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MAR ABERTO | UM ESTRANGEIRO EM PORTO ALEGRE

por Boca Migotto

No último domingo, 26, Porto Alegre comemorou 251 anos. No dia seguinte, segunda, 27, foi a vez do Cinema Gaúcho comemorar o seu dia, instituído em 2002 através de um projeto de lei do deputado Ronaldo Zulke e sancionado pelo então governador, Olívio Dutra. Claro, ninguém esperaria isso do Ivo “Sartonaro”, aliás, o governador que extinguiu a Secretaria de Cultura e que mandou os professores buscarem seu piso na Tumelero.

Em homenagem à Porto Alegre e ao Cinema Gaúcho, então, publico um capítulo do meu livro, “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, no qual discorro sobre a histórica influência dos estrangeiros – todos os estrangeiros – para nós, gaúchos e porto-alegrenses, e reflito sobre a importância do filme Cão sem dono, dirigido pelos paulistas Beto Brant e Renato Ciasca, para a nossa cinematografia.

O texto abaixo sofreu algumas pequenas alterações para que pudesse ser lido fora do fluxo do livro, no entanto, mantém sua essência que visa relacionar a famosa visita do escritor Albert Camus à capital, com nossa síndrome de vira-lata e a produção cinematográfica gaúcha contemporânea. Espero que gostem e, caso gostem, e queiram ler mais, informo que ainda há alguns livros à venda. Boa leitura.

UM ESTRANGEIRO EM PORTO ALEGRE

Um estrangeiro em Porto Alegre é o título do curta-metragem de Fabiano de Souza, realizado em 1999, o qual retrata, ficcionalmente, a passagem de Albert Camus por Porto Alegre em 9 de agosto de 1949. Camus, o autor do livro “O estrangeiro” (1942), provavelmente, seja o estrangeiro – ele próprio – mais notório a ter pisado as ruas da capital gaúcha. Isso não quer dizer que ele tenha sido o mais famoso – vejam só, até um ex-Beatle e o próprio Papa já deram as caras por aqui –, mas é bem possível que seja o mais significativo. Isso porque o parceiro existencialista de Sartre representa – ou representou – muito bem a relação da cidade consigo mesma. Se Porto Alegre fosse uma pessoa, eu diria que ela sofre daquilo que, na psicologia, é conhecido como “confiança básica”. No senso comum, a cidade precisaria resolver seus problemas de baixa autoestima. Porto Alegre não é uma pessoa, é verdade, mas por pessoas é constituída. Seus habitantes. E são estes que precisam compreender o próprio lugar onde vivem. Não se trata, obviamente, de uma constatação científica, mas, como percebemos através da historiadora Sandra Pesavento, a capital dos gaúchos – e o próprio Rio Grande do Sul – sempre se viu na posição ingrata daquele amigo estranho, diferente, incompreendido, que não é convidado para as festas e que, invariavelmente, até sobre bullying. Ao contrário da autossuficiente Rio de Janeiro, que inclusive se autodenomina a “Cidade Maravilhosa” –, e realmente é (seguirá sendo?) belíssima –, Porto Alegre busca, na opinião dos estrangeiros que por aqui passam – e/ou passaram –, o devido respaldo que possa evidenciar suas qualidades. A opinião dos estrangeiros sempre nos foi muito importante, principalmente se vier acompanhada de elogios. Por isso, a passagem de Camus pela capital foi tão marcante, tanto por conta do que significou recebê-lo, em 1949, quanto descobrir, apenas décadas depois, que as boas impressões, infelizmente, não eram recíprocas ou, pelo menos, aos porto-alegrenses assim pareceu.

Segundo matéria de Zero Hora, de 5 de outubro de 2008, escrita pelo jornalista Ricardo Chaves (2018), a chegada do futuro Prêmio Nobel de Literatura à cidade – ele receberia o prêmio em 1957 – foi acompanhada pelas figuras mais expressivas do meio literário local, além dos mais importantes representantes da alta sociedade gaúcha da época. Segundo a Revista do Globo, número 490, de 3 de setembro de 1949, citada na matéria escrita por Chaves, o autor francófono permaneceu em Porto Alegre por menos de 24 horas antes de seguir viagem para Montevidéu. A visita de Camus à capital gaúcha fazia parte de uma grande missão de intercâmbio cultural por diversos países e cidades da América do Sul. E como não poderia deixar de ser diferente para uma capital provinciana – e colonizada – como a Porto Alegre do final da década de 1940, o escritor estrangeiro foi recebido com os devidos mimos e idolatria característicos. Em função do cinquentenário de morte do escritor argelino, o artigo publicado por Gervásio Rodrigues Neves (2010) aborda a famosa passagem de Albert Camus por Porto Alegre. A partir das suas memórias de estudante secundarista da época, então com 15 anos, Neves conta como foi aquela tarde quando o auditório do Instituto de Artes da UFRGS ficou pequeno devido à quantidade de pessoas que queriam escutar Camus palestrar sobre o tema “A Europa e o crime”. Segundo consta no artigo de Neves publicado no Correio do Povo Camus seria um “[…] filósofo, romancista, dramaturgo e jornalista, um homem significativo, incorporando o espírito da civilização ocidental e, particularmente, da francesa de modo ardente e dinâmico”.

Tão elogiosa quanto a matéria do Correio do Povo foi a apresentação de Érico Veríssimo, feita em francês – obviamente –, na qual destacou a posição intelectual e ética de Camus, expressas nos seus romances anteriores a 1949, como a obra-prima “O estrangeiro” (1942), e o então recém-lançado “A peste” (1947). Nosso principal escritor, em seu discurso publicado no suplemento “Letras e livros” do Correio do Povo de 15 de agosto de 1981, já traduzido do francês, dirigiu-se ao colega de profissão da seguinte forma:

[…] senhor Camus, vós pertenceis a uma idade nova e dramática. Vós sois uma das mais claras, mais belas e corajosas vozes da França de hoje, temperada na forja da Resistência. Vós representais a nossos olhos o homem que, segundo a frase de Matthew Arnold [13], encontra-se dilacerado entre um mundo que agoniza e outro que tenta. É por isso, senhor Camus, que eu quero vos dizer o quanto nós todos somos felizes, esta noite, de vos ter entre nós e, sobretudo, de vos ouvir (NEVES, 2010, p. 3).

Foi assim, nesse clima de cordialidade intelectual e diplomacia provinciana, que se seguiu o dia atípico na pequena capital do Rio Grande do Sul. Após a apresentação de Veríssimo, Camus proferiu sua palestra, seguida de um coquetel com a alta sociedade porto-alegrense e, segundo relatos, distribuiu autógrafos àqueles que arriscaram solicitá-los. Talvez sem nem ao menos ter visto os pontos turísticos da cidade, Camus seguiu no final do dia para Montevidéu, e sua impressão sobre Porto Alegre – naquela época contava com menos de 400 mil habitantes – foi conhecida apenas em 1978, quando da publicação póstuma do seu “Diário de viagem”, no original, Journaux de Voyage. Não deu nem para reclamar pessoalmente com o autor que, ao descrever o Brasil como o país da “indiferença e exaltação”, escreveu o seguinte – e curto – comentário sobre a capital dos gaúchos: “[…] a luz é muito bela, a cidade feia. Apesar dos seus cinco rios […] essas ilhotas de civilização são frequentemente horrendas”. Além disso, não deixou de observar que o auditório onde palestrou não suportava o público presente, “[…] chegando a recusar pessoas”. Tal afirmação é respaldada pelo registro da Revista do Globo, que, na época, destacou “[…] o enorme público que lotou inteiramente o auditório do Instituto de Artes”.

No entanto, não me surpreende que, embora inteiramente ficcionalizado, o dia de Camus proposto pelo cineasta Fabiano de Souza, em seu curta-metagem, encerre, justamente, com um off do ator Nelson Diniz – na pele de Camus – citando as observações pouco elogiosas do escritor sobre Porto Alegre. Faz parte dessa livre adaptação de Fabiano retratar a passagem do escritor franco-argelino pelo Rio Grande do Sul em um inusitado dia de agosto de muito calor. Algo que, inclusive, contraria todos os registros da época, embora, certamente, justifica-se por conta da liberdade poética, contida no curta-metragem, que busca refletir, possivelmente, a escaldante Argélia onde transita o personagem Meursault em “O estrangeiro”. Trata-se de uma ficção e, como tal, mais do que “registrar” fielmente a passagem do escritor por Porto Alegre, pode sugerir que foi devido ao inusitado passeio pelo litoral gaúcho – conforme o curta-metragem – que surgiu a ideia para Camus escrever o seu clássico livro. Nesse caso, teria sido o estrangeiro Camus a registrar o assassinato que ele mesmo cometera em cenário gaúcho – “a maior praia do mundo”. Mesmo assim, chama a atenção o diretor/roteirista reconstruir toda a passagem de Camus pelo Rio Grande do Sul como uma jornada fantástica, para, então, finalizá-la com um único detalhe factual feito sobre a capital dos gaúchos. Como se houvesse a necessidade, dentre tanta fantasia, de sublinhar que o único aspecto real dessa história, que recai sobre Porto Alegre, é, justamente, algo depreciativo. As palavras de Camus sobre nossa capital.

Felizmente – para Camus e para Porto Alegre –, devo dizer que a palestra lotada ocorreu num típico dia frio do inverno gaúcho. Chamo a atenção para isso porque, tenho certeza, a temperatura amena registrada naquele dia certamente preservou o escritor da desagradável experiência de vivenciar uma sufocante jornada de calor porto-alegrense em um auditório repleto de pessoas e, obviamente, por conta da época, sem ar-condicionado. Quanto a isso, não há autoestima que nos redima. Se Camus tivesse vivido algo assim na sua passagem pela capital, certamente esse detalhe não passaria em branco nas suas anotações. As altas temperaturas presentes no curta-metragem de Fabiano, portanto, não acompanharam Camus pela Porto Alegre real da sua passagem. Bem ao contrário disso, afinal, foi justamente o frio daquela tarde de agosto que proporcionou uma observação, digamos, intrigante do autor sobre sua curta estadia na cidade. Como um bom francófono, chamaram a sua atenção os exóticos ponchos – “kapotes” – que protegiam os porto-alegrenses daquele frio invernal.

Tal introdução, construída com base na traumática relação entre Porto Alegre e Albert Camus, o que já foi tema de inúmeras reportagens e artigos acadêmicos, além do próprio curta-metragem de Fabiano de Souza, tem por objetivo propor uma reflexão acerca da influência de outros dois estrangeiros sobre, no caso, o cinema porto-alegrense. Falo de Beto Brant e Renato Ciasca, realizadores paulistas que vieram para Porto Alegre filmar Cão sem dono (Beto Brant e Renato Ciasca, 2007), adaptado do livro “Até o dia em que o cão morreu” (2003), do escritor paulistano radicado no Rio Grande do Sul, Daniel Galera. A produção desse longa-metragem foi mais uma oportunidade de a cidade – nesse caso, o ambiente da produção audiovisual – se ver frente a frente com aquele forasteiro que ao chegar a um lugar necessariamente provocará um inevitável caos. No entanto, contrariamente ao que fez Camus, Brant viveu a cidade, fez amigos e sempre falou bem – até onde se sabe – de Porto Alegre. A partir disso, se construiu uma outra relação entre a cidade – e os porto-alegrenses – e o diretor paulista. Isso porque, quando há uma reciprocidade de sentimentos, a influência do estrangeiro sobre o lugar será maior afinal, como destaquei no início deste texto, nós sempre fomos reféns dos elogios forasteiros. Foi o que aconteceu com Brant, que conquistou os (quase todos) corações e as mentes locais e, por causa disso, suas observações – bem como sua obra – foram mais bem aceitas e assimiladas pelos porto-alegrenses.

Ao mesmo tempo, não estou aqui condicionando a qualidade do filme de Brant e Ciasca à generosidade com a qual ambos trataram a quase sempre carente de elogios, Porto Alegre, mas, uma vez que os paulistas foram – e são – pessoas agradáveis e educadas, também os porto-alegrenses se dispuseram a recebê-los – e receber o resultado do seu trabalho – com mais simpatia. Uma espécie de “gentileza gera gentileza”. Seja como for, a minha pesquisa demonstrou, com base nas entrevistas realizadas, principalmente com os realizadores locais que trabalharam com Brant e Ciasca, que houve um diálogo mútuo entre “estrangeiros e nativos”, o qual gerou, além de gentilezas, um belo filme, boas amizades que perduraram e, sobretudo, influências recíprocas. Sobre isso, o quanto Porto Alegre influenciou – e afetou – Beto Brant e Renato Ciasca não é tão claro, mas não importou muito à pesquisa. No entanto, para nós, o fundamental é tentar compreender o quanto eles – os estrangeiros – influenciaram a produção audiovisual gaúcha.

Nesse sentido, ao longo dos quatro anos de pesquisa, cada vez mais foi ficando evidente que se há, neste ciclo de praticamente 40 anos de produções porto-alegrenses, um ponto de virada, este ocorreu ao longo da realização de Cão sem dono. Entretanto, esse ponto de virada não teria ocorrido se a produção de Cão sem dono tivesse se dado conforme havia sido planejada. Isso porque, segundo as entrevistas realizadas com os ex-sócios da Clube Silêncio – coprodutora porto-alegrense do filme, constituída por Gustavo Spolidoro, Milton do Prado, Fabiano de Souza e Gilson Vargas – e com o próprio Beto Brant, num primeiro momento, a coprodução dessa obra estava pensada para ser realizada com a Casa de Cinema de Porto Alegre. Ao menos, essa era a intenção inicial de Brant e Ciasca, que vieram para Porto Alegre com o objetivo de conversar sobre essa possível parceria.

Segundo Brant, em entrevista concedida a mim, em São Paulo, a relação com os sócios da Casa de Cinema, principalmente Giba Assis Brasil, Ana Luiza Azevedo, Carlos Gerbase e Luciana Tomasi, remetia às suas primeiras participações no Festival de Cinema de Gramado. Tratava-se, portanto, de uma amizade relativamente longa, sólida e também havia uma admiração profissional, sobretudo em relação aos primeiros longas-metragens, realizados em Super-8, nos anos 1980. Conforme relatou Brant, no entanto, ao ser recebido por Nora Goulart, sócia e produtora executiva dos projetos da Casa de Cinema, a percepção de como a coprodução entre eles deveria ocorrer não combinou com o tipo de filme e, consequentemente, com o modo de produção que os diretores paulistas tinham em mente.

Posso estar propondo uma analogia insuficiente sobre tal situação, mas é curioso pensar que uma casa, geralmente, reúne a família e os amigos mais próximos, enquanto um clube, mesmo que privado, está mais aberto a receber novos sócios, novos agregados. Já citei a observação realizada por Gustavo Spolidoro, em um artigo escrito por ele ao CAC, no qual dizia estar muito agradecido à geração da Casa de Cinema por instruí-lo a buscar sua própria “turma”. A paternidade da expressão “cinema de turma”, na verdade, é desconhecida, creio, até pelos próprios protagonistas. No entanto, independentemente de quem seja o pai e a mãe dessa expressão, a “turma”, aqui, significa dizer que em Porto Alegre se faz um cinema coletivo, embora restritivo. Giba Assis Brasil – um dos sócios da Casa de Cinema – também confirma tal característica quando, segundo ele, tratava-se de “[…] um cinema de autores em lugar do cinema de autor, a ‘saudável utopia’, certa vez identificada pelo crítico Antonio Hohlfeldt”. Se pensarmos que “cinema de turma” é o mesmo que trabalhar, sempre que possível, com as mesmas pessoas, essa característica seria ainda anterior à própria Geração Deu pra ti, uma vez que o próprio Teixeirinha repetia os diretores – Pereira Dias ou Milton Barragan – com quem realizava seus filmes, assim como vários atores e técnicos. No entanto, mesmo que Spolidoro e os seus sócios praticassem um “cinema de turma”, me parece que souberam se moldar muito mais facilmente ao modo de produção de Brant e Ciasca e, dessa forma, escancararam as portas do clube aos cineastas “estrangeiros”.

Spolidoro comentou, em um dos seus depoimento para este vos escreve, que Beto Brant, assim como o diretor pernambucano Lírio Ferreira, eram referências importantes para o seu cinema, pois eram expoentes de uma geração de realizadores que estavam propondo novas abordagens para a produção audiovisual brasileira. Baile perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1996) e Os matadores (Beto Brant, 1997), por exemplo, são dois filmes que marcaram a Geração Clube Silêncio não apenas por terem sido realizadas na retomada, mas, essencialmente, por se apresentarem como filmes mais orgânicos, viscerais e, essencialmente, autorais, sobretudo quando comparados com a filmografia brasileira daquele período. Havia, portanto, uma admiração de Spolidoro por Brant e, como este relata, os dois já se conheciam por conta de um encontro inusitado no Centro Técnico Audiovisual (CTAV), no Rio de Janeiro. Brant, por sua vez, disse que tinha pensado em procurar Spolidoro, mas como sua principal referência, ainda da época dos Festivais de Gramado, era Giba Assis Brasil, Carlos Gerbase, Ana Luiza Azevedo e Luciana Tomasi – então, todos sócios da Casa de Cinema, junto com Jorge Furtado e Nora Goulart –, concluiu que o caminho natural seria a própria Casa de Cinema. No entanto, no momento em que ficou claro para o diretor paulista que as filosofias de trabalho não combinariam, decidiu “tomar uma cerveja” – sempre há “uma cerveja” no cinema brasileiro – com Spolidoro e os seus sócios. Nesse encontro, segundo Spolidoro, Brant decidiu que faria a coprodução com a Clube Silêncio, que era uma produtora jovem, formada por jovens e, por isso, mais propícia a experimentar o seu jeito de produzir e filmar. Ao mesmo tempo, para uma produtora recém-criada, coproduzir um filme de um diretor reconhecido nacionalmente, além de significar prestígio e experiência, representaria algum dinheiro extra em caixa. O negócio parecia bom para os dois lados. Dessa forma, Brant e Ciasca optaram por abrir mão da estrutura mais segura e experiente – embora também mais rígida, que viria associada a uma coprodução com a Casa de Cinema – por uma estrutura menor, mas que lhes parecia mais flexível e permitiria maior liberdade de produção.

Nesse momento, se desenha algo essencial para que possamos perceber a grande transição que significou essa decisão de Brant e Ciasca. Para mim, essa escolha pela produtora mais jovem é, simbolicamente, também um marco para a minha própria pesquisa, uma vez que, de certa forma, explicita duas formas antagônicas de se fazer cinema no Rio Grande do Sul. Uma espécie de plot point dessa história. A primeira forma, o modelo tradicional de produção, que vinha sendo praticado com êxito pela Casa de Cinema ao longo de décadas. Um modo de produção que se espelha no jeito estabelecido de se fazer cinema, conforme – mediante as devidas adaptações, claro – acontece com os grandes estúdios. Geralmente, isso significa produções mais caras, equipes maiores, estruturas maiores e mais lentas e, principalmente, um controle maior sobre a produção e os prazos de realização, bem como apostar na verticalização das relações de trabalho. Cão sem dono não teria funcionado se filmado dessa forma, e os diretores paulistas sabiam disso. Brant cita, por exemplo, que eles realizaram praticamente todas as filmagens na sequência do roteiro. Uma loucura que, para ser possível, era necessário coproduzir esse projeto com parceiros que estivessem mais em sintonia com o que os paulistas imaginavam para o filme. Isso passava, necessariamente, pelo modo de produção e pela forma como técnicos e artistas deveriam se relacionar ao longo das filmagens. Brant e Ciasca apostavam em um filme mais experimental no sentido de buscarem uma atuação orgânica que imprimisse, na película, um certo naturalismo, o qual apenas seria possível de alcançar com um relativo improviso. Para isso ocorrer, seria preciso que toda a equipe – técnicos e artistas – envolvida, bem como a coprodutora, entendessem qual era a busca estética dos diretores e, obviamente, apostassem nessa proposta que visava, consequentemente, uma permanente construção coletiva do filme, ancorada na livre possibilidade de se absorver o “incidental”. Esse tipo de cinema não era necessariamente desconhecido no Rio Grande do Sul. Inúmeros curtas-metragens já haviam sido realizados a partir desse modelos de produção, no entanto, agora, o projeto a ser filmado seria um longa. Beto Brant pediu a Spolidoro, produtor executivo do filme, para lhe indicar “não os melhores profissionais, mas os profissionais amigos”. Isso significava que Brant e Ciasca não queriam, na equipe, profissionais que atuassem como operários de uma fábrica, excessivamente burocráticos na sua relação com as filmagens. Era preciso equilibrar o trabalho com a amizade.

Esse equilíbrio era fundamental, pois apenas alguém completamente engajado ao projeto, ao ponto de até confundir os limites entre o trabalho e o bar, por exemplo, poderia entender a necessidade de extrapolar o cronograma das diárias de filmagem, se isso, um dia, fosse necessário. Segundo relato de Spolidoro, era comum os diálogos no roteiro acabarem e Brant não cortar a cena, o que obrigava atores e atrizes a seguirem improvisando. Para isso ser possível, além de se montar um elenco disposto – e corajoso – a se submeter a tal proposta, há todo um trabalho que antecede a própria filmagem. Em Cão sem dono, isso chegou ao ponto de o ator Júlio Andrade não apenas ir morar no apartamento que serviria de locação para sua casa, no filme, como também adotar o cachorro – o Churras – que seria seu parceiro no filme para, com ele, conviver durante essas semanas que antecediam as gravações. Esse foi o filme que lançou Júlio Andrade nacionalmente, mas isso apenas foi possível porque o ator compreendeu exatamente o que Brant e Ciasca estavam buscando e se permitiu mergulhar no universo diegético do seu personagem – Ciro – a ponto de, ao longo das filmagens, Andrade e Ciro até se confundirem. Isso era algo próximo daquilo que os paulistas propuseram para toda a equipe quando disseram que queriam trabalhar com quem saísse para beber com eles depois das gravações.

Se Andrade saía para beber com a equipe, não sei e isso não interessa aqui, mas que o ator bebeu e realizou uma endoscopia real enquanto filmava, isso é explicitado, em depoimento, pelo próprio Beto Brant. Assim como, muitas vezes, ao finalizar a diária, a equipe seguia discutindo o filme ao redor de uma mesa de bar ou na própria locação. Segundo Brant, as filmagens acabavam em torno das quatro horas da madrugada, toda a equipe estava excitada pelas cenas rodadas, portanto, para desacelerar, bebiam algumas cervejas e descontraiam todos juntos. Brant complementa a ideia lembrando de uma fala do Magnólio, o palhaço do seu filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (Beto Brant e Renato Ciasca, 2011), “a alegria não exclui a seriedade”. Afinal, o cinema de Brant e Ciasca é “feito com amizade e celebração”, ou seja, mais uma vez estamos falando, aqui, de um “cinema de turma”. Mesmo que, talvez, de uma proposta de turma um tanto quanto diferente.

Outro aspecto que me chamou a atenção foi o fato de Brant, um cineasta que vinha de fora do Rio Grande do Sul, optar por filmar – e descobrir – Porto Alegre. Brant buscou representar várias nuances da capital dos gaúchos com a escolha de locações que não eram, geralmente, utilizadas pelos cineastas locais. Talvez, também por isso o crítico de cinema, Marcus Mello, afirma ser esse o mais porto-alegrense dos filmes gaúchos. Conforme minha orientadora no doutorado e pesquisadora, Miriam Rossini, em sintonia com a Nouvelle Vague, movimento o qual teve como uma das suas principais características redescobrir a Paris dos anos 1960 através das lentes do cinema, também Brant olhou para uma Porto Alegre um tanto desconhecida. Isso ocorre porque os filmes gaúchos, até então, haviam criado uma espécie de “circuito geográfico representacional”, que reforçava uma visão de Porto Alegre como uma cidade pequena e homogênea, formada pelo entorno dos bairros Centro, Bom Fim e da Cidade Baixa. Dessa forma, seriam os “estrangeiro” Brant e Ciasca que deram para Porto Alegre aquilo que os porto-alegrenses sempre reclamaram não haver: um certo ar de metrópole. Afinal, a cidade é muito maior que os três bairros – e alguns outros poucos – citados anteriormente.

Todas essas observações acerca do “estrangeiro”, bem como a discussão conceitual que vai colocar, em lados opostos, o que seria o cinema clássico – representado, aqui, pela Casa de Cinema de Porto Alegre – e um modelo de cinema mais desconstrutivo e, de certa forma, experimental – representado, localmente, pela Clube Silêncio –, ao que tudo indica, estão impressas no corte final de Cão sem dono tal qual o olhar paulista sobre Porto Alegre. Ainda, pode não ser algo completamente novo para o cinema, uma vez que (quase) tudo o que foge do padrão clássico, de certa forma, iniciou com a experiência da Nouvelle Vague. No entanto, por incrível que pareça, nenhum outro longa-metragem filmado profissionalmente, em solo gaúcho, a partir de um orçamento significativo e, consequentemente, associado a outras empresas produtoras até então havia proposto tal ousadia em tantas etapas e segmentos de sua realização. Por tudo isso, é mais do que interessante, é fundamental levar em conta Cão sem dono, o seu modo de produção, o momento quando ocorreu, da forma como se deu e, certamente, o seu resultado final, na hora de refletirmos sobre o que, afinal, significa essa história recente do cinema porto-alegrense. Ademais, o que Cão sem dono diz sobre esse nosso (novo) cinema.

Provavelmente, Brant estava certo ao perceber que esse filme não teria condições de acontecer através de uma coprodução com a Casa de Cinema de Porto Alegre. Ao menos, não naquele momento, quando a produtora estava vivendo seu melhor momento, na produção cinematográfica, administrando diversos projetos de filmes que contaram com os melhores orçamentos da sua história. Sem citar os projetos para a televisão. Apesar para se ter uma ideia, naquele mesmo período quando ocorreu a realização de Cão sem dono, a Casa de Cinema estava envolvida com os seguintes longas-metregans: Meu tio matou um cara (Jorge Furtado, 2005), Sal de prata (Carlos Gerbase, 2005), Saneamento básico (Jorge Furtado, 2007) e Antes que o mundo acabe (Ana Luiza Azevedo, 2009), além da coprodução Bens confiscados (Carlos Reichenbach, 2005) e o longa-metragem de baixíssimo orçamento, 3Fs (Carlos Gerbase, 2007).

Esse momento, infelizmente, não durou muito tempo e, desde então, a Casa de Cinema passou a dedicar-se mais à produção televisiva e menos à realização de projetos cinematográficos. Paralelamente, tudo indica que a própria Casa de Cinema foi aprendendo a equilibrar os elementos inerentes ao cinema clássico/comercial e autoral/experimental. Prova disso é a sua significativa participação nos filmes da Novíssima geração de realizadores gaúchos. Diante disso, é preciso ser justo em assumir que a Casa de Cinema de Porto Alegre não apenas se reinventou mas, ao fazê-lo, acabou ajudando a viabilizar alguns dos longas-metragens mais inovadores na cinematografia gaúcha contemporânea como Os famosos e duendes da morte (Esmir Filho, 2010), Castanha (Davi Pretto, 2014), Rifle (Davi Pretto, 2016) e Cidades fantasmas (Tyrrel Spencer, 2017).

As filmagens de Cão sem dono, mais do que simbolizar a opção pela produtora que havia sido criada para propor um novo modelo de produção cinematográfica em Porto Alegre, serviu para influenciar alguns filmes e realizadores gaúchos. Gustavo Spolidoro reiterou inúmeras vezes, nas diversas entrevistas realizadas para esta pesquisa, que no set de Beto Brant não havia a figura do diretor que gritava “ação” ou “corta”. Mais do que isso, não havia a figura do diretor que gritava. Spolidoro relata que isso o surpreendeu, o influenciou e influenciou o tipo de filme que ele gostaria de fazer a partir de então. Para Milton do Prado, o jeito de Brant e Cisca filmarem, bem como o modo de produção operado durante as gravações de Cão sem dono, acabaram encontrando eco nas pretensões artísticas dos diretores da Clube. Possivelmente, não porque Brant/Ciasca estivessem trazendo algo completamente novo aos sócios, mas, sim, porque Cão sem dono pode ter atestado que era viável realizar filmes de longa-metragem se utilizando de um modelo de produção e direção que os diretores da Clube também acreditavam, mas que, até então, por alguma razão ainda não havia sido aplicado em projetos de longas-metragens. Por tudo isso, é interessante observar o quanto a chegada da figura do “estrangeiro” provocou um pequeno caos e permitiu o surgimento – ou, ao menos, a reflexão – de novas configurações de trabalho, bem como possibilidades estéticas e narrativas. E que, ao virem para o Rio Grande do Sul para realizarem um projeto de longa-metragem, mais do que simplesmente filmarem Cão sem dono, Brant e Ciasca provocaram uma pequena revolução que seguiu acontecendo mesmo depois de eles retornarem para suas casas, em São Paulo. De acordo com Marcus Mello, foi preciso vir um diretor de fora do estado para que um cinema mais inventivo, orgânico e, de certa forma, experimental fosse realizado em Porto Alegre. Para ele, Cão sem dono é o filme que melhor traduziu a cidade e o jeito de ser e viver do porto-alegrense. Eu, particularmente, concordo com Mello, no entanto, cabe refletir que a Porto Alegre de Brant e Ciasca é muito mais da desesperança, do isolamento ou da fuga do que a capital da “interminável boemia bonfiniana” como aquela retratada, por exemplo, em Ainda orangotangos (Gustavo Spolidoro, 2007). Talvez a opinião de Mello ilustre um pouco daquilo que Pesavento identificou a respeito do porto-alegrense, o qual, constantemente, se preocupa “[…] como os ‘outros’ enxergam a capital gaúcha […]”, quando nem mesmo ele conseguiu ainda vê-la apropriadamente. Se pensarmos dessa forma, não surpreenderá perceber que aquele que melhor nos traduziu, no cinema, foi justamente um forasteiro, oriundo “do outro lado da fronteira”.

Dessa forma, relembrando as palavras de Albert Camus para Porto Alegre, “[…] a luz é muito bela, a cidade feia. Apesar dos seus cinco rios […]”, seria possível ressignificar nossa percepção com base em uma leitura cinematográfica? Afinal, sabemos que com uma luz bem construída e bons enquadramentos, não há cidade feia. Se assim o audiovisual quiser. Por isso, não por acaso, e é importante sublinhar, Porto Alegre também é um cenário relativamente constante na publicidade nacional. Pensando assim, o que talvez nos falte não é ouvirmos de um “estrangeiro” o quanto a nossa cidade é bonita ou legal, mas, sobretudo, concluirmos, a partir de nós mesmos, o quanto Porto Alegre é tudo aquilo que queremos que ela seja. Até mesmo feia, escura, hostil e violenta, se dessa forma nos agradar. Afinal, quem nela vive somos nós, e não os estrangeiros que por ela passam. Até porque, assim como Camus, estrangeiros virão e estrangeiros irão, mas Porto Alegre seguirá por aqui, iluminada, diariamente, por essa luz que os próprios porto-alegrenses tanto exaltam a cada pôr do sol no Guaíba – “o mais belo do Brasil”. Falta, talvez, permitir que esta mesma luz do nosso pôr do sol, de fato, nos ilumine. E ilumine nossa percepção sobre nós mesmos.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento está lançando seu novo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado, defendida em 2021. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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