artesanatos na mala. Pode ser, e embora não concorde com esse tipo de turismo, também não julgo aqueles que preferem essa opção. Mas, convenhamos, a vida também é – e permite – muito mais que isso.

Quem me acompanha pelo Instagram e Facebook – sim, também eu posto fotos das minhas viagens – já sabe que recentemente voltamos de uma viagem pelo Nordeste. Ao longo da minha já não tão curta existência já estive em Alagoas, Bahia, Pernambuco e Paraíba. Sempre viajando pela região litorânea embora, algumas vezes, por conta dos deslocamentos, tenha entrado um pouco mais no Nordeste profundo.

É pouco. Gostaria de conhecer mais e melhor essa região única, habitada por um povo singular, extremamente rica culturalmente e absolutamente linda na sua diversidade natural. E, nunca é demais lembrar – inclusive ao deputado de Caxias do Sul, Mauricio Marcon –, berço da construção do Brasil. Foi lá onde tudo começou, portanto, visitar o Nordeste é, também, uma forma de retorno ao útero materno, parecido com uma viagem a Portugal, para um brasileiro, ou para o Norte da Itália, para um descendente de italianos – ironias a parte, imagino que lá, sim, o deputado Marcon se sentiriria em casa.

O Nordeste, reitero, também tem esse poder terapêutico. É como fazer terapia vivendo. Como brasileiro, é impossível passar ileso por uma viagem ao Nordeste, onde tudo começou, sem que nos reconheçamos ainda mais brasileiros. Principalmente se a viagem é temperada com um ingrediente fundamental para sua compreensão, o tempo. Por isso, decidimos alugar um carro – bem baratinho, pequeno e até um tanto desconfortável, mas eficaz – para atravessar três estados. Com tempo. O nosso tempo.

Iniciamos a viagem por São Luís do Maranhão, seguimos para o Ceará e, no meio destes dois estados – necessariamente – atravessamos e paramos no Piauí. Este é o tipo de viagem que mais me seduz. Se pudesse, faria isso pela África, pela América Latina, pela transiberiana, pelo agreste nordestino, pela Europa toda, até pelos Estados Unidos. Já fiz isso pela Argentina – rendeu até um livro – pelo Chile, pelo Uruguai, pela França, Espanha e Portugal, por Minas Gerais e pelo Rio Grande do Sul. É pouco, dirão alguns. E, realmente, sempre é. É muito, dirão outros. Não, não é. É um privilégio? Sempre é um privilégio poder viajar. E viajar com tempo para mergulhar em novas culturas é mais que um privilégio. É um diferencial que o dinheiro não paga. Não foi diferente dessa vez quando percorremos apenas uma parte pequena desses três estados em doze dias. E, desta vez, com um detalhe totalmente novo para mim: a presença contagiante do meu enteado, Arthur.

O piá, como o chamamos carinhosamente, já viajou conosco outras vezes. E que baita parceiro ele é. Com ele já atravessamos o Uruguai e cortamos boa parte de Santa Catarina. No entanto, na primeira estávamos em um lugar que não falava a mesma língua e, pelo estado vizinho foram viagens relativamente curtas e rápidas. Dessa vez não. Dessa vez o Arthur já estava com oito anos – fez nove dia 3 de fevereiro – e podendo se comunicar sozinho, em português, sem muito depender de nós. E como o piá se revelou um viajante observador e interessado nas diferenças culturais. Aliás, ele mesmo, branco que é, se percebeu diferente. E se indignou, inclusive, ao se dar conta que, lá, ele era uma exceção. Todos o chamavam de “francês”. E foi tão educativo. Se perceber fora do padrão, e perceber que existem lugares e pessoas diferentes daquele nosso pequeno mundo programado é revelador. Me impressionou muito como algumas coisas, para nós, adultos, de certa forma irrelevantes, para ele eram surpreendentes. Ou o contrário, nuances que até esperava, dele, uma reação à altura daquilo que eu imaginava mas que, na verdade, não lhe chamavam muito a atenção. Entre um e outro, incontáveis percepções e diálogos a respeito de tanta novidade que se apresentava ao olhar quase virgem de uma criança do outro lado de um mesmo país gigante. “Aqui eu não sou brasileiro”, disse ele, certo dia. Uma afirmação que carrega uma porrada de reflexão. Imagino o quanto a cabecinha dele girava tentando compreender aquilo tudo. Mas voltemos à viagem.

A primeira impressão, impossível não enxergar, é a riqueza do patrimônio arquitetônico de São Luís, o que garante, inclusive, o título de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Patrimônio Mundial da Humanidade, pela UNESCO.

São aproximadamente 3.500 edificações de grande valor histórico e artístico que ajudam a contar a colonização portuguesa e açoriana no Nordeste. Lembrando que São Luís foi fundada, na verdade, por franceses, além de ter tido algumas intervenções – para não dizer invasões – de holandeses. Apesar de percebermos um esforço de restauro da arquitetura que forma o chamado Centro Histórico, infelizmente, também chama a atenção o lamentável estado de depreciação da grande maioria dos prédios. Afinal, reforçando, estamos falando de milhares de edificações em um país que, historicamente, não valoriza a preservação da sua própria história*.

Por isso, lamentavelmente, não deixa de ser normal ver paredes caindo, janelas lacradas e prédios de 300 anos desabando a olhos vistos. Entretanto, a riqueza desse patrimônio é tamanha que, muitas vezes, e a despeito das pessoas estarem falando português ao lado, tínhamos a sensação de estar em Cartajena, na Colômbia, ou Havana, em Cuba. E quem conhece essas duas cidades sabe bem do que estou falando. O Brasil é tão impressionantemente diverso que a sensação, muitas vezes, era de realmente estar em outro país. Já o restauro, que é bem diferente e exige muito mais que uma simples reforma, demanda autorização e acompanhamento do IPHAN. Isso, embora necessário, obviamente faz do processo de recuperação dos imóveis algo ainda mais caro e burocrático, sem mencionar que a recuperação desse tipo de imóvel sempre carrega outras nuances a serem observadas. Portanto, para justificar o investimento necessário na recuperação dos prédios, e também para que essa recuperação se perpetue, é preciso dar, ao imóvel, uma funcionalidade, Caso contrário, rapidamente, na primeira telha quebrada todo o esforço e investimento se perde numa infiltração que se transforma em uma deterioração generalizada e que vai, com o tempo, danificar novamente toda a estrutura do prédio. Para tentar evitar isso, geralmente, a edificação é direcionado ao comércio, o que lhe tira as características originais como habitação mas lhe garante uma sustentação econômica. É uma equação difícil e que provoca inúmeros debates entre os especialistas em preservação patrimonial**.

Saindo do Maranhão em direção ao Piauí, no entanto, chama a atenção o quanto o primeiro estado é mais precário em relação ao segundo. Os três estados, na verdade, evidenciam o abandono da classe política e oligárquica que, há 500 anos, domina e explora aquela região. A pobreza da população e o descuido com as coisas públicas é evidente e quanto a isso não há disfarce. No entanto, parece que a herança da família Sarney, no Maranhão, consegue evidenciar tais problemas mesmo quando comparadas ao vizinho Piauí que, por sua vez, nos surpreendeu positivamente em inúmeros aspectos. Talvez isso tenha ocorrido, também, pois o Piauí é um destino pouco procurado. Afinal, quantas pessoas já lhe disseram “compramos uma passagem para o Piauí?”. Quantas vezes você cogitou visitar o Piauí quando pensou em conhecer o Nordeste? O fato do Piauí ser o único estado nordestino a não ter uma capital litorânea – muitos interesses por trás disso – certamente contribuiu com esse desinteresse. Mesmo assim, cidades como Parnaíba, além do próprio litoral piauiense merecem um olhar mais generoso.

Por fim, saindo da linda – e surpreendente – praia de Macapá, em Luís Correa, viajamos em direção ao Ceará. Essa é uma rota turística, criada pelo Ministério do Turismo, e batizada de “Rota das Emoções”. Nós realizamos parte dela, de São Luís até Jericoacoara para, depois, retornarmos até São Luís, de onde sairia nosso voo de volta para Porto Alegre. No entanto, se melhor planejado, poderíamos ter comprado nosso retorno por Fortaleza, o que nos permitiria conhecer toda a costa entre essas duas capitais. Fica a dica. Ao entrarmos no Ceará, um estado bem mais rico em relação aos dois primeiros, e, portanto, muito melhor estruturado para o turismo, as estradas melhoram, a população local está mais preparada para o turismo – e isso carrega coisas positivas mas também negativas – e, consequentemente, o sabor de aventura vai diminuindo. Tudo vai ficando mais previsível e, claro, também mais caro. Se em uma cidade ainda em desenvolvimento turístico como Santo Amaro, no Maranhão, uma refeição a base de peixe e camarão, para três pessoas, custava em média cem reais, em Jericoacoara, a mesma refeição, bem menos generosa, poderia chegar a duzentos, trezentos ou até mais, conforme a “sofisticação” do restaurante. Mas até em Jericoacoara há alternativas mais acessíveis.

Essa viagem é extremamente rica também por isso. Em uma única rota turística é possível mergulhar no patrimônio arquitetônico e cultural de uma grande capital nordestina, descobrir o terceiro maior delta do mundo – o Delta das Américas, ou Delta do Parnaíba –, mergulhar na simplicidade de lugares ainda quase originais, como Santo Amaro, surpreender-se com o Piauí, viver uma experiência de turismo democrático como o de Jericoacoara, que consegue, ainda, aproximar suas características de vila – pescadores e hippies – com a exploração turística voltada para as elites e, por fim, aventurar-se pelo delta a partir de uma cidade média, de ainda pouco turismo, como Tutóia. Essa variedade toda de experiências, nenhuma empresa turística oferece. Para vive-la, somente encarando a estrada por conta e risco.

De qualquer forma, algumas coisas são inerentes aos três estados e, acredito, pelo pouco que conheço, leio e ouço falar, a todo o Nordeste. Primeiro, o quanto as pessoas são gentis e educadas no trato com os demais. Em praticamente todos os lugares, na relação com praticamente todas as pessoas, fomos sempre muito bem tratados. Exceções, claro, há, mas também não é surpresa que a má vontade de alguns poucos ocorreu, justamente, na praia mais badalada do roteiro, Jericoacoara. Mesmo assim, nada demais. Já fui muito mais mal tratado, ou esnobado, nas vinícolas da Serra Gaúcha, para citar um exemplo que faz parte da minha realidade. Outra característica, e que não pode deixar de ser citada, embora seja óbvia a todos, é a beleza natural das praias e parques naturais. Em contraste a tamanha boniteza, no entanto, o primeiro contato com as cidades-sedes desses lugares paradisíacos é, muitas vezes, impactante.

Não gostaria de dizer isso, mas também não podemos negar que a pobreza é latente. Não no sentido de vermos pessoas passando fome, algo que ocorre no Sertão, segundo relatos de pessoas com quem falei ao longo da viagem, mas é evidente que as populações dessas cidades também sofrem, vitimas do histórico descaso político e social do qual todo o Brasil, mas sobretudo o Norte e o Nordeste, convivem desde que foi implantada a primeira capitania hereditária.

Aliás, impossível não refletir, enquanto dirigimos longas distâncias, que tudo aquilo por onde estávamos passando, em algum momento da nossa história, pertenceu a apenas uma única pessoa. Tão radical quanto a variação das marés das praias nordestinas é a desigualdade social. Se hoje o território está mais fracionado, não deixa de ser verdade, também, que a lógica implantada desde o principio da colonização se mantem presente na herança hereditária desses lugares. A falta de perspectivas é preenchida por um cotidiano cansado, a observar os carros dos turistas que vão e vem sem nenhuma mudança, para melhor, proporem ao Nordeste. Sem constrangimento algum, nas cidades, mansões e caminhonetes importadas convivem com casebres sem estrutura alguma, construídos em taipa leve ou tijolos de seis furos sem reboco. Por outro lado, se não há industrialização, também não há poluição. Salvo próximo às grandes cidades – no caso dessa viagem, São Luís e Parnaíba – os rios pelos quais passamos são limpos e utilizados pela população – e por nós – para um banho restaurador.

Se isso nos é explicitado através de um simples olhar, também não precisa muita conversa para perceber que a população local segue explorada pela mesma gente de sempre. Os mesmo sobrenomes ou origens. Brasileiros ou estrangeiros. Em Santo Amaro, por exemplo, escolhida por nós como base para visitarmos os Lençóis Maranhenses por, justamente, ainda ser a menos turística das três – as outras duas cidades que dão ingresso aos Lençóis são Atins e Barreirinhas – aos poucos vai sendo comprada por forasteiros milionários. A pousada onde ficamos, por exemplo, é de propriedade de uma paulistana que, via Booking e Airbnb, administra a locação à distância enquanto mantém, lá, alguns poucos funcionários para as tarefas cotidianas. Aos poucos, descobrimos, não apenas no Maranhão mas em todo o roteiro, e principalmente em Jericoacoara, que os grandes investimentos são de europeus. Italianos, ingleses, espanhóis, alemães e franceses, os mesmos de sempre já faz quinhentos anos. Dessa forma, em no máximo 20 anos, lugares ainda exóticos ou originais como Santo Amaro e Tutóia serão completamente transformados pelos dólares e euros que compram a tudo e a todos.

Alguns dirão, “que bom”, afinal, o turismo faz a economia local girar. Por um lado é verdade. A economia gira. No entanto, está longe deste turismo de massa ser uma economia ecológica ou socialmente justa. Ao contrário, o turismo de massa é extremamente danoso para as regiões visitadas e, em especial, para os mais pobres que, como sempre, recebem apenas as migalhas desse dito desenvolvimento. Para visitar os Lençóis, por exemplo, é preciso alugar passeios em veículos 4×4 credenciados pelo IBAMA. Quem dirige as caminhonetes ou os buguis são os nativos. Muitas vezes, pescadores que trocaram o mar pelas estradas e trilhas.

Principalmente em relação às caminhonetes, a ingenuidade que pode, num primeiro momento nos fazer acreditar que estas pertencem aos mesmos nativos que as estão dirigindo, logo se desfaz numa rápida conversa. São todas propriedade de um “investidor” forasteiro para quem eles trabalham de sol a sol. Alguns “bugueiros” são a exceção. Mesmo assim, eles mesmos admitem não saber até quando, pois a pressão econômica sobre o trabalho que eles oferecem, os leva a cada vez mais lucrarem menos. Individualmente, precisam resistir aos investidores que chegam com uma frota de buguis novos oferecendo passeios a preços impossíveis de competir ou à regulamentação sobre o turismo que, a título de preservar o meio ambiente, impõem taxas abusivas sobre os deslocamentos pelas praias e dunas. Da mesma forma, não tardará para que a rua principal de Santo Amaro, hoje formada por um comércio local que atende as demandas dos habitantes originários, logo se transforme em um centrinho gourmetizado, alugado por valores estratosféricos para quem quiser abrir – e puder pagar por – uma lojinha de artesanato ou um restaurante de padrão internacional. Quando isso ocorrer, os nativos que não se enquadrarem aos novos tempos, como massa de obra barata para os investidores, serão obrigados a migrarem dali para reconstruírem suas vidas.

Demorou, mas finalmente compreendi que por traz disso está, também, a explicação para tantos nordestinos, nessas localidades, apoiarem Bolsonaro. Me impressionava o fato de falar com os motoristas das caminhonetes ou dos buguis, assim como com os funcionários das pousadas ou, até, com ambulantes que vendiam artesanato, ofereciam massagens ou vendiam comida de rua e descobrir que vários apoiavam o ex-Presidente. Mas o Nordeste não era majoritariamente lulista? Realmente, Lula é uma entidade por lá. Contudo, esses trabalhadores que vivem do turismo, nos principais pontos turísticos, convivem e se referenciam, justamente, nos “donos desse negócio”. Os proprietários das pousadas e das agências de turismo, os chefes dos restaurantes mais badalados, conforme citado anteriormente, são todos de fora do Nordeste. Principalmente – mas não só – de São Paulo. Praticamente todos bolsonaristas. Logo, a influência dos “chefes” sobre seus empregados ou dependentes, no turismo, é parecida com a do fazendeiro sobre seus peões, no agronegócio, ou dos empresários sobre seus funcionários, nas fábricas. De certa forma, não deixa de ser a mesma lógica do coronelismo que marcou boa parte da história do Nordeste e que, ao mesmo tempo, é responsável pela eterna pobreza da qual a região é alvo de tantas criticas. Eles não tem vontade de trabalhar, dizem os “sudestinos” que desconhecem a história de exploração sobre esse povo. Se alguém trabalhou nesse país, inclusive sem nada receber em troca, foram os nordestinos. Muitos, inclusive, como escravos.

Mas viremos a página para que esse relato turístico não se transforme em um manifesto comunista. Nessa viagem nos chamou muito a atenção o Delta das Américas. Localizado entre o Maranhão e o Ceará, tendo como principal rio o Parnaíba, o delta só perde, em grandiosidade, para o Delta do Nilo, na África e o Delta de Mekong, na Ásia.

Trata-se de um exuberante santuário ecológico que se ramifica, a partir do rio Parnaíba, para um região de quase 2.700 quilômetro quadrados. Além da cidade de Parnaíba, outras menores como Tutóia, Paulinho Neves, Água Doce do Maranhão e Araioses são os principais municípios banhados pelo delta. Destas, conhecemos Tutóia, onde ficamos dois dias para, justamente, realizar o passeio de lancha que nos leva para dentro de algumas das suas mais de setenta ilhas. Mangues formados pela variação extrema das marés e do encontro das águas doces do delta com a água salgada do mar, bem como uma fauna e uma flora diversificadíssima, além de praias paradisíacas, são as marcas desse passeio que dura um dia inteiro. Mas mergulhar na história do delta, marcado pela colonização portuguesa e a produção de charque, o que inclusive muito nos leva a lembrar Pelotas – ironia? – demanda uma visita ao Museu do Mar. E vale a pena. Tanto pelo museu em si, muito bem organizado e num tamanho adequado para a cidade e para o tema, como também para visitar o cais de Parnaíba, onde está instalado o museu, totalmente restaurado com recursos públicos. Mais um exemplo que poderia inspirar Porto Alegre caso, obviamente, os interesses imobiliários não dominassem a pauta do restauro do Cais Mauá.

Por fim, é preciso destacar São Luís do Maranhão. Apesar de termos chegado por ela, por segurança caso acontecesse algo com o carro ao longo da viagem, decidimos conhece-la somente na volta. Além de uma caminhada pelo Centro Histórico – e para os fotógrafos, é um deleite – vale visitar o Mercado Central, frequentado pela população local e onde é possível comprar artesanato genuíno a um preço justo, e o Mercado da Tulhas, um pouco mais turístico, onde é possível comprar, além de artesanato, as comidas e bebidas tradicionais da gastronomia local. No entanto, o mais legal do Mercado das Tulhas foi conversar com as pessoas. Dá vontade de abrir mais uma cerveja, pedir mais uma porção de camarão, só para seguir ouvindo histórias. Aliás, um dos principais motivos que justificam o meu tipo de turismo preferido. O ponto fraco de São Luís – é claro que há – são os museus. Conseguimos visitar apenas o Museu do Reggae e o Museu de História Natural, uma vez que o Museu Histórico e Artístico estava fechado, o que também nos desmotivou a tentar o Teatro Arthur Azevedo, e o passeio até Alcântara – altamente recomendado por conta da sua característica arquitetônica – se mostrou impossível por conta da variação da maré.

Apesar dessas pequenas frustrações, foi uma viagem intensa e variada. Envolveu deslocamentos, uma cidade histórica, patrimônio arquitetônico, natureza diversa, muitos banhos de mar e de lagoas, além da culinária e da generosidade nordestina temperando cada instante dessas férias. Segundo o New York Times – não que isso seja grande coisa, mas sempre é um referencia para aqueles que levam isso a sério – os Lençóis Maranhenses, junto a Manaus, são os únicos dois destino turísticos, no Brasil, que figuram entre os principais do mundo. Não desmereceria – e talvez o NYT nem conheça (estou sendo irônico) – as Cataratas do Iguaçu, a cidade de Salvador, São Miguel das Missões, Ouro Preto, a Chapada Diamantina, entre tantos outros destinos inspiradores no Brasil, mas posso confirmar que os Lençóis são, sim, impactantes e não apenas merecem, como devem ser visitados.

Viajar é ampliar horizontes. E, sobretudo, é das diferenças que construímos a tolerância e aprendemos a valorizar nossa história e a nossa cultura. Me parece que pouca coisa é mais urgente, no Brasil de hoje, que justamente ampliarmos a percepção sobre o nosso próprio país. Talvez, conhecendo melhor o Brasil – e os brasileiros – através de um olhar generoso e complacente, seja, justamente, a fórmula para encontrarmos – alguns diriam, reencontrarmos – nossa essência como povo. Um povo múltiplo, de múltiplas expressões culturais e múltiplas possibilidades, mesmo assim, um mesmo povo, unido em torno de um mesmo sentimento de brasilidade e irmanados através de uma mesma língua rica e tão saborosa quanto a nossa gastronomia. Não é por acaso que os estrangeiros se apaixonam pelo Brasil. Lugares e gentes para conhecermos, nesse continente português, não nos falta. Talvez nos falte um pouco de autoestima. Boa viagem.

* Interessados podem procurar por fotos no meu Facebook, publicadas em um álbum chamado: Nordeste: Maranhão-Piauí-Ceará.

** Fiz um filme chamado Pra ficar na História (2018), que aborda o restauro de prédios antigos através da experiência particular de Henrique Fitarelli, em Garibaldi. Já o indiquei outras vezes, aqui nesse espaço, e o faço novamente. O filme pode ser acessado via Vimeo da Teimoso Filmes.

Crédito das fotos: Boca Migotto

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento está lançando seu novo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado, defendida em 2021. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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