Home / * PORTAL / MAR ABERTO | Somos todos filhos de alguém
Foto: Boca Migotto

MAR ABERTO | Somos todos filhos de alguém

por Boca Migotto.

O ator João Vicente de Castro, filho do jornalista Tarso de Castro, morto em 1991, revelou em entrevista que levava uma vida de “carioca classe média alta”. Pegava onda, passava o dia na praia, não trabalhava, curtias as festas à noite. Um dia, o publicitário Washington Olivetto, amigo do seu padrasto, André Midani, o convidou para trabalhar na sua agencia de publicidade. Assim, mudando-se para São Paulo, João Vicente ganhou a chance de trabalhar na W/Brasil, uma das maiores agência de propaganda da América Latina.

Outro dia eu estava assistindo a um filme brasileiro na Netflix, chamado Minha fama de mau (2019), sobre a história do cantor e compositor Erasmo Carlos, e me chamou a atenção o nome do diretor. Lui Farias. Não o conhecia, mas esse sobrenome não era – não é – nada estranho. Dei um Google e logo descobri que se tratava de um filho do também cineasta, Roberto Farias. Cineasta expoente da geração do Cinema Novo, irmão do ator Reginaldo Farias, Roberto tem quatro filhos, sendo que Mauricio Farias e Mauro Farias, além do próprio Lui, têm carreiras na produção audiovisual.

Ainda na mesma área, os exemplos de filhos e filhas que seguiram as carreiras dos pais é um sintoma reincidente. De fato, é difícil se inserir e, principalmente, ter voz ativa nas comunidades artísticas. Portanto, ser introduzido às (boas) rodas profissionais desde o nascimento é um privilégio. Mas, mesmo quando os pais não são, diretamente, profissionais da mesma área, fica claro que, para alguns mais do que para outros, a influência dos progenitores é decisiva. E nesse caso nem falamos apenas da televisão e do cinema, embora, sim, os exemplos aqui são bastante eloquentes, ilustrativos e intermináveis.

A atriz Fernanda Torres é filha da também atriz, Fernanda Montenegro e do ator Fernando Torres, além de irmã do também cineasta, Claudio Torres. Uma família de artistas bem sucedidos. As atrizes Bianca Comparato e Lorena Comparato, filhas do roteirista Doc Comparato; Luisa Arraes, filha do diretor de cinema e um dos principais realizadores da TV Globo, Guel Arraes, ele mesmo filho do ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes; Silvia Buarque, filha de Chico Buarque e Marieta Severo; Petra Costa, filha do ex-deputado Manuel da Silva Costa Junior, o roteirista Pedro Furtado, filho do cineasta Jorge Furtado, ele mesmo filho do ex-diretor da TVE-RS (entre outras atividades profissionais), Jorge Alberto Jacobus Furtado e da ex-deputada Dercy Furtado; a diretora e produtora Carolina Jabor, filha do ex-cineastas e comentarista da Globo, Arnaldo Jabor. O próprio João Vicente de Castro, enteado de um empresário referência da música desde os anos 1960, que se consagra como ator do Porta dos Fundos, depois na televisão e cinema, assim como os irmãos João Moreira Salles e Walter Salles, filhos do embaixador, político e bancário, Walther Moreira Salles que, portanto, nem precisaram de um pai artista para facilitar suas carreiras.

Percebam que não se trata de julgar o talento desses profissionais. Ao contrário, eu mesmo sou admirador do trabalho de vários acima citados. E tenho certeza que sem talento e muito trabalho, ser filho de alguém não garante o sucesso. Ao menos não por muito tempo e não de forma consolidada. E existem inúmeros exemplos para provar que uma carreira sólida, quase sempre, depende, também, de muito trabalho. Apesar de reconhecer o talento e o esforço dos filhos da elite que alcançam o sucesso, já faz um tempo, aprendi a relativizar o grau de encantamento acerca dessas carreiras. Afinal, quantas Fernanda Torres, Walter Salles, Vicente de Castro e Lui Farias nunca foram ao menos descobertos por simplesmente lhes faltar a oportunidade e o empurrão inicial que todos estes aqui citados tiveram desde o momento quando nasceram? Portanto, independente dos méritos de uns e outros, nascer na família certa, no Brasil, ainda é o maior dos privilégios. Não apenas no Brasil, evidentemente, mas no Brasil sobretudo.

Embora a lista acima seja formada por artistas, a fórmula se repete em praticamente todas a áreas profissionais de relevância. Médicos filhos de médicos, oficiais do Exército filhos de oficiais do Exército, advogados filhos de advogados, políticos filhos de políticos, para todo lado que você olhar, ser filho e filha de alguém é sempre o melhor caminho para se construir uma carreira em carreiras extremamente difíceis e competitivas. Algo normal, dirão alguns, afinal, filhos que assumem as carreiras dos pais, por justamente ser mais fácil e natural seguir a mesma trilha já aberta, se justifica por diversas razões. Em uma família de advogados, provavelmente, os filhos não apenas estarão ambientados à profissão dos pais como, também, desde cedo, conviverão com uma roda social formada por outros advogados e juízes. Nesses ambientes, não apenas os filhos aprendem os segredos das profissões dos seus genitores quase por osmose, como contarão com contatos que serão fundamentais para que as primeiras oportunidades de estágios e empregos sejam direcionadas a eles.

Mas quais portas se abrirão para um filho de carpinteiro, filho de um gari, filho de um funcionário público ou mesmo o filho de um sargento do Exército que, desde cedo, vê seu pai almoçar num refeitório separado dos oficiais? Para estes as portas da esperança estão fechadas desde seu nascimento. Se os pais forem pobres, então, lhes faltará, inclusive, a oportunidade de frequentarem bons colégios onde teriam acesso a uma educação que poderia, talvez, fazer alguma diferença na sua vida adulta. Nesse Brasil de herança escravocrata, de herdeiros das capitanias hereditárias e amigos do imperador, os contatos ainda são fundamentais para que filhos e filhas consigam inserir-se em áreas profissionais disputadíssima. A meritocracia não existe, embora tanto tentem nos vender a ideia de que, por esforço próprio, todos nós temos chances de vencer na vida. Não é assim. Nunca foi. E duvido que, apesar dos discursos, um dia será.

No Brasil, homens têm mais chances que mulheres, homens e mulheres brancos tem mais chance que negros, negros ricos e filhos de pais que conseguiram se posicionar profissionalmente, apesar de todas as dificuldades – e isso, sempre, é apenas a exceção que confirma a regra – têm mais chance que negros pobres. Se a pessoa teve a infelicidade de nascer preto e pobre, então, sua chance de tornar-se um profissional bem sucedido é praticamente nula. A essa pessoa não bastará apenas ter talento e se esforçar. Ela precisará ter mais talento que os outros, se esforçar muito mais que os outros e contar com muita sorte para superar todas as dificuldades que, a princípio, nem estariam diretamente relacionadas à profissão escolhida. Talvez, a primeira delas, inclusive, seja não morrer de fome.

Mas, suponhamos que a pessoa em questão não morreu de fome, não foi cooptada pelo crime organizado, não caiu em uma blitz da polícia e foi presa porque portava um cigarro de maconha para uso próprio que o levou a seis anos num presídio onde, para sobreviver, precisou integrar uma facção do mesmo crime organizado ao qual, lá fora, a duras penas, conseguira, ainda, evitar. Vamos supor que essa pessoa conseguiu frequentar uma escola pública até o final do ensino médio, e superou o despreparo de professores desamparados, a falta de merenda no recreio, as aulas canceladas em meio às guerras do tráfico, as cadeiras e classes quebradas, a falta de material didático e os colegas que faziam bullying porque o viam como um CDF.

Quem sabe essa pessoa até ganhou uma bolsa de estudo em um colégio de elite e, lá, descobriu ainda da forma mais dolorida possível que ele não é igual a todos os colegas que o segregam por, simplesmente, ser bolsista. Não fazer parte da turma. E vamos supor que vencidas todas essas etapas, muitas vezes sem o apoio de um pai, pois a mãe o criou sozinha, e, portanto, para colocar comida na mesa, também ela não podia ser presente. Vamos supor, da mesma forma, que a pessoa chegou à universidade. Nesse momento, essa pessoa olha para seus colegas de classe, para os professores, e para sua própria história de superação e percebe que, infelizmente, a sua luta apenas está começando. A impressão que essa pessoa tem, conversando com seus colegas oriundos de “boas” famílias e “bons” colégios, é que ele ou ela vem de outro mundo. E, de fato, é isso mesmo, são dois mundos diferentes.

A meritocracia não existe, simplesmente porque o ponto de partida é infinitamente desigual. A largada, para alguns, está muito a frente que para outros. Enquanto uns passam a tarde pegando onda na praia, outros vendem sacolé para pagar a faculdade. Enquanto uns iniciam suas carreiras como protagonistas da novela das oito, outros figuram, mexendo a boca no fundo da cena para fazer de conta que falam. Enquanto uns estudam para serem embaixadores, outros nem sabem o que é o Instituo Rio Branco. Não é por acaso que Lula incomoda tanto as elites. Infelizmente, ele é um em duzentos milhões, ao longo de mais de quinhentos anos de história.

Somos todos filhos de alguém, mas alguns são mais alguém que outros.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Em 2023 lançou seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
Please follow and like us:

Comente

comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.