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MAR ABERTO | Flores

por Boca Migotto

Todo dia a mesma coisa. Os pés pesados sobre o assoalho de madeira desgastada antecipava o inevitável. Abria a porta sempre no mesmo ritmo, quase arrombando-a, e chamava o filho uma única vez. Vamo, tá na hora! Nem esperava resposta, muito menos esperava para ver se ele havia, de fato, acordado. Saia apressada para seus afazeres, pisando forte sobre o mesmo assoalho, casa adentro.

Aproveitando-se da falta de insistência da mãe, e em especial no inverno, Zezinho se virava para o outro lado e voltava a dormir. Já não mais um sono pesado, pois mesmo estando com um pé em cada mundo – dos sonhos e da realidade –, algo lhe dizia que logo a preguiça haveria de ser vencida. Se não por vontade própria, por persuasão materna. Intensa persuasão materna. Dito e feito. Mais uma vez a mãe voltava ao quarto. Não vou avisar outra vez!

Derrotado em suas convicções, Zezinho pulava da cama inspirado pelos gritos da mãe que quase faziam seu coração saltar pela boca. Era o sinal para levantar e o prenuncio de uma ansiedade que, quando adulto, apenas seria amenizada com muita terapia. Mas deixemos o futuro longínquo para mais tarde. Para outro texto. Para outra oportunidade. A urgência, agora, era por levantar-se, vestir-se e correr para a cozinha, onde seu café da manhã o esperava, acompanhado de um saboroso beijo de Sucrilhos com leite.

Bom dia, meu tesouro.

No inverno era mais difícil, claro. Os cobertores de lã sobre o seu corpo franzino pareciam pesar o peso leniente de uma preguiça invencível. Nada era pior que levantar cedo para ir à escola. Em qualquer época do ano. Na primavera, ao menos, os dias tornavam-se menos agressivos e deixar o aconchego dos lençóis parecia menos dolorido. Assim, também a vida da mãe tornava-se mais fácil. Afinal, a vida daquela dona de casa – era assim que ela se definia sempre que precisava preencher uma ficha ou formulário que solicitava informações sobre sua profissão – começa muito cedo e terminava muito tarde. As tarefas eram infinitas. Portanto, pode-se dizer que a primavera conciliava os interesses dessa disputa familiar.

Algumas vezes, apenas algumas vezes, a mãe – e o próprio Zezinho – surpreendia-se com a rapidez com que o filho ganhava a cozinha. Mas isso era raro. Ao menos, em época de escola. Isso não se aplicava às férias e finais de semana, quando ele se levantava antes da mãe e do pai, ansioso por um longo dia de brincadeiras. Nesses dias – quando ele levantava cedo para a escola, não para as brincadeiras – o beijo de bom dia da mãe era complementado por um largo sorriso. Não se sabe se de afeto ou de alívio. Provavelmente os dois.

A primavera passava rápido. Era como visita de médico, batia à porta, entrava e saia sem nem aceitar um cafezinho. Então logo chegava o verão, que também não se prolongava muito e, pronto, lá estavam as árvores nuas novamente, à espera do inverno. Este sim, muitas vezes, inclusive, antecipava-se. Naquela região do país o frio nunca batia à porta. Já era de casa. Tinha a chave, ia entrando sem cerimônia, se acomodando na velha poltrona ao lado do fogão à lenha e lá permanecia, imóvel. Aquecendo-se dele mesmo. Parecia até que nunca ia embora. Por isso, primavera e verão tinham sabor de noite de natal. Eram aguardados, por crianças e adultos, como um Papai Noel carregado de presentes.

Zezinho estava com nove anos de idade e ainda nem compreendia direito as estações do ano. Também não acreditava mais em Papai Noel. Deixou de acreditar quando percebeu que os braços exageradamente peludos do velhinho, os quais a fantasia puída e de mangas curtas não conseguira disfarçar, era bastante parecido com os braços, também peludos, do seu pai. Mas, obviamente, Zezinho sabia que acordar com os passarinhos cantando próximos à janela era sinal de que as férias estavam chegando e isso, por si só, o animava. Agora faltaria pouco para terminar o ano e aproveitar os dias mais longos, livre e solto, de bermuda e camiseta, voando com sua bicicleta pelas ruas de paralelepípedos ou jogando-se sobre a grama rala do campinho de várzea para defender as bolas mais impossíveis da terra. O verão era a liberdade. Ao menos até o primeiro vaga-lume o mandar para casa. Pois esse era o acordo entre mãe e filho. A liberdade sobrevivia até quando o primeiro vaga-lume piscasse seu alarme. De certa forma, funcionava quase como um farol para os marinheiros em alto mar. Um farol que o guiava para casa no horário pré-estabelecido.

A mãe não entendera bem se era efeito da temperatura agradável, empolgação pelas férias ou apenas uma ideia inusitada, dessas que passam inadvertidamente pelas cabeças criativas das crianças, mas embora um tanto surpresa com o pedido do filho que, de pé, na porta da cozinha, já se exibia completamente vestido, penteado e escovado, não vacilou em obedece-lo no seu pedido inusitado. Tirou da gaveta uma faquinha de serra e saiu para o jardim, para colher flores em seu jardim, enquanto Zezinho tomava seu café da manhã.

Na primavera a porta da cozinha ficava aberta já desde de manhã cedo e, por ela, entrava uma luz adocicada, acompanhada de uma aragem um tanto quente, um tanto fresca, mas certamente acolhedora, que Zezinho ainda não sabia, mas imprimiria para sempre na sua memória. Até sua velhice. Foi pela mesma porta, iluminada por um contraluz matinal, que viu sua mãe voltar do jardim com um buquê de flores na mão. Num primeiro momento, no entanto, a atenção dele foi capturada pelo sorriso da mãe. Também este, embora também ainda não soubesse, seria congelado para sempre na sua memória. Um sorriso único, inexplicável e inesquecível.

Que exagerada, pensou consigo, num segundo momento, ao se dar conta da quantidade de flores que a mãe havia colhido. Quando pedira para colher algumas flores para levar para a professora, pensara em três ou quatro botões de rosa. Não aquele sortimento colorido e infinito. Exagerada. A mãe era assim em tudo. Na forma como o acordava, na força com que o abraçava, na comida que colocava no seu prato, na forma como o amava.

Depois de argumentar que, sozinho, nem conseguiria carregar todas aquelas flores até o colégio, a mãe concordara em separar a metade para utilizar parte do buquê em um arranjo de flores para a sala. Mesmo assim, quando Zezinho despediu-se da mãe, a quantidade de rosas, margaridas, tulipas e mosquitinhos era tamanha que mal era possível ver o seu rosto. Ao menos a professora ficaria feliz. Quem sabe até me ajuda na nota final, pensou, embora esse não fosse seu principal objetivo. Ele gostava daquela professora e sabia que, no ano seguinte, não conviveria mais com ela. Aliás, tudo seria diferente. Várias matérias, uma professora para cada matéria e provas para cada matéria. Se dependesse das flores para passar de ano, nem os exageros da mãe dariam conta de tantas matérias.

Duas quadras depois, quando ainda estava absorto em seus pensamentos sobre seu futuro escolar, Zezinho avistou os colegas em frente ao portão do colégio. Uma certa insegurança subiu por sua espinha e enrubesceu seu rosto ao se dar conta que aquelas flores certamente seriam motivo de piadas e chacotas. Felizmente eram poucos retardatários que ainda não haviam obedecido ao toque da sineta. Infelizmente eram justamente os colegas que mais faziam troça dele que lá permaneceram. Até tentou se aproveitar do exagero da mãe para esconder seu rosto e passar desapercebido por eles, mas para isso, ao contrário da expectativa, o buquê não serviu. Zezinho foi seguido por todos, por suas risadinhas e por seus tapinhas nas costas, até quase dentro da sala de aula onde todos entraram tão atrasados, e tão barulhentos, que a cena contrastou radicalmente com o silêncio absoluto dos demais colegas. Isso porque, mal havia começado a aula e a professora já estava xingando a turma.

Foi quando ela também silenciou, olhou para a porta e, furiosa, mandou todos sentarem. Como numa fração de segundos, então, a professora mudou sua expressão ao perceber as flores. Zezinho ainda era jovem demais para decodificar gestos e olhares dos adultos mas, embora houvesse um dedinho de felicidade na forma como ela olhava para ele, e isso até ele conseguira perceber, também não lhe pareceu o tipo de olhar de uma professora feliz, prestes a receber flores. Ou maças. Ou peras. No caso, flores. Foi então que ela correu para cima dele, tão apressada que chegou lembrar sua mãe caminhando pelo corredor de casa de manhã, na hora de acordá-lo. Não perguntou nada. Apenas tomou-lhe o buquê das mãos, com tamanha gula que Zezinho se esquivou para o lado, com medo de ser devorado pela volúpia com que a professora apossou-se das flores.

Percebeu-se confuso, no entanto, ao se dar conta que ela começara a distribuí-las para toda a turma. Uma a uma, cada colega, menino e menina, foi presenteado por uma flor. Uma rosa para um, um tulipa para outra, uma a uma, todas as flores daquele buquê que Zezinho havia levado exclusivamente para a professora, desapareceram, fragmentando-se em um rápido ritual de partilha coletiva. Será que ela não tinha gostado das flores? Por que cargas d’água ela estava distribuindo todas as flores entre seus colegas. As flores que sua mãe havia colhido a pedido dele, para presenteá-la?

Ao terminar o estranho ritual e mandar todos se levantarem para formar fila, a professora perguntou se alguém havia ficado sem sua flor. Zezinho, então, era o único de mãos vazias. Logo ele, que há poucos minutos atrás estava sendo caçoado pelos colegas por carregar um enorme buquê em suas mãos, agora, era a única criança daquela sala sem uma única flor em sua mão. Por isso Zezinho ergueu a mão como sinal de alerta. Ao perceber isso a professora olhou para os lados até encontrar num botão de rosa duplicado na mão de um colega. Repartiu a rosa, retirando o botão menor, e o alcançou para Zezinho. Toma! E agora vamos que já estamos atrasados. Sempre a turma B é a última a chegar.

Porta aberta, em fila, de um lado meninos, do outro meninas, todos seguiram a professora pelos corredores mal iluminados do colégio até o salão de eventos onde, como dissera a professora, todas as demais turmas aguardavam os retardatários para a missa. Para surpresa de Zezinho, também os demais alunos da escola, todos, e todas, desde as turmas mais novas até os mais adiantados, seguravam suas flores. Zezinho olhou para a minúscula rosa entre seus dedos e compreendeu que alguma coisa faltara naquela relação dele com a professora. E da professora com eles todos. Se ao menos tivesse escutado a mãe e levado todo o buque que ela colhera logo cedo, agora não estariam debochando dele por conta do tamanho daquela rosa que, timidamente, ele segurava entre seus dedinhos.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Em 2023 lançou seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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