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MAR ABERTO | Capítulo 22

por Boca Migotto

Acordou com o telefone tocando. Pegou o celular do bolso da calça. Foi quando, aliás, se dera conta que dormira vestido. Foi quando, aliás, se dera conta que era viúvo. Nada daquilo havia sido um infeliz pesadelo. Olhou a tela do celular e era Henrique. Que droga, preciso contar ao piá. Mas não agora. Primeiro, preciso me restabelecer, raciocinar, racionalizar. Deixou o telefone tocar até este se calar. Levantou, foi até o banheiro, tirou toda a roupa, abriu a torneira, esperou esquentar e, então, mergulhou na correnteza do chuveiro, por onde jorrava uma água fumegante.

Enquanto esfregava a sujeira da sua pele, refletia sobre o significado de tudo aquilo. Havia alguma razão que ele ainda não teria compreendido? Na busca por respostas, baixou a cabeça e percebeu a água se perder pelo ralo. Tingida de terra e areia, ela desaparecia sabe-se lá para onde, levando consigo fragmentos daquela noite maldita. No final, toda água encontra o mar, não importa o quão longe esteja dele. Os maiores rios da terra têm seu nascimento em algum degelo insignificante ou num banhado desprovido de grandiosidade. No principio são apenas gotas, poças, pequenos córregos, que cavam na terra e na rocha o caminho mais fácil em busca do seu futuro. Aos poucos, no entanto, as águas ganham velocidade morro abaixo. Vão se encontrando pelo caminho, adquirindo força em cascatas que nos tiram o fôlego, muitas vezes, de tão belas e imponentes que são. Sobrevivem a penhascos, fazem rolar pedras consigo, carregam árvores inteiras em sua correnteza e suicidam-se de alturas surreais para sobreviverem e acalmarem-se lá embaixo, em berço esplêndido. Às vezes apressadas, às vezes quase paradas de tão sonolentas, seguem seu destino. Continuam sua busca pelo mar embora, talvez, nem saibam da sua existência. Instintivamente, levadas pelos relevos, cumprem o ritual ao qual foram designadas.

No seu trajeto fornecem vida a animais e plantas sem nada pedir em troca. Cortam quilômetros e quilômetros de terras, margeiam povoados, cidades, metrópoles das quais recebem ingratidão. Sem reclamar, desempenham o papel de levarem embora toda sujeira e memórias das quais homens e mulheres querem se livrar. Querem esquecer. Como quando puxamos a descarga de nossas casas sem nos perguntarmos para onde aquela água, até então translúcida e inodora, está levando nossos dejetos. Você se faz essa pergunta toda vez que dá a descarga? Dessa forma, de translúcidas, pouco a pouco as águas tornam-se barrentas. Muitas vezes são tão mal tratadas que perdem suas características mais básicas. Tornam-se pesadas, fétidas, escuras, intragáveis. Algumas vezes são aprisionadas sob nossos pés, numa tentativa vã de dominá-las e escondê-las, pois, sujas, tornaram-se também indesejáveis. Viramos as costas para elas, como se aquele velho rio, nos fundos da nossa cidade, nunca nem tivesse existido. Não fosse digno da nossa contemplação.

Mas não adianta fazer de conta que não existem pois, independente da nossa indiferença, as águas seguem sua aventura até o inevitável encontro com o mar, para onde carregam todo o passado do qual foram testemunhas. Então, uma vez misturadas, as águas doces, sujas e descrentes encontram o final da sua jornada. E são domadas pela grandiosidade dos oceanos. Misturam-se ao sal e, cedo ou tarde, retornam à terra em forma de ondas. Às vezes pequenas, suaves, às vezes grandes e vingativas. E assim o fazem por milhares e milhares de anos. E assim seguirão fazendo por sei lá quantos outros milhares de anos.

Alheias a nós e ao nosso desrespeito as águas nos lavam o corpo e a alma num eterno ciclo de vida e morte. Sentindo-se limpo, Pedro fecha a torneira do chuveiro e se seca antes de retornar para a sua cama. Lá permanecerá imóvel por dias.

PS: aproveitando que estamos em época de Feira do Livro em Porto Alegre, o texto dessa semana, na minha coluna, foi retirado do livro “A última praia do Brasil”. Na praça os jacarandás e ipês florescem enquanto, por aqui, é um forma de compartilhar um pouco do meu último livro e, claro, divulgá-lo. Quem tiver interesse, pode achá-lo na banca Érico Verissimo, na Feira do Livro, e através dos sites da Editora Bestiário e na Amazon.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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