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MAR ABERTO | PEDRO E JOÃO NA IGREJA DA PERPÉTUA INOVAÇÃO

por Boca Migotto

Dois amigos, vamos chama-los de Pedro e João. Nomes clássicos desde os tempos de Jesus. Amigos de longa data, cozinheiros de mão cheia, cada qual na sua especialidade, e parceiros de uma boa mesa. São Pedro e João, aqueles que reúnem todos os demais para os encontros gastronômicos. Sem eles, quase nada acontece. Eles inventam, eles convidam, eles cozinham, eles lavam a louça. Mas, nem tudo é só amor nessa amizade. Pedro e João brigam muito, principalmente quando se veem em discordância temática. Não brigas de socos e pontapés, obviamente. Mas aquelas discussões chatas, intermináveis, para saber quem está certo e quem está errado sobre determinado assunto. Darei um exemplo.

Uma noite quando estavam reunidos, do nada, surgiu uma discussão sobre a gastronomia brasileira. João dizia que nossa gastronomia era simples demais, era preciso valoriza-la. Por isso, era preciso, aos chefes brasileiros, sair do Brasil para conhecerem outras experiências gastronômicas a fim de sofisticarmos nosso feijão com arroz. Feijão com arroz, aqui, utilizado como metáfora para simplicidade, mas também como feijão com arroz, literalmente. Afinal, nosso principal prato merecia uma releitura. Será?

Pedro argumentou que isso não funcionava. Os mais de quinhentos anos de colonização, responsáveis diretos pela nosso complexo de vira-latas, fazem com que os brasileiros, na sua maioria, voltem da Europa ou dos Estados Unidos com a certeza de que é preciso imitá-los. Salvo raras exceções, o resultado é sempre uma cópia e, portanto, uma descaracterização da nossa cultura. Uma permanente “recolonização”. Isso não se aplica apenas à culinária, vai muito além da cozinha. E, para Pedro, nesse momento de tanta inovação, fazer o mais simples era ser o mais original. “Deixemos as releituras para os reality shows de gastronomia, eu quero é saber fazer um bom e básico feijão com arroz. E já é muito, e já é bem difícil”. Não que Pedro acreditasse ser possível estancar por completo as dinâmicas culturais. Não que Pedro quisesse isso. Obviamente, ele compreendia que as culturas interagem e se influenciam mutuamente. Mas, argumentava Pedro, atravessamos um período histórico de tamanha transformação, quando não importa o momento ou a intensidade esta, a transformação, ocorrerá independente da nossa vontade. Por isso, nessas circunstancias, resistir às transformações é fundamental para adiarmos e amenizarmos influências radicais demais, que podem apagar nossa própria história, nos fazer perder nossas origens e desfigurar nossa essência. Resistir é apenas a única forma de amenizar os impactos desse movimento irremediável.

Nada disso convenceu João. Então Pedro tentou argumentar com exemplos. Lembrou que os tradicionais carrinhos de comida de rua, como os cachorros-quentes da sua infância, praticamente sumiram. Também eles já eram, na sua época, uma adaptação dos hot-dogs americanos. E agora não existem mais. Foram “recolonizados”, mais uma vez, pelos food trucks elaboradíssimos, pintados com suas modernas identidades visuais, que oferecem sempre os mesmos hambúrgueres gourmets de carne de costela. São bons? Claro que são, mas o efeito colateral dessa “tendência de mercado” é que o velho e bom xis gaúcho, prensado, que não precisava ser de “carne de costela” para ter um gosto típico local, desapareceu quase que por completo. E, assim como esse, são inúmeros os casos de extinção gastronômica. Por isso, nessa tendência de permanente inovação, Pedro defendia que o South Summit Brazil deveria pregar, em seus meetings motivacionais, um just stop innovation. Inovar, hoje em dia, é parar com tanta inovação.

Pedro e João, no entanto, não se entendiam. Essas discussões já eram notórias. Na incapacidade de chegarem a algum entendimento, e já se conheciam o suficiente para saber que neste dog eat dog não haveria vencedores, foram dissuadidos pelos demais amigos a abrirem outra garrafa de vinho e mudarem o tema da conversa. Changed the subject, a conversa seguiu por outro caminho. Era véspera de Páscoa, por isso alguém da mesa lembrou de outros Pedro e João, personagens de uma matéria publicada na Folha de São Paulo sobre os motivos que levaram a circuncisão desaparecer entre os cristãos. Isso mesmo, a circuncisão.

Segundo a matéria, a prática teria sido extinta, entre os cristãos, por uma questão meramente capital. O apóstolo João, preocupado em angariar mais followers entre os gentios, ou seja, os não-judeus, defendia que se abandonasse a prática mutiladora pois esta seria o principal fator de “não engajamento” da população masculina para com os ensinamentos de Jesus. Afinal, cortar a pele do pênis em uma criança recém nascida, e indefesa, é barbada, vai fazer isso em homens adultos, sem anestesia, e num tempo quando não havia antibióticos. A circuncisão, além de uma mutilação, é algo tão dolorido, e que muitas vezes inclusive levava à morte por decorrência de inflamações – imaginem a dor –, que tornava praticamente impossível a conversão de gentios adultos em cristãos. O apóstolo Pedro, tido como o primeiro Papa da história, teimou o quanto pôde – tradição é tradição – mas também ele acabou cedendo aos argumentos de João ao se dar conta de que exigir a circuncisão realmente limitava as potencialidades de crescimento da nova religião. Os novos tempos demandavam mudanças. Por isso, ficou instituído que a circuncisão não seria mais uma obrigação e isso fez com que as conversões explodissem. Um puta case de sucesso, mano!

Pedro e João, agora não os apóstolos mas os amigos que haviam há pouco discutido sobre os sabores e dissabores de uma eventual inovação da gastronomia brasileira, se deram conta de que a história dos antigos xarás havia muito em comum com a conversa que haviam tido há pouco. Entre inovar a culinária brasileira com releituras importadas dos chefs europeus ou acabar com a circuncisão em nome da nova Igreja havia uma essência em comum. Até onde é possível transformar as tradições em busca de se adaptar aos novos tempos? Pedro e João mal sabiam, mas logo mais a dialética entre conservar ou inovar seria ainda mais aprofundada. Uma amiga trouxe para a mesa um tema bem atual para aquele momento no Brasil.

Assustada com o atentado em Blumenau, onde quatro crianças haviam sido mortas por um assassino, enquanto estavam na escola, essa amiga falou sobre o quão danosa era a influência das redes sociais nesses atentados. Uma prática, aliás, que estava inquietando os brasileiros por conta da sua inédita assiduidade nos últimos anos. Mas o problema era ainda maior e mais preocupante pois a deep web, dark web, as fake news e a Inteligência Artificial ameaçavam uma sociedade analógica e ainda sem defesas para o vírus da tecnologia digital. Inclusive, os perigos iam além do atentado em Santa Catarina. A própria democracia estava ameaçada. E tudo pioraria muito com a capacidade de se criar mentiras ainda mais sofisticadas a partir da Inteligência Artificial. Até o Papa Francisco fora citado como exemplo. Afinal, franciscano que é, ele havia sido desconstruído da sua fé ao ser literalmente vestido por um casaco de inverno de alto custo, da marca Balenciaga, graças a uma ferramenta de IA chamada Midjourney. A repercussão desse caso impressionara tanto que a empresa responsável pela ferramenta parou de oferecer avaliações gratuitas para os usuários. Até eles, assustados, disseram “para tudo”. Ao menos, por enquanto.

Para muito além de uma releitura gastronômica, dessa vez Pedro defendeu que a inovação tecnológica teria potencial para destruir a humanidade. As democracias, as verdades mais inquestionáveis, as questões mais cruciais que nos definiam como sociedade estavam, todas, em risco. Exemplos, novamente, não faltam. A Inglaterra está colhendo os resultados nefastos de uma tempestade de fake news que influenciou o Brexit. Os Estados Unidos e o Brasil, duas das maiores democracias do planeta, estão precisando lidar com ex-presidentes autoritários que quase levaram ambos países à falência ética e moral quando estiveram no poder. Neofascismo e neonazismo renascem das cinzas de um passado aterrorizante através das manipulações de algoritmos robotizados. E tudo isso é apenas o começo. Não há controle, não há remédio e não há para onde fugir.

Desesperado frente a tais constatações, Pedro foi radical. Argumentou que se pudesse escolher entre todas as boas coisas que a tecnologia nos trouxe nos últimos trinta anos ou voltar direto para as décadas de 1980 ou 1990, preferia voltar no tempo e parar por lá. Segundo ele, tudo de bom que a tecnologia digital nos trouxe não compensava os perigos futuros, inerentes ao desenvolvimento da Inteligência Artificial. A partir desse momento a fake news vai escalar patamares assustadores e isso poderá mergulhar todo o planeta numa distopia digna do mais catastrófico blockbuster hollywoodiano. Dessa vez, João concordou. O máximo que a gente precisava de redes sociais era o Messenger e o Orkut. Pra que mais? Tudo que veio depois nos prejudicou mais do que nos melhorou como seres humanos. A questão realmente era preocupante, tanto que todos amigos ficaram surpresos com o inevitável armistício entre Pedro e João. Assim, a noite terminou um tanto silenciosa. Melhor teria sido Pedro e João discordarem.

No dia seguinte, no entanto, Pedro acordou incomodado. Mal abrira os olhos e lembrara as conversas da noite anterior. O que o incomodava não era a discussão que teve com João, mas o fato de ele, um progressista dos quatro costados, ter defendido a necessidade de pararmos tudo. Algo estava errado, afinal, parar é, também, conservar. E ele não era um conservador. Ao menos, nunca se havia percebido como tal. Como isso seria possível? Estava ficando velho demais para aceitar as transformações dos novos tempos?

Inconformado com tal constatação, Pedro se remexeu na cama. Virou para um lado e depois para o outro. Buscou respostas. Seria possível ser progressista em alguns temas e conservador ou totalmente retrógrado em outros? Será que a maturidade nos permite perceber certos perigos intrínsecos ao futuro e, assim, também nos possibilita apartar o joio do trigo? Algo que, quando jovens, ainda não nos damos conta? Mas isso não seria, justamente, um papo de velho reacionário? Ou seria que o conservadorismo é a grande novidade e ele, Pedro, ainda não havia se dado conta disso? Afinal, Pedro estava cansado desse discurso que nos incita a inovar tudo a qualquer custo o tempo todo. Até porque as novidades nunca levaram em conta o ser humano, mas apenas o quanto o ser humano poderia pagar pelas novidades.

Então, pela primeira vez, Pedro concluiu que estava sem respostas. Ou que estava mesmo ficando velho. Ou as duas coisas. Talvez tudo não fosse apenas uma ansiedade geracional? É natural o tempo passar e ficarmos com receio das inovações. Houve um tempo quando a televisão seria a ruína das famílias. Talvez tenha atrapalhado um pouco, mas seguimos caminhando sobre a terra. Assim, um pouco mais conformado consigo mesmo, mas ainda amedrontado pela falta de respostas e zonzo pelo vinho da noite anterior, Pedro optou por fechar os olhos e voltar a dormir. Deixaria seus thoughts para mais tarde, quem sabe para a próxima janta entre amigos. Se algumas transformações eram urgentes, outras poderiam esperar. Agora, releitura do feijão com arroz ele nunca aceitaria. Que o chamassem de retrógrado.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento está lançando seu novo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado, defendida em 2021. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.

 

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