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Foto: Arquivo Pessoal

MAR ABERTO | Entrei no EB, vesti VO

por Boca Migotto

A data é 10 de março de 1995, meu décimo nono aniversário. Em vez de estar em casa, no conforto do chamego materno, curtindo a família e os amigos, eu estava sentado sobre o paralelepípedo quente do 6 Batalhão de Comunicação Divisionária de Bento Gonçalves, angustiado para saber se eu seria liberado do serviço militar obrigatório.

Não fui. Aquele meu aniversário passou lento e triste. O dia seguinte também, assim como toda aquela semana e mais outras quatro. Depois daquele 10 de março, voltei a ver meus pais, novamente, somente em meados de abril, quando foi encerrado o período de internato.

Contrariando a sabedoria do meu pai e fazendo jus a uma teimosia que me acompanha desde sempre – com a maturidade, ao menos, aprendi a utiliza-la de forma minimamente inteligente – não me alistei na vizinha cidade de Barão, onde absolutamente nenhum jovem era recrutado, para fazê-lo em Carlos Barbosa, minha cidade natal. Meu primo mais velho, de Porto Alegre, anos antes fizera exatamente isso e fora dispensado fácil, fácil. Portanto, eu também estava certo que me livraria das amarras do EB. Era filho único, meus pais já pessoas de idade avançada e eu trabalhava e estudava para o vestibular. Impossível me pegarem. Por isso não me esforcei muito. Me apresentei de cara limpa, sem nenhuma artimanha ou história triste para contar. Não deu outra, fase após fase fui percebendo minhas chances de cair fora diminuírem até o dia quando, efetivamente, percebi que estava preso. E assim permaneceria por exato um ano, quando finalmente dei baixa em um 10 de março chuvoso de 1996.

Foi um ano de atraso na minha vida, mas não reclamo. Toda experiência, de alguma forma, é válida. Vejamos. Fui obrigado a rastejar na lama e na merda de vaca, mergulhar em arroios fétidos e gelados em pleno inverno serrano, dormir (?) na chuva, “pagar” milhares de flexões, virar noites de inverno acordado em guaritas sem portas e janelas e conhecer de perto a injustiça da meritocracia militar. Mesmo assim, insisto, foi um ano de aprendizado. Acho que foi a primeira vez que aprendi a fazer do limão uma limonada.

Que outra saída um ser humano ainda em formação poderia ter frente à imposição do Estado, além de baixar a cabeça e prestar continência? Meu cabelo comprido foi ceifado, minha autoestima reduzida a um eterno senta-e-levanta-um-dois e meu rock’n roll substituído por inúmeros hinos cantados em formação de sentido, perante a bandeira. Meus estudos trocados por muita ordem unida e uma permanente tensão de quem desconfia que está sempre errado, não importa a situação, e por isso, cedo ou tarde será punido.

No entanto, mesmo que incipientemente, e ao contrário da maioria dos meus colegas, eu já era um ser político em formação. Já me identificava com a revolução cubana – hasta la victoria, sempre – me considerava um cidadão de esquerda e até já havia lido a orelha do Capital, de Marx. E isso, devo esclarecer, dificultou um pouco as coisas para os cabos, sargentos e tenentes que tinham, por missão, nos moldar a sua imagem e semelhança. Por outro lado, também logo percebi que dar murros em ponta de faca machucava, e não era a faca que sentia a dor. Aos poucos fui substituindo minha rebeldia adolescente por uma certa inteligência emocional, o que exigiu que eu me adaptasse, minimamente, à disciplina militar. Caso contrário não sobreviveria ao quartel.

Nessas circunstancias, as amizades foram fundamentais. Embora hoje a grande maioria seja bolsonarista, naquele momento éramos uma família de jovens órfãos unidos em nossa opressão. E disso dependia, inclusive, a nossa própria sanidade mental. A lavagem cerebral foi intensa.

O mais pacifista dos recrutas, quando se dá conta, está transformado num ser arrogante que, por vestir um uniforme verde oliva se percebe melhor que os civis. E estou falando de soldados EVs – Efetivo Variável – os mais insignificantes na cadeia alimentar do Exército. Imaginem os generais de quatro estrelas. Lembro que um dos nossos passatempos preferidos, inclusive incentivados pelos sargentos e tenentes, era obrigar os soldados da Brigada Militar a prestarem continência para nós quando por eles passávamos na rua. Arrogância e ignorância pouca – sempre juntas – era bobagem.

Em meio a toda essa confusão de sentimentos e, claro, muito abuso de poder por parte das autoridades mais graduadas – e para um soldado EV, TODOS são, sempre, mais graduados – as crenças militares são transmitidas como verdades absolutas. E, claro, há método nisso e este consiste em subjugar os mais fracos constantemente, num permanente morde e assopra. Nas primeiras quatro semanas, quando os recrutas recém egressos se veem presos em um ambiente hostil e desconhecido, a opressão é maior e vem de todos os lados. Não é raro alguém se desestruturar completamente frente os abusos de poder, sejam eles verbais e psicológicos ou, até, físicos. Muitos não suportam a pressão. A humilhação é tamanha que alguns choram desesperados, outros gritam e há, até, aqueles xingam os superiores. Nesse caso, a disciplina militar é aplicada ainda mais severamente.

Cabos, sargentos e tenentes, responsáveis diretos por essa doutrinação, são incentivados a destruírem o caráter pessoal de cada ser humano até este perder completamente a sua individualidade e obedecer às ordens dos superiores sem mais nada questionar. É o método Bolsonaro. Lembram quando ele disse que era preciso destruir tudo para reconstruir do zero. É o que fazem com os recrutas nessas primeiras quatro semanas de Intensivo. Sem nos darmos conta, fomos quebrados na nossa autoestima, passamos a evitar perguntas, baixamos a cabeça e obedecemos as autoridades sem maiores questionamentos. É assim que se começa a dominar corações e mentes. Esse é objetivo do Exército, esse foi o objetivo do Bolsonaro presidente.

Para que isso funcione plenamente, no entanto, é preciso revisitar a história. A reconstrução das narrativas são uma estratégia antiga e muito aplicada nas Forças Armadas. Novamente, há método para isso.

No período das quatro semanas de internato, os dias passam rápido pois estamos sempre em atividade. De manhã, já cedo, após cantar o hino, pratica-se ordem unida. Direita, esquerda, direita, esquerda, sem parar, até o almoço. Gritos de guerra fazem parte dessa atividade. Na primeira parte da tarde, as lições são mais teóricas. Lembro bem de passar horas montando e desmontando um fuzil com os olhos vendados. Mais ao final da tarde, atividade física novamente. Em formação, todos correm cantando juntos, e muito alto, no mesmo ritmo das passadas. Essas corridas até eram agradáveis, pois era a única forma de sairmos das amarras do quartel e respirarmos um mínimo de liberdade urbana. Na volta, todos para o banho, janta e, quando o corpo está esgotado e não oferece mais a menor resistência, todos reunidos no auditório para palestras motivacionais sobre a importância das Forças Armadas.

Uma delas nunca me saiu da cabeça. Numa dessas noites um tenente nos contou que o Exército havia tomado o poder em 1964 e, após organizar o país, devolvido de mão beijada aos incompetentes políticos civis. Lembro de olhar para o lado e perceber olhares ingênuos e complacentes. Todos, praticamente sem exceção, estavam acreditando cegamente naquela historinha para EV dormir. A lavagem cerebral que todos nós recebíamos não tinha limites. De dia gritavam e nos humilhavam, mas à noite, após a janta e um banho rápido, porém relaxante, falando baixinho, quase sussurrando, faziam nossa cabeça juvenil.

Na verdade, a História – com H maiúsculo – nos ensina que as Forças Armadas, ao contrário do que insistem nos contar, tiveram pouquíssimas oportunidades de defender honrosamente o país. Ao contrário, desde a Proclamação da República, o Exército principalmente, mas também a Marinha e a Aeronáutica, estiveram por trás dos inúmeros golpes institucionais que atrasaram a nossa vida e a formação de uma verdadeira nação. E muitas vezes, inclusive, isso se deu a serviço de potencias estrangeiras. Como em 1964, quando tomaram o poder subsidiados pela CIA norte-americana. Mas as tentativas de golpes ou golpes militares efetivados, ou com militares envolvidos, pontuam a nossa História desde 1889 e seguem ao longo dos anos: 1891, 1930, 1937, 1945, 1954, 1964 e, finalmente, 2023. Dessa forma, ao contrário de as Forças Armadas simbolizarem a tão exaltada independência do Brasil são, na verdade, a força motriz por trás da desestabilidade nacional ao longo de mais de 100 anos de História.

Não foi diferente no último domingo quando um horda de terroristas destruiu os palácios na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Visto com desconfiança pelo governo Lula, o GSI – Gabinete de Segurança Institucional, desmobilizou propositadamente o esquema de segurança do Palácio do Planalto. Há relatos, inclusive, de que a porta estava aberta, destravada pelo lado de dentro, para que os terroristas adentrassem sem maiores dificuldades. Mesmo sabendo da possibilidade de invasão, algo que todos já advertiam há semanas, meses e até anos – inclusive incentivados publicamente pelo próprio Presidente –, o órgão dispensou 36 homens do Batalhão da Guarda Presidencial que, por sua vez, em vez de tentar inviabilizar a depredação do patrimônio público, se pôs em defesa dos terroristas. Isso ocorreu ao longo de toda a invasão terrorista aos prédios públicos e seguiu após o apaziguamento da situação, quando soldados da Polícia Militar do Distrito Federal foram enviados para, finalmente, desmobilizarem o acampamento em frente ao Quartel General do Exército na Capital Federal. Claro que havia um motivo para isso. Evitar o flagrante e dar tempo para que parentes e amigos da “família militar” pudessem fugir.

Aparelhado ao longo de quatro anos, quando finalmente foi demandado, o Exército não apenas falhou vergonhosamente em defender a nação, mas, junto à Marinha e Aeronáutica, fez parte da conspiração golpista que visava a manutenção autocrata de Bolsonaro no poder.

Picanha, cerveja artesanal, Viagra, prótese peniana, leite condensado e salários polpudos para um bando de general incompetente, que passa a carreira gastando recursos públicos em viagens e cursinhos de confraternização, foi o preço pago por Bolsonaro para garantir a fidelidade das Forças Armadas ao seu projeto de poder. Ao longo de dois meses, as três Forças não só apoiaram, mas incentivaram os bolsonaristas que se mantiveram varonis, arquitetando atentados terroristas em frente aos quartéis.

Assim como relatei acima, os militares acreditam que são melhores que os civis. Mais do que isso, se enxergam como um tal “poder moderador”, expressão muito utilizada por integrantes do governo Bolsonaro nesses últimos quatro anos. Criado por Dom Pedro I, na Constituição de 1824, como um artificio que lhe garantia amplos poderes para interferir nas atividades parlamentares, o “poder moderador” foi extinto com o fim do Império e a implantação da República. Quer dizer, melhor do que ninguém, os milicos que demandam, para si, um poder imperial, deveriam saber que isso foi suprimido pelo próprio golpe impetrado por eles em 1889. No entanto, não lhes interessa a Constituição e a disciplina quando, estas, não lhes beneficiam. Insurgentes, seu desapreço à democracia é explicitado de diversas maneiras. Seja negando-se a prestar continência a um presidente eleito democraticamente, seja conspirando para um golpe de estado. Ao contrário de servirem à nação, esses altos oficiais, seguidos por seus subalternos, servem somente aos seus próprios interesses.

É triste dizer isso, mas quando generais apenas toleram a democracia desde que esta os satisfaça e, por eles, seja chancelada conforme suas vontades, a República não passa, na verdade, de uma republiqueta das bananas. E isso precisa acabar. Pisar em ovos nas relações com milicos golpistas, a História – a mesma, com H maiúsculo – nos ensina, nunca foi a melhor opção. É preciso por um ponto final nessa relação de subserviência do poder civil ao poder militar. Ou vai ou racha, até porque, se mantivermos essa postura medrosa frente a tal insubordinação, será apenas uma questão de tempo para o golpe ocorrer novamente. Dialogar e ceder aos caprichos da caserna nunca deu certo. É preciso fazer como nossos vizinhos que cortaram o mal pela raiz. Nossas Forças Armadas precisam compreender que trabalham para o povo, conforme está determinado na Constituição, obedecendo fielmente o presidente eleito. É assim que ocorre em verdadeiras democracias pelo mundo como na França, Alemanha, Estados Unidos, Chile e, inclusive, na Argentina. É assim que tem que ocorrer no Brasil. Se ainda não compreenderam, é preciso explicar uma última vez. E que seja urgente. E que seja a última. Que saibamos sair desse permanente serviço militar obrigatório. De uma vez por todas.

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento está lançando seu novo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado, defendida em 2021. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.

 

 

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