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Foto: Divulgação/OceanGate

MAR ABERTO | No submersível estamos todos nós

por Boca Migotto

Muito se falou, nos últimos dias, sobre os tais milionários presos em um submersível mergulhado a 3.800 metros, no fundo do mar, em busca dos destroços do Titanic. Ok, eu entendo, o Titanic provoca nossa curiosidade e mexe fácil com o nosso imaginário.

Não por acaso o filme de James Cameron tornou-se um fenômeno de bilheteria. Titanic (1997) alcançou a notável cifra de 2,2 bilhões de dólares e foi indicado a 14 Oscars. Ainda hoje a obra figura entre as cinco melhores bilheterias de todos dos tempos. O filme é bem feito, obviamente, e também teve muito investimento na sua produção, no entanto, convenhamos que o imaginário por trás da tragédia do navio que deixou Southampton, na Inglaterra, para nunca chegar a Nova Iorque, nos Estados Unidos, colaborou muito com esse sucesso.

Agora, pergunto, o principal motivo dessa curiosidade em torno do navio seria o fato dele ter afundado na sua primeira viagem, após o mesmo ter sido considerado “inafundável” por seus construtores – impossível não lembrar do “imbrochável” –, ou ter afundado na sua primeira viagem levando, consigo, para o fundo do mar, algumas centenas das famílias mais ricas da época? Seja como for, tanto uma quanto a outra opção compartilham de um mesmo ponto em comum: a arrogância da dita e autoproclamada “elite”. Não por acaso, a história se repetiu com bilionários. E nesse caso, mais uma vez, como tragédia.

Por isso, o que mais me impressionou nesse caso do Titan, o submersível que fazia “passeios turísticos” aos destroços do Titanic, foi o quanto ele, a exemplo do próprio navio do início do século passado, diz sobre nós, seres humanos.

A soberba humana, que nos levou a achar que nada nem ninguém seria capaz de afundar um navio é a mesma soberba que fez bilionários pensarem que poderiam entrar numa lata de sardinhas, lacrada por fora e controlada por um joystick, descer 3.800 metros de profundidade, fazer um post dos restos do Titanic e voltar à superfície, sem correr nenhum risco de vida. Um passeio de final de semana, tipo como quem vai curtir uma tarde no clube de golfe, apostar em cavalos num grande prêmio, utilizar seu camarote em Roland Garros para ver a final do aberto de tênis ou curtir um final de semana no seu iate ancorado próximo às praias da Sicília ou da Grécia.

Tudo muito básico, se não fosse o fato de que, para alguns poucos poderem pagar 250 mil dólares – ou 1,1 milhão de reais – para sentarem no chão claustrofóbico daquele submersível e postarem uma foto do que restou do Titanic, outros milhões de pessoas precisam encarar o Mediterrâneo em botes e barcos precários, pois a iminência da morte em alto mar é ainda menos grave que o inevitável destino que os aguarda em seus próprios países. A diferença entre uns e outros é que os milionários, ao desaparecerem, receberam toda a atenção do Estado que mobilizou, ao custo de outros milhões de dólares, diversas expedições de buscas, bem como o acompanhamento diário da mídia internacional, que dedicou suas capas e contracapas para vender anúncios e faturar mais um pouco em cima da nossa curiosidade mórbida sobre os ricaços perdidos no fundo do mar.

Milhares de imigrantes miseráveis boiando à deriva em um bote no meio do Mediterrâneo não merece nem uma coisa, nem outra. Afinal, tragédia de pobre não vende jornal. Salvo quando, após um ou outro barco naufragar, a maré carrega alguns corpos de crianças para as praias turísticas do sul da Itália. No geral, no entanto, não há helicópteros e aviões sobrevoando o mar, não há especialistas entrevistados para que expliquem os mais variados pontos de vista que acompanham o fenômeno das imigrações modernas, não há dinheiro público que vise ao menos minimizar tamanha dor daqueles que precisam deixas sua terra natal para mendigar a sobrevivência na Europa. Pobre, tal qual cantou Chico Buarque em sua majestosa “Construção”, só é notícia quando morre na contramão e atrapalha o trânsito. Ou, no caso acima, quando atrapalha o final de semana na praia. Afinal, imagino que ninguém gosta de tomar banho de sol ao lado do cadáver de uma criança. Mesmo que tenha sido, em vida, uma criança pobre.

Já os bilionários não. Estes merecem nossa atenção. O que sempre me chama a atenção, pois nos interessa muito mais suas vidas inatingíveis do que a vida de todos aqueles que nos estão muito mais próximos.

Convenhamos, eu, tu e quase todos que convivem conosco, salvo alguma possível exceção, afinal, estas existem para confirmarem a regra, somos muito mais próximos de um imigrante que precisa atravessar o mar em busca de uma nova vida em outro país, do que de um bilionário que pode gastar uma pequena fortuna em um passeio que busca do destroços do Titanic. A explicação é simples, negamos aquilo que somos em busca da projeção daquilo que nunca seremos. Até porque, é bem mais possível para a classe média brasileira perder sua casa ou falir seu negócio por conta de um empréstimo que não pôde ser pago, por exemplo, do que ganhar seu primeiro milhão de dólares. Olhar para o espelho todos os dias e ver o quanto estamos vulneráveis às variáveis do dia-a-dia é tão assustador que é preciso negá-lo para seguir andando para frente. Melhor mesmo é olhar para quem tem tanto dinheiro que seus cotidianos são tão estáveis quanto a fibra de carbono que envolvia o Titan. Embora, segundo algumas conclusões, nem esta é uma unanimidade, uma vez que foi justamente a fibra de carbono que, sob pressão, contribuiu com a implosão do submersível.

Falando em implodir, é inevitável perceber essa história do submersível e não relacioná-la com a arrogância do capitão do Titanic, Edward Smith, que apesar dos inúmeros avisos sobre os perigos de navegar naquela região do oceano, insistiu em seguir seu rumo ao encontro de um inevitável iceberg em meio a um mar bravio, gelado e em noite escura e sem lua. É a mesma arrogância do CEO da OceanGate Expeditions, empresa proprietária do Titan, Stockton Rush, que acreditou tanto na infalibilidade do seu submersível que se juntou aos demais na derradeira expedição. O que ambos tem em comum? A soberba daqueles que pensam ser invencíveis, seja porque são (muito) ricos, seja porque são considerados os melhores em suas áreas.

Elon Musk, dono da Tesla e do Twitter, tenho a impressão, é o melhor exemplar dessa raça. Não por acaso, sua arrogância o faz acreditar que, através da SpaceX, empresa criada para explorar o espaço, irá colonizar Marte como uma alternativa à extinção da vida humana na Terra. Uma obsessão, ao meu ver, completamente irracional. Afinal, é algo impossível para o futuro próximo e totalmente irracional se pensarmos que mal conseguimos cuidar apropriadamente da nossa própria casa, quanto mais viajarmos através do espaço em busca de outro planeta habitável o qual, se existe, já deve ter dono, ou vivermos permanentemente imersos em bolhas de oxigênio no planeta vermelho. Mas ele está certo em uma coisa, realmente corremos o risco de uma extinção humana na Terra. Nesse caso, levando em conta como a Terra já respira por aparelhos, em vez de revertermos esse quadro, isso sim, algo viável e possível, vamos acabar com a humanidade muito antes de conseguirmos botar os pés em Marte ou em qualquer outro planeta, habitável ou não. O que me faz concluir, logicamente, que de nada adianta toda essa exploração sideral se, aqui embaixo, estaremos vivendo numa espécie de metaverso do Planeta dos Macacos (La planète des singes, Pierre Boulle, 1963).

Vivemos a Era da urgência climática. E isso não é sobre diminuir um pouco o consumo de gasolina, encurtar o banho ou trocar a sacola plástica por sacolas ecológicas. A questão é muito mais grave e praticamente irreversível. Ainda mais porque não estamos fazendo absolutamente nada para estancar o processo, quanto menos para reverte-lo. Ciclones, secas, incêndios, marés altas, chuvas torrenciais, tudo isso que estamos vendo acontecer é apenas a ponta de um iceberg enorme que, quanto irromper do fundo do mar, não haverá negacionismo capaz de esconde-lo. Infelizmente, quando isso ocorrer, o negacionismo será o menor dos nossos problemas.

Semana passada o Presidente Lula discursou, em Paris, para a plateia do Power Our Planet, um evento com artistas do mundo inteiro que visa chamar a atenção para o futuro do planeta. Lula disse que quem precisa pagar a conta da crise climática são os países ricos que, há 200 anos, enriqueceram com a Revolução Industrial. Na verdade, a exploração dos recursos naturais nas colônias europeias das américas e da África é ainda anterior e foi, justamente, o que ajudou a financiar a Revolução Industrial. Portanto, é fato que quem mais contribuiu com a destruição do meio ambiente, em todos os continentes e ao longo de tanto tempo, foram os ricos. Sejam eles países, empresas ou pessoas. Sim, pessoas, pois por conta desse processo iniciado na Europa e exportado para os Estados Unidos – e mais recentemente para o mundo todo – com o passar dos anos, muitos cidadãos acumularam tanto capital que, vários, se tornaram ainda mais ricos que países inteiros. Dizem, inclusive, que o próprio Elon Musk pode vir a se tornar o primeiro trilionário. Agora me digam, quantos miseráveis, famintos, violentados e oprimidos são necessários para fazer um trilionário?

Segundo vários estudos, nesses duzentos anos citados por Lula no seu discurso em Paris, a humanidade explorou tanto os recursos naturais do planeta que, a partir de agora, qualquer crescimento maior que 2% ao ano significaria uma catástrofe imediata para todos nós. O ideal, na verdade, é retroceder pois, para se ter uma ideia, atualmente, seriam necessários 1,75 planetas Terra para suprir as demandas de consumo da população mundial. Em 2022 a Terra chegou a 8 bilhões de habitantes, sendo que em 1994, quando éramos “apenas” 5,5 bilhões, um estudo da Universidade de Stanford, nos EUA, concluiu que o máximo que o planeta sustentaria seria em torno de 2 bilhões de pessoas. Isso também ajuda a explicar, dentre inúmeras coisas, por que tanta gente passa fome em diversos países. Afinal, somos “apenas” 6 bilhões de pessoas a mais da carga que a Terra pode sustentar e, pior, somos como gafanhotos sobre uma plantação. Uma praga que, por onde passa, extingue fauna e flora em nome do seu conforto imediato. Portanto, não há mais espaço para esse crescimento que insistimos chamar de progresso, até porque ao mesmo tempo que os recursos estão se exaurindo, também não desenvolvemos nenhuma tecnologia que permita frearmos a iminente catástrofe ecológica a qual estamos caminhando a passos largos.

Por enquanto seguimos, (quase) todos, negando esse futuro iminente e lutando, da forma como podemos, por um mísero espaço ao sol. Quem não quer uma cobertura ensolarada em vez de sucumbir ao mundo das sombras?

Por isso, mesmo nós, meros assalariados, nos devoramos uns aos outros para mantermos nosso pequeno status quo. Dobramos as apostas, e o tempo que permanecemos longe da nossa família, em nome de horas extras que possam bancar esse sonho. Apenas quarenta e oito prestações e o lugar ao sol estará garantido, é o que dizem os panfletos que despertam nosso sonho de uma vida melhor. Ao fazermos isso, no entanto, enriquecemos ainda mais aqueles que já tem demais e, assim, a roda da fortuna segue em movimento. No entanto, por mais que neguemos, chegará o momento quando não haverá cobertura alta o suficiente para nos proteger do tsunami de chorume que atingirá nossas cidades. E, talvez, também não haja mais luz que consiga forçar sua passagem pelas nuvens de fumaça a fim de iluminar nossas prosaicas vidas.

A verdade é que o planeta não suporta mais a soberba dos mais ricos. Seja porque utilizam seu dinheiro, acumulado da miséria de milhões de outros seres humanos, construindo navios ditos invencíveis, foguetes em forma de pênis e arranha-céus com seus rooftops exclusivos – e percebam como tudo tem a ver com tamanho? Freud explica? –, seja porque apenas oito bilionários possuem a mesma riqueza que a metade mais pobre de toda população do planeta. Portanto, nessa toada de homens ricos, brochas e arrogantes, que se consideram imortais por conta das suas contas bancárias, e que por isso acreditam poder entrar numa capsula de titânio para verem os restos mortais do Titanic, o que mais me seduz é que eles tenham mesmo vontade de seguirem com essas suas aventuras. Não que eu queira desejar o mal de algum ser humano mas, talvez, essa seja a única esperança para a humanidade. Que mais bilionários queiram conhecer o Titanic embarcados em um Titan.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento está lançando seu novo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado, defendida em 2021. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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