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MAR ABERTO | Final de ano, Trump e tudo de novo

por Boca Migotto.

 

Mais um ano que se encaminha para o seu final.

E que ano. Cheio de altos e baixos. Mais baixos que altos. E convenhamos, os baixos foram bem abaixo de tudo o que já se imaginava baixo. Alguns podem argumentar que é preciso olhar para o copo com água pela metade e enxerga-lo meio cheio. Outros dirão que o momento está ruim mesmo, o mundo em pânico, à beira de uma terceira guerra mundial e, justamente por isso, é preciso otimizar os momentos bons. Para esses eternos otimistas, é fundamental olhar para os altos como se estes tivessem sido ainda mais altos do que realmente foram. O Everest é o limite, pois o bem sempre vence o mal. É só esperar pelo fim do filme. Ou da série, uma vez que estas estão na moda já há um bom tempo. Nessa lógica, o fim de ano seria apenas mais um episódio que acaba. Há muito o que desenrolar na próxima temporada e o que conta a favor, para nós, é justamente a qualidade técnica dos roteiristas do Brasil. Pode ser. Enquanto escrevia essa coluna chegou a notícia da prisão de Braga Neto, efetuada exatamente no dia do aniversário da ex-Presidente e ex-guerrilheira, presa na Ditadura Militar, Dilma Rousseff. De fato, os roteiristas são bons. Mais um motivo para duvidar de um final feliz.

Dentre tantos baixos, e mais baixos ainda, que ocorreram em 2024, eu destacaria dois em particular. Um mais local, que nem por isso deixa de estar conectado ao macroambiente, e um internacional, que também, cedo ou tarde, repercutirá aqui na província. Pensando em Rio Grande do Sul, então, sem dúvida alguma, a enchente que nos atingiu em maio é um fato tão negativo que chega a estar abaixo da linha da cintura. Esse golpe doeu. Bastou uma semana de chuvas para vermos a água levar colheitas, pontes, fábricas e pessoas. Mais do que isso, a água levou a memória de milhares de famílias que perderam tudo, seus documentos, suas fotografias e, em alguns casos, até seus mortos, arrancados da sepultura pela força das águas. Nunca imaginei que viveria para ver algo tão catastrófico às portas da minha casa, invadindo as casas de amigos e amigas, e levando os lares de tantos gaúchos embora. Depois disso, ao menos, imaginei que Porto Alegre votaria em alguém mais comprometido com a cidade, que cuidasse melhor das pessoas e se preocupasse menos em privatização. Ledo engano, chegaram as eleições municipais e o Rio Grande do Sul demonstrou, mais uma vez, sua dificuldade em enxergar o básico. Reelegemos Melo em Porto Alegre e nem terminou o ano, o prefeito anunciou a privatização do DMAE, justamente o órgão municipal que teria condições de evitar esta e outras tragédias semelhantes, que o futuro ainda há de nos apresentar. A cidade está largada, as vias públicas esburacadas, o Centro abandonado e as pessoas desiludidas com seu futuro. Qualquer chuvinha, agora, é alagamento. Mas, antes mesmo das águas subirem para as calçadas e cobrirem os carros, olhar para o céu escuro é sinônimo de medo. Tudo isso fruto da negligência. Seja em relação à forma como destruímos a natureza em nome de um progresso equivocado, seja em relação à forma como as últimas administrações municipais sucatearam os órgãos públicos em Porto Alegre. Votamos mal em Porto Alegre, votamos mal no Brasil, votamos mal no mundo inteiro. A extrema-direita, e sua pauta negacionista, avançam sobre a mínima sobriedade que o momento histórico nos demanda.

O planeta todo está desesperançoso. Guerras, tragédias ambientais, aumento da pobreza e concentração de renda nas mãos e contas bancárias de cada vez menos pessoas. O fosso da desigualdade se amplia e a resposta das pessoas é eleger justamente aqueles que fazem isso acontecer. Não hoje. Não há décadas. Mas há séculos. As redes sociais emburreceram o mundo, disseminaram o ódio e ampliaram as chances da extrema-direita em todos os países. Nossa compreensão sobre a sociedade, se já era limitada até a chegada das redes sociais, agora se reduziu a uma sequência de vídeos bobos de até quinze segundos. Viramos zumbis em vida, caminhando pelas ruas de cabeça baixa, imersos em uma realidade paralela que brilha nas telas dos nossos celulares. Não é por acaso que tropeçamos cotidianamente sem nos darmos conta do tamanho do buraco a nossa frente. Nunca imaginei que um partido nazista se criaria, novamente, na Alemanha. Nem nos meus piores pesadelos acreditei que Donald Trump poderia ser reeleito nos Estados Unidos após a forma como ele saiu da Casa Branca em 2020. Mas foi. E com méritos. E com maioria na Câmara e no Senado, sendo que no judiciário isso já ocorria. No âmbito global, não consigo imaginar nada mais baixo que possa ter ocorrido em 2024. A eleição de Trump está abaixo da sola do sapato. Dentre todos os problemas que representa a volta de Trump para comandar o mais poderoso (ainda) país do planeta como, negacionismo climático, discurso de ódio contra as minorias, racismo, intervencionismo internacional, guerra fiscal, um me preocupa em especial. O tratamento dispensado aos imigrantes que procuram os Estados Unidos com a esperança de (re)construírem uma nova vida, longe da miséria e da perseguição em seus países.

Sobre isso, há um podcast que eu curto muito e que me impactou profundamente ao tratar do tema. É produzido pela Rádio Novelo, se chama “Cartões postais do fim do mundo” e é narrado pela repórter Carol Pires. O podcast relata a travessia da selva do Darién, no Panamá, por levas de imigrantes que, a pé, cruzam a América Central a fim de chegarem aos Estado Unidos. Ouvi esse episódio caminhando, quando voltava da PUCRS, também a pé, após uma aula de História da América Latina. Nesse dia, enquanto escutava o referido episódio sobre o Darién, meus olhos lacrimejaram e me vi chorando. Caminhando e chorando, pela avenida Ipiranga.

O Darién é uma região de floresta fechada, entre o Panamá e a Colômbia, o qual, de tão indômito, não foi dominado nem pela tecnologia moderna de construção. Procure no Google e você vai descobrir que a primeira vez que o Darién foi citado pelo New York Times, em 1957, a reportagem explicava que este trecho de mata se apresentava como um dos mais difíceis problemas de engenharia que estariam inviabilizando a construção da Rota Panamericana. Para os mais chegados ao tema, essa rota foi desenhada para aproximar as três américas. Inicia no Alasca, território dos Estados Unidos, localizado acima do Canadá, e segue até a Terra do Fogo, no Sul da Argentina. São 30 mil quilômetros de rodovias interconectadas interrompidos, apenas, pelo Darién. Na tentativa de vencer as dificuldades impostas pelo Darién, em 1962, os Estados Unidos enviaram para a região equipamentos exclusivos do exército, a fim de finalmente subjugarem a natureza e complementarem a rota. Nada feito. Nem o exército mais poderoso do planeta venceu o Darién e o projeto foi abandonado. Tanto que aqueles que realizam essa viagem pela Rota Panamericana, não importa se do Norte para o Sul, ou do Sul para o Norte, ao chegarem na região, precisam realizar a travessia de barco.

É nessa região impossível de ser dominada pelo exército americano e pela engenharia moderna que homens, mulheres e crianças, desesperados pelas suas condições de vida em seus próprios países, arriscam suas vidas na sua travessia. Se não bastasse a natureza íngreme, a região é dominada por milícias, traficantes e sequestradores. Uma vez dentro da selva, ninguém sabe se vai sair do outro lado. Muitos morrem pelo caminho. De fome, de doenças, à bala. Mulheres, então, invariavelmente são estupradas. E crianças sequestradas para serem vendidas. Estamos falando do inferno na Terra. Bom, um dos infernos, afinal, estes são inúmeros.

A repórter Carol Pires teve a ideia realizar essa travessia para acompanhar a jornada desses imigrantes. No entanto, ela, pessoalmente, não fez a viagem. Ficou na base, assessorando uma equipe formada por especialistas de diversas áreas. Um ex-combatente do Exército da Inglaterra, especializado em selvas tropicais, um médico, cinegrafistas e uma jornalista americana, filha de pais colombianos, Natalie Leticia Gallón. É dela a versão mais longa do podcast produzido em parceria com a Radio Novelo, narrado em espanhol e que se chama No Vengan!. Nesse, o relato é in loco, narrado pela jornalista que realizou a travessia e gravado ao longo dos dias que a equipe permaneceu no meio da selva, caminhando pelas mesmas trilhas que os imigrantes. As entrevistas são desesperadoras. Pessoas que estão abandonadas pelo caminho, sem mais condições de caminhar e nem de serem socorridas pois, no Darién, é cada um por si. Ajudar alguém em apuros pode significar sua própria morte. O desenho de som, constituído por sons da natureza, pelo choro das crianças famintas ou das mães desesperadas, que não sabem mais o que fazer para acabar com todo aquele sofrimento infringido aos próprios filhos, complementam a atmosfera desse podcast.

Se você tem estômago, indico escutar os dois podcasts para compreender um pouco melhor o tamanho do problema da imigração na América Latina. Um problema que, ao contrário do discurso hipócrita de Donald Trump, que vendeu soluções fáceis, não vai acabar apenas com o fechamento das fronteiras. Ao contrário, se intensificará ainda mais ao longo das próximas décadas. Não haverá polícia aparelhada, exército sofisticado e muros altos o suficiente para impedir que milhões de pessoas lutem por sua sobrevivência quando o agravamento das condições naturais – secas, enchentes, terremotos, furacões –, por conta da crise climática, ampliar ainda mais a precariedade social em seus países de origem. A imigração é um dos mais importantes temas da América Latina nesse século. Meio milhão de pessoas tentam atravessar o Darién por ano e esse número só irá aumentar. Hoje, a maior parte desses imigrantes é formada por colombianos, venezuelanos, haitianos e africanos, que primeiro atravessam o oceano até a América do Sul para, daqui, tentarem alcançar os Estados Unidos por terra. Mas com a crise climática agravada, rapidamente teremos brasileiros, argentinos, paraguaios, enfim, milhões de nacionalidades em busca, não mais do sonho americano, mas, apenas, de sobrevivência.

A eleição de Donald Trump, provavelmente, tenha sido o ponto mais baixo desse ano já bastante catastrófico. E não falo isso porque não gosto dele. Não se trata de algo pessoal. O problema é o que ele representa, pensa e como age. Trump prometeu expulsar mais de 25 milhões de imigrantes dos Estados Unidos. E venceu as eleições por causa disso. Até ex-imigrantes, hoje estabelecidos no país e esquecidos do seu próprio passado e de suas origens, votaram nele para se “livrarem” dos novos imigrantes. Agora imagine se, de fato, Trump conseguir expulsar 25 milhões de pessoas. O tamanho do problema social que isso representará para o mundo.

Esse ano de 2024 está no fim. A partir de janeiro todos nós teremos que encarar, cotidianamente, Trump no poder. Não consigo nem imaginar o desastre político-social que isso vai representar para o mundo, mas uma coisa, infelizmente, tenho certeza. Ao contrário do que sempre nos venderam, o bem não triunfa no final. No entanto, por outro lado, a História saberá colocar cada um no seu devido lugar. Mesmo que tentemos reescreve-la, a História resiste. E, por isso, ao menos para não terminar essa última coluna do ano tão para baixo, posso dizer que um motivo, pessoal, para justificar o brinde de Natal existe. Essa semana passei na seleção de doutorado em História, na PUCRS e, se tudo der certo – para realizar essa pesquisa precisarei de uma bolsa – 2025 será o ano quando retornarei à academia como doutorando. Mais uma vez. Afinal, se não podemos vencer o mal, só nos resta, mesmo, resistir. E nada mais “contramão”, para esses tempos loucos, que resistir estudando História. Sobretudo a história da América Latina, “un pueblo sin pernas, pero que camina”.

Feliz Natal e aproveitem o Ano Novo.

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Em 2023 lançou seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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