por Boca Migotto
Anoiteceu em Buenos Aires e depois de uma longa jornada percorrendo a cidade, já era hora de baixar a adrenalina, achar um restaurante, sentar, descansar a lombar e os pés e pedir algo para comer. Ainda mais com uma criança em vias de lembrar que a fome existe.
O Arthur, é bem verdade, havia comido um algodão doce alguns minutos atrás, quando saímos do Museu de Ciências Naturais da Argentina. No entanto, sabemos, algodão doce não enche a barriga de ninguém, muito menos de uma criança de nove anos com metabolismo cada vez mais acelerado. Por outro lado, o piá vem se revelando um baita parceiro de viagens e também ele estava louco pela nossa última aventura do dia; conhecer a livraria El Ateneo. Pensando dessa forma, talvez, a lombar, os pés e as pernas dos dois adultos em questão – a mãe dele, Patrícia, e eu – pesavam mais que uma eventual fome do pequeno Arthur que, àquela altura do dia, seguia numa energia tresloucada rumo à uma das livrarias mais visitadas da Argentina.
A El Ateneo é uma rede que conta com várias filiais, mas esta para a qual arrastávamos nossa últimas energias, em específico, tinha um toque especial. Ela foi instalada em um antigo teatro. Um (ex)grande teatro. Assim, os camarotes foram transformados em departamentos de literatura, onde um dia houve poltronas para o público, agora havia (muitas) prateleiras, e, sobre o palco, onde artistas outrora apresentaram sua arte, mesas e cadeiras concorridas por pessoas sedentas por um café ou taça de vinho. E isso que a Argentina está em crise. O lugar é realmente muito bonito e, se levarmos em conta que, no Brasil, as livrarias estão fechando e os teatros e cinemas, há tempos, se transformaram em igrejas evangélicas, não deixa de ser, também, um símbolo de resistência cultural.
No entanto, claro, a El Ateneo não deixa de ser uma livraria de rede, como foi – foi? é? – um dia, a Livraria Cultura. Um espaço agradável de frequentar, com variedade de livros e autores, mas que mantinha um modelo de negócios, digamos, um tanto quanto contraditório para um setor dito cultural. Enfim, nem tudo são flores. No caso dessa unidade específica da rede El Anteneo, o fato de estar instalada dentro de um antigo teatro faz dela um ponto turístico de Buenos Aires. E, no caso da principal semana de férias de inverno, um ponto turístico até por demais. A livraria estava lotada e as pessoas se acotovelando. Algo que mais se assemelhava a uma noite orgiástica no Festiqueijo, em Carlos Barbosa – procurem saber –, do que num espaço dedicado à contemplação literária. Por isso, uma vez já inspirados pelas dores corporais oriundas de um longo dia de caminhada, não precisou muito tempo para eu rapidamente escolher alguns livros e a gente sumir para uma parrilla que, no caso, ainda precisava ser encontrada. É uma lenda de que há parrillas por todo lado em Buenos Aires.
Mas, voltando aos livros, nessa maratona literária, quando estava já me dirigindo para a fila, pronto para contar as intermináveis notas de mil pesos – pouco se vê pessoas pagando com cartões – e já visualizando um ojo de bife e uma garrafa de malbec sobre a minha mesa no restaurante, a Patrícia me alcançou um livro com um título, no mínimo, curioso.
Obviamente, tratava-se de uma espécie de best seller, mas o pequeno livro de cento e oitenta e poucas páginas, relativamente barato – se a comida e bebida estão bem acessíveis, na Argentina, não dá para dizer o mesmo dos livros – e escrito por dois jovens irmãos chamados Augusto y Mateo Slavatto me despertou a curiosidade, pois País de Mierda – ideas y reflexiones sobre el mejor país del mundo me remeteu à minha Porto Alegre querida. Não, não se trata de un chiste e vou explicar.
O conflito explicitado, já no título do livro, quando “país de merda” é contraposto às reflexões sobre “o melhor país do mundo”, me pareceu saído da boca de algum porto-alegrense nato, para quem, invariavelmente, nossa “leal e valerosa” cidade – é “valerosa” mesmo, com “e”, título concedido à cidade, em 1841, por dom Pedro II, em virtude do posicionamento da capital a favor do Império durante a Guerra dos Farrapos – sempre é uma contradição entre esses dois conceitos tão distintos. Afinal, como pode uma merda de cidade, ou país, no caso, ser o melhor lugar do mundo? Embora eu tenha algumas respostas para isso, obtidas justamente graças à minha pesquisa de doutorado, e apresentadas tanto na tese como no livro Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre – ou seja, há cientificidade por trás dessas observações – fiquei curioso para descobrir como esses dois hermanos argentinos discorreriam acerca dessa confusão de sentimentos tipicamente platina. E aqui já me coloco – a mim e a todos nós – meio corpo para além do rio Uruguai.
Por isso, após o jantar, e após chegar em casa e tomar um banho revigorante, iniciei a leitura. Cansado que estava, obviamente, no primeiro dia não avancei muito nas páginas. Mas, mesmo uma analise superficial do glossário já me permitiu deduzir o esquema da obra. O livro começa com algumas bromas sobre os argentinos para, num segundo momento, se utilizar de causos futebolísticos a fim de ilustrar o tema abordado e engajar o leitor – geralmente um argentino e, como tal, geralmente fanático por futebol – para, enfim, num terceiro momento, ai sim, aprofundar – não demasiadamente, para não chatear demais – aspectos históricos que possam ajudar a explicar o porquê de a Argentina ser como é. Segundo os autores, o país da promessa eterna – pensei que este era o Brasil – e da melancolia. Como se a história da Argentina estivesse, desde sempre, predefinida por um roteiro e, aos argentino, apenas lhes fosse permitido viver intensamente os bons e maus momentos dessa interminável película dramática sobre uma crise que nunca acaba. No entanto, convenhamos, levando em conta os cafés, restaurantes e livrarias – estas menos, ok – sempre lotadas, a crise argentina é algo a ser estudada. Assim como a quantidade de Oscars, Nobels e pontificado argentino.
Brincadeiras a parte, embora não seja nenhuma brincadeira e sim, para nós brasileiros, uma tragédia lembrar que a Argentina já levou o papado uma vez, o Oscar quatro vezes – se levarmos em conta o Oscar de Melhor Roteiro para Birdman (Alejandro Gonzáles Iñárritu, 2014), escrito também pelos argentinos Nicolás Giacobone e Armando Bó – e, ainda mais humilhante, o Prêmio Nobel de Literatura outras cinco vezes, os próprios autores do livro lembram de uma declaração de Simon Kuznets, Nobel de Economia de 1971, de que, no mundo, “hay cuatro clases de países: los desarrollados, los en vías de desarrollo, Japón e Argentina”. Para o economista russo naturalizado estadunidense – ao menos este, definitivamente, não seria argentino – dentre os dois últimos “tipos de países”, o Japão seria o exemplo de uma nação que, com muito pouco, fez muito, enquanto nossos vizinhos hermanos o país que, tendo praticamente tudo, se encaminha lentamente para o fundo do poço.
Por isso, não deixaria de ser uma surpresa que, para os argentinos, o futebol seja metáfora perfeita do seu próprio cotidiano, o tango ilustre perfeitamente bem a estética de dor e melancolia que habita a alma desse povo e o seu principal ídolo, Maradona, evidentemente, seja um anti-herói, sublime no campo mas cheio das imperfeições na vida pessoal. Afinal, estava tudo escrito nas estrelas e, aos argentinos, apenas lhes é permitido conjugar os sinais divinos – lembrando que deus é brasileiro – e perceber, se bons observadores forem, as inúmeras coincidências que os direcionam para os capítulos finais desse interminável melodrama histórico. Eu já desconfiava disso ao comprar o livro e tudo se confirmou na medida que avancei a leitura.
Para além de compreender um pouco melhor a identidade argentina, a cada página me via como se estivesse lendo sobre Porto Alegre. Ou sobre os gaúchos. A forma como os argentinos conseguem se autodepreciarem e se supervalorizarem em questão de segundos, como se sofressem de algum permanente e cíclico transtorno bipolar, é algo que também necessita estudo. Sempre com muito método, é claro.
Mas as hipérboles comportamentais são, definitivamente, uma característica que nos aproxima – gaúchos e gauchos – ainda mais que as fronteiras políticas e geográficas. Afinal, lembremos, nós também podemos ter o pôr-do-sol mais lindo do Brasil e a maior praia em extensão do planeta e pouco importa – ou muito, dependendo do lugar de fala – se esse pôr-do-sol ocorre em um Guaíba poluído pela nossa merda cotidiana ou se nossas intermináveis – e retilíneas – praias sejam assombradas, todo verão, pelo famigerado vento nordeste, pela cor marrom da água do mar ou pelas correntezas geladas oriundas do fim do mundo. Nesse caso, fim do mundo não é força de expressão.
Um estrangeiro que arriscar falar mal das nossas façanhas poderá tornar-se mais um “inimigo publico número um”, mesmo que suas observações não sejam nenhuma novidade para nós e que, por nós, tenham sido repetidas inúmeras vezes. Albert Camus que o diga. Algo semelhante, segundo o livro do qual vos falo, ocorre com os argentinos. No caso deles, talvez, haja um agravante comportamental definido pela sua soberba. Afinal, estamos falando de Buenos Aires, uma metrópole internacional, que realmente conseguiu reproduzir Paris – o mais próximo possível – em território americano e não da provinciana, frustrada e mal resolvida Porto Alegre. E isso tem que significar alguma (muitas) coisas.
Lembro de uma conversa com um taxista portenho que, no auge das teses, sínteses e antíteses, bateu o pé em afirmar que eles eram os melhores do mundo em administrarem uma crise econômica. Confesso que tal afirmação, por si só, me pareceu um tanto quanto contraditório, afinal, administrar bem uma crise econômica seria resolvê-la e não vivê-la permanentemente. Nem passou pela minha cabeça explicar isso ao hermano. Pelo contrário, quando meu espanhol se deu por vencido, apenas concordei e assumi minha humilde derrota. “Ok, você venceu”. Surpreendentemente, no entanto, mesmo vencendo o homem não se deu por vencido. Ouvi dele um “pero no és bien asi”.
E devo dizer que, mais uma vez, não discordei do amigo. Me pus em silêncio mais uma vez e, desta vez, não por causa da minha eventual falta de vocabulário para seguir teimando em espanhol. É preciso admitir quando o “inimigo” é mais poderoso. Mesmo eu, que batizei minha produtora com o nome de “Teimoso Filmes” preciso assumir que, em Buenos Aires, sou facilmente derrotado. Sempre haverá teimosos mais do que eu. Entretanto, vai além disso pois, realmente, a eterna crise argentina é algo que provoca minha curiosidade. Eles sempre estão em crise, mas sempre parecem melhores do que nós. Mesmo quando somos nós que proferimos a famigerada frase,“dame dos”, são eles que nos vencem.
Para além da qualidade da literatura e do cinema argentino, o que vi em Buenos Aires, dessa vez, assim como já havia percebido alguns meses atrás quando estivemos no Norte do país – embora o Norte sempre tenha sido mais pobre – é um país – ou uma cidade, no caso – pulsante. Os restaurantes estão sempre lotados, os teatros idem, os café, nem se fala. O metrô segue funcionando bem, o transporte público, no geral, é barato e acessível. Os vinhos baratos e (muito) melhores que os nossos. E a cidade está bem cuidada. Nas ruas, apesar de vermos pobreza, como qualquer grande cidade latino-americana, ao longo da semana que lá estivemos, ao menos, devo dizer que vi menos miseráveis portenhos que pessoas em situação de rua sob os viadutos de Porto Alegre. E isso levando em conta, além da crise, também o fato de Buenos Aires ter o dobro de habitantes que nossa capital longe demais das demais capitais. Por fim, mas não menos importante, famílias inteiras de turistas do interior do país faziam filas intermináveis para acessarem os principais museus da cidade. E isso, no Brasil, quanto muito, vejo somente na Noite dos Museus.
A crise existe, obviamente, e está bastante explicitada na forma como o dinheiro não vale nada. Ao trocar três mil reais em uma loja da Western Union, tive que alugar um carro forte para levar o equivalente, em pesos, para casa. Trata-se de uma broma, evidentemente, mas que ilustra de forma caricata a Buenos Aires financeiramente analógica que encontramos em pleno 2023. Frente a isso, é fato, nosso dinheiro vale bastante quando comparado ao peso. Imaginem o dólar ou o euro. Mas para os argentinos, no geral, me parece que isso pouco importa. Desde que haja parrilla, futebol e cerveja, estão felizes. E o segredo da vida, que faz brilhar nossos olhos, no fundo, não é justamente este? Ser feliz em comunidade? Nisso – assim como em vários outros aspectos – não há muita diferença entre eles e nós. Queremos ser felizes, mesmo que vivamos em crise e em um país de merda.
Não é por acaso que a picanha venceu uma eleição no Brasil. Gracias a la vida.
I. BOCA MIGOTTO