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MAR ABERTO | Santa Tereza o rio e o asfalto

por Boca Migotto.

Hoje – dia 8 de maio de 2024 – retornei a Santa Tereza. A última vez que estive lá foi há duas semanas, justamente para entrevistar duas senhoras que foram atingidas pelas últimas enchentes, em setembro e novembro do ano passado. Ao longo de toda semana passada, enquanto chovia sem parar e as primeiras imagens da iminente catástrofe chegavam em forma de vídeos pelas redes sociais, não conseguia parar de lembrar as histórias que aquelas duas senhoras me contaram. A sensação de pânico na noite escura, a cidade sem luz, a população toda desalojada e ilhada na parte alta de Santa Tereza, única área que não havia alagado, sob a chuva e o vento. Elas descreviam o que viveram e eu imaginava a cena aterrorizado com o que escutava.

A primeira vez que estive em Santa Tereza não havia nem estrada asfaltada. Que ironia, logo o asfalto, um dos vilões dessas enchentes destruidoras. Íamos para lá para acampar e ver os campeonatos de canoagem. Na verdade, nunca vimos os campeonatos. O que queríamos, naquela adolescência ingênua, era curtir o acampamento, encontrar gente, fazer festa. A cidade era nossa embora, naquela época, nem sabíamos bem onde estávamos. Ir para lá era como entrar numa máquina do tempo. Eu nem imaginava que Santa Tereza, cidade com apenas 1.505 habitantes, conforme o censo de 2022, nunca mais sairia da minha vida.

Tudo começou quando filmei meu primeiro curta-metragem para RBS-TV, justamente um documentário sobre o Rio das Antas. Lá filmei, também, uma série inteira, chamada Bocheiros, e parte de outros trabalhos como o documentário Às margens, que retrata a história do artista plástico Elson Tieppo que, do Rio das Antas, retira a matéria prima para suas esculturas; as pedras. Em Santa Tereza fiz muitos amigos. O atual prefeito de Bento Gonçalves, Diogo Siqueira, que nas últimas semanas apareceu inúmeras vezes na TV, falando sobre a tragédia às margens do Rio das Antas, era prefeito de lá quando filmamos Frente a Frente, também para a RBS-TV. Esse curta-metragem conta a história do campanário da cidade, construído em estilo neogótico veneziano, pelo italiano Massimiliano Cremonese, entre as décadas de 1920 e 1930, à imagem e semelhança de outra torre que o próprio construiu em sua terra natal, Fagaré della Bataglia, na Itália. Essa história envolve, ainda, nuances da Primeira Guerra Mundial e a reconciliação entre dois ex-soldados, um italiano, o próprio Cremonese, e um alemão, hoje desconhecido mas que, por aqui, passou trabalhando na instalação de equipamentos para os frigoríficos da região.

Segundo a lenda – ou melhor, a história extraordinária – esses dois personagens, na Primeira Guerra, quase mataram um ao outro. Anos depois, ambos migraram para o Brasil e quis o destino que se reencontrassem no Rio Grande do Sul, onde ficaram amigos. Para realizar esse programa para a extinta séria, não por acaso, denominada Histórias Extraordinárias, fui atrás do rastro desse dois homens por caminhos que, hoje, de certa forma, são eles próprios cenários de guerra. Santa Tereza, Muçum, Roca Salles, Serafina Correa e Guaporé onde, finalmente, eles se encontraram e trabalharam juntos, foi o caminho percorrido por mim e pela equipe que documentou essa história. Hoje, todas estas cidades foram gravemente atingidas pelas enchentes.

Quem nos trouxe essa história foi o César Prezzi, cidadão de Santa Tereza, historiador, professor, apaixonado pela imigração e pelas casas antigas – e preservadas – da cidade onde nasceu. Tombadas pelo IPHAN como patrimônio nacional, não apenas as habitações, mas todo o núcleo urbano que a envolve, inclusive, os morros que circundam a cidade, espelham a pujança econômica que a cidade viveu entre o final do século XIX e início do século XX quando não havia estradas para escoar a produção dos imigrantes e o rio era a única saída viável. A cidade cresceu por conta do porto, por onde não apenas enviavam a produção de toda essa região banhada pelas águas do Rio das Antas, como também, através dele, recebiam o material utilizado para construção das próprias casas. Falamos de uma comunidade portuária que, justamente por isso, era essencialmente cosmopolita e diversificada. Uma população que se aproximava dos quatro mil habitantes e que chegou a contar com três casas bancarias e duas grandes casas de comércio.

A arquitetura colonial, com detalhamento eclético, erguida em toda cidade mas, principalmente na rua principal, espelha essa pujança que teve fim com a abertura das estradas. O mesmo asfalto que não existia quando encontrei a cidade pela primeira vez, e que tomou de assalto não apenas as rodovias do Estado mas, também, as ruas das principais cidades, é o asfalto que não permite que a água da chuva penetre o solo e, ao contrário disso, corra selvagemente morro abaixo, em direção aos arroios e rios até, finalmente, inundar a região metropolitana. Basta olharmos o mapa. Todas as principais cidades da Serra Gaúcha, como Caxias do Sul – lembrando que está é a segunda mais populosa do Rio Grande do Sul –, Bento Gonçalves, Antônio Prado, Veranópolis, Nova Prata, Flores da Cunha, foram construídas nos pontos mais altos dos morros. Com suas ruas impermeabilizadas pelo asfalto, toda a água que cai sobre elas, em forma de chuva, busca o caminho mais fácil para chegar ao vales.

Muitas vezes, no meio do caminho, há casas, vidas e memórias. Conforme a quantidade de água – e dessa última vez a quantidade foi assombrosa – tudo é levado junto, morro abaixo, arrasando os vales, em direção ao Guaíba. E, de lá, para o Atlântico através da Lagoa dos Patos. Por isso, a água que inundou Santa Tereza, arrasou Roca Salles, Lajeado, Eldorado, cobriu Canoas e tomou parte de Porto Alegre é a mesma. Caiu do céu, em quantidades absurdas, sobre cidades altas, e correu como cascata – ou enxurrada – para a bacia dos rios Taquari, a partir da Serra Gaúcha, e do Jacuí, na região do Planalto e Centro do Estado onde, também, temos outras cidades populosas – e cheias de asfalto – como Passo Fundo e Santa Maria. Depois se seguirem seus cursos solitários, recebendo águas de arroios e rios menores, os dois gigantes se encontram na altura de Triunfo e São Gerônimo e, de lá, seguem caudalosos na direção da região metropolitana onde, ainda, receberão as águas dos rios Caí e dos Sinos. Devido a quantidade de chuva que caiu sobre o Estado em apenas uma semana, quando as águas encontraram o Guaíba já não eram mais rios mas, sim, um tsunami marrom.

É irônico se dar conta que Santa Tereza nasce do rio, prospera com o rio, mas para no tempo justamente por causa do mesmo asfalto. Quando surgiram as estradas a cidade estagnou, deu às costas ao rio – da mesma forma como fizeram tantas outras cidades da região – e dele lembrava apenas quando o nível subia ao ponto de ameaçar sua tranquilidade. No documentário Rio das Antas – Vale da Fé, do qual falei anteriormente, praticamente todos depoentes refletem sobre isso, quase preconizando o futuro que, hoje, nos é presente. Muitos deles nem viveram para confirmarem suas teorias. Faleceram já há alguns anos e este é outro motivo que me orgulha em trabalhar com documentários. Suas memórias estão registradas e só não às acessa quem não quer.

O desmonte do porto de Santa Tereza, já inútil nos anos 40, contudo, fez com que algo da imigração se preservasse. Sem o dito progresso, que varreu a história e a memória dos imigrantes italianos de todas as grandes cidades, Santa Tereza preservou seu casario. Afinal, a cidade viu sua população diminuir vertiginosamente e, portanto, ninguém se propunha a “investir” lá. Lembrando, ainda, que até o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, nem asfalto havia para chegar na cidade. Mas engana-se quem pensa que se trata apenas de casas velhas. É toda uma cultura que tem potência para nos remeter ao passado, para um tempo que já não existe mais na maioria das cidades do Rio Grande do Sul. Para um tempo quando nem se falava em crise ambiental e aquecimento global. Em Santa Tereza, da mesma forma como se fazia nesse passado remoto, ainda hoje o comércio fecha para o almoço, as pessoas vão para casa, comem com suas famílias e depois dormem suas siestas. A cidade morre até às duas da tarde quando, novamente, ressuscita. E sempre ressuscita.

Foi para essa Santa Tereza que eu voltei hoje. Estava preocupado com as pessoas, com as casas, com a vida da cidade. O caminho até lá me assustou. A estrada principal – o asfalto – está interditado. Por isso foi preciso descobrir o caminho alternativo que passa por estradas de chão batido, desvios e localidades remotas. A destruição está por toda parte. Barreiras sobre o asfalto, asfalto sem asfalto. Rasgos marrons nas encostas verdejantes. Passei por uma locação utilizada por nós quando filmamos Bocheiros. Estava lá, embora ameaçada por um deslizamento de terra que parou poucos metros antes de atingir a edificação. Na estrada, à minha frente, seguia um comboio dos Bombeiros. Cães farejadores, um caminhão, duas vans. Também eles dirigindo com cuidado, desviando buracos, cruzando por rasgos remendados no improviso, pois esse é o único caminho que, hoje, nos leva para Santa Tereza. Segui atrás deles, acompanhando aquela cena inusitada. O caminhão dos bombeiros, vermelho, em contraste com o verde da mata que cobre as montanhas, trafegando por uma estrada também inusitada que, em situação normal, nunca seria uma opção para chegar à cidade. Me perguntei sobre o estado da estrada principal para preferirem restaurar um caminho como aquele em vez de logo desobstruírem o asfalto.

Ao chegarmos à cidade, lá estava ela. Ainda de pé e resistente. No ar, pesado, pairava um aroma fétido de cemitério. Aquele cheiro de água parada e flor apodrecida que os frequentadores de campos santos conhecem bem. Mas o ar estava pesado não apenas isso mas, sim, por conta do trauma. Um silêncio amedrontado, de quem viveu três inundações sem precedentes em apenas oito meses. Mas, por incrível que pareça, essa enchente, que arrasou todo o Estado e deixou a capital de joelhos, não foi tão catastrófica para Santa Tereza. Inundou parte da cidade, sim. A água chegou quase até o prédio da prefeitura, para aqueles que conhecem a cidade imaginarem. Causou danos significativos também. Novamente. Mas, ainda assim, conseguiu ser mais suave que a enchente de setembro do ano passado. No entanto, claro, foram três inundações. Uma seguida da outra, como nunca antes havia ocorrido. Por causa disso, dessa vez, após a notícia de rompimento da barragem da Hidrelétrica 14 de julho, até o meu amigo César Prezzi, um resistente teimoso que por nada abandona sua cidade, saiu às pressas. Santa Tereza foi toda evacuada, se tornou uma cidade-fantasma, abandonada à própria sorte e ao destino das águas.

Eu fui para lá para ajudar na limpeza. Demorei demais. Com exceção das praças, onde trabalhavam os servidores públicos e os bombeiros, com suas máquinas pesadas, a cidade já estava relativamente limpa. Então fiz o que sei fazer melhor. Filmei. Mais uma vez registrei aquela cidade que tantas vezes me serviu de cenário e outras tantas de passeio. Pretendo editar um vídeo, se o improviso me permitir, para apresentar Santa Tereza aqueles que não à conhecem e mostrar como ela está aqueles já passaram por lá. E, quem sabe, inspirar algumas pessoas a doarem algum valor para ajudar na reconstrução daquele patrimônio histórico de valor inestimável.

Eu sei que a tragédia é tão absurdamente grande que ficamos quase sem resposta, ou como baratas tontas, olhando para os lados e pensando quem mais precisa de nossa ajuda, das nossas doações, do nosso voluntariado. Nesse sentido, talvez, Santa Tereza possa esperar. E imagino que sim. Temos urgências maiores no Vale do Taquari, onde cidades foram riscadas do mapa, em Canoas, na região metropolitana, e em Porto Alegre, onde as águas ainda nem baixaram. E vai demorar muito para isso. É comovente como o Brasil está unido para amenizar a dor de tantos gaúchos e gaúchas que perderam tudo. Mas a hora de reconstruir chegará e, certamente, muito haverá de se fazer. E, principalmente, de se pensar.

“Sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra”. Essa passagem polêmica do Hino Rio-grandense, finalmente, será posta em prática. Esta enchente já é um ponto de virada na história do Rio Grande do Sul e poderá ser, inclusive, na história do Brasil. De uma forma ou de outra, nosso exemplo sobre como lidaremos com a reconstrução, poderá ser, sim, modelo a toda Terra. Se optarmos por seguir caminhando em frente, como se nada tivesse acontecido, com as vendas nos olhos, como fazemos com os cavalos para que eles não se distraiam com sua visão periférica, seremos um tipo de modelo. Mas podemos, também, optar por encarar os fatos de frente, aceitar que um novo normal está aí, e planejar nosso futuro baseados em projetos que possam amenizar a crise climática.

Para isso será necessário, sem sombra de duvida, não apenas optarmos por políticas de preservação do nosso meio ambiente mas, também, por medidas que busquem restituir áreas já degradadas. É preciso refletir muito sobre qual futuro queremos, a partir de agora, para nossos filhos, pois reconstruir as cidades, por mais difícil que possa parecer, é viável e possível. O mais improvável é reconstruirmos nossa relação com o planeta. E isso será crucial para nossa sobrevivência sobre a Terra. Talvez, pela primeira vez de fato, possamos realmente fazer jus ao nosso hino. Só assim, acredito, salvaremos o que restou das nossas cidades e o futuro das próximas gerações. Menos asfalto e mais praças e parques. Menos “progresso” e mais tranquilidade, memória e um olhar generoso para a história. Nesse sentido, Santa Tereza, de certa forma, pode nos ensinar muitas coisas.

PIX do SOS Prefeitura Municipal de Santa Tereza, para quem quiser realizar uma doação em dinheiro: 91.987.719.0001-13. Além de dinheiro, a cidade ainda pede doação de água e material de limpeza.

Telefone: 54.3456-1033
E-mail: atendimento@santatereza.rs.gov.br

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Em 2023 lançou seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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