por Boca Migotto
Andei um tanto ausente nessas últimas semanas, mas a desculpa é boa. Estava correndo para finalizar meu próximo livro, A última praia do Brasil, a ser publicado ainda este ano. Portanto, nos próximos meses, se tudo correr conforme o previsto, teremos um lançamento para comemorar.
Após o Na antessala do fim do mundo, publicado em 2020, este será meu segundo romance. Se, no primeiro, o personagem Diego viajava pela Argentina, num permanente deslocamento em busca do irmão que vive – ou viveria, é preciso ler o livro para saber – na Terra do Fogo, agora, o novo personagem, Pedro, de A última praia do Brasil, praticamente não sai de casa. E sua casa é, justamente, a fronteira do Brasil com o Uruguai. Mais precisamente, a Barra do Chuí. Se levarmos em conta que o país foi achado, pelos portugueses, na Bahia, esta seria, de fato, a última praia. No entanto, claro, tudo é uma questão de percepção. A Barra do Chuí até pode ser nossa última praia, mas para os uruguaios é a primeira. A primeira praia do Brasil.
Esse livro é parte de um processo maior. Se, o meu primeiro livro nasceu da impossibilidade de ser filmado, uma vez que foi concebido para ser um road movie protagonizado pelo amigo e ator Leonardo Machado, falecido precocemente em 2018, este que estou prestes a lançar nasce como livro mas, já de antemão, pensado em um dia virar filme. O futuro dirá se os personagens, Pedro, Ana, César e Henrique, um dia, ganharão rosto e voz na telona.
Mas essa coluna não é sobre o livro. Ao menos, não apenas, não diretamente. No entanto, claro, não perderei a oportunidade de já divulga-lo e sugeri-lo aos meus leitores. Quem me lê por aqui, ou já leu meus primeiros livros – Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre, embora não seja uma ficção, estabelece uma bela ponte entre o primeiro e este próximo livro – tenho (quase) certeza de que gostarão do resultado. Nesse texto, aqui na Rede Sina, no entanto, me proponho a refletir sobre a fronteira do Brasil com o Uruguai, cenário onde se passa a história do protagonista Pedro.
A fim de finalizar o livro em questão estive lá nesse último final de semana. Não foi a primeira. Conheço as cidades da fronteira com o Uruguai há muito tempo. Meu trabalho, como cineasta, me proporcionou inúmeras chances de filmar a região.
E a cada ida para a fronteira, fosse com o Uruguai, fosse com a Argentina, mais seduzido pelo imaginário fronteiriço eu ficava. Ao ponto de virar quase uma obsessão. No entanto, a grandeza do rio Uruguai, que separa o Brasil da Argentina, dificulta uma integração maior como aquela que ocorre mais ao sul, na fronteira com o Uruguai. Ali, seja qual for a cidade, há um ir e vir entre um lado e outro da linha imaginária que não ocorre em nenhuma outra parte do Brasil.
Ao todo, o Brasil tem 16.885 quilômetro de fronteira com dez países latino-americanos. Apenas dois, Chile e Equador, não compartilham seus limites com a gente. Apenas três, Guiana, Suriname e Guiana Francesa – que é, na verdade, um departamento ultramarino da França –, dos dez países que fazem fronteira conosco, não têm o espanhol como língua oficial. No entanto, em apenas um país há um longo trecho de fronteira terrestre que não apresenta obstáculos naturais para o ir e vir de pessoas, animais e mercadorias. Esse país é o Uruguai.
Em seus 1.069 quilômetros de divisa entre Brasil e Uruguai, que se estende deste a tríplice fronteira com a Argentina, na Barra do Quaraí, até a foz do arroio Chuí, no oceano Atlântico, pelo menos 320 quilômetros são definidos apenas por marcos construídos em pedra e concreto em meio ao Pampa. Nesse trecho não há rios, lagoas ou canais utilizados como limites naturais entre os dois países, o que permite que a integração se dê de uma forma ainda mais fluída e constante.
Santana do Livramento e Rivera, Quaraí e Artigas, Aceguá e Aceguá e, ainda, as icônicas Chuí e Chuy – do Oiapoque ao Chuí – são cidades irmãs que estão plenamente integradas, muitas vezes separadas por uma única avenida ou praça. Nesses pontos, um único passo é suficiente para atravessar dois países, algo que não ocorre em mais nenhum outro ponto do Brasil onde a fronteira é marcada por grandes rios, longas distâncias ou florestas densas e de difícil acesso.
Algo inédito na América do Sul e, de certa forma, inclusive em nível mundial salvo, certamente, os países que integram a Comunidade Europeia. Essa fronteira, no entanto, nem sempre foi assim tão pacífica. E é irônico pensar que, justamente o sul do Brasil, uma região que, num primeiro momento, não despertou o interesse nem de portugueses, nem de espanhóis, também tivesse sido, por ambos impérios, disputada ao longo de tantos séculos. Inclusive após a independência desses países dos seus colonizadores.
Um marco importante nessa disputa secular é a construção dos molhes no arroio Chuy, erguidos somente em 1975. Até então, conforme a vontade da natureza, o arroio encontrava o mar mais para o norte, mais para o sul ou, inclusive, nem o encontrava, uma vez que, dependendo da estação do ano, chegava secar. Consequentemente, a divisa entres os países viajava metros para cima, metros para baixo ou desaparecia por completo ao sabor da natureza. Com a sua construção foi possível, portanto, fixar aquele trecho da fronteira. Mas, definir os limites da fronteira sul da América colônia sempre foi muito mais complicado que isso. Trata-se de uma disputa de mais de três séculos que, de tão complexa e carregada de tantas nuances, para compreender os meandros da sua formação seria preciso mergulhar nos documentos de uma interminável batalha diplomática e bélica a qual, ainda hoje, não se resolveu plenamente.
O fato é que a imprecisão do Tratado de Tordesilhas permitiu, por séculos, que as linhas fronteiriças se alterassem constantemente, sendo resolvidas, salvo ainda alguns pontos pendentes, somente no século XX. A Espanha, por exemplo, muito objetivou avançar sobre o território português até, pelo menos, São Vicente, em São Paulo. Já Portugal, por sua vez, sempre desejou dominar o extremo sul até o Rio da Prata. O sonho da coroa portuguesa – e inclusive do Imperador dom Pedro II – era emoldurar o Brasil pelo Rio Amazonas, no norte, e pelo Rio da Prata, ao sul. Mesmo após as independências, Brasil, Argentina, Uruguai e até o Paraguai herdaram essa disputa e seguiram, por ainda muito tempo, tensionando as fronteiras conforme os interesses e o momento histórico de cada envolvido. A própria Guerra do Paraguai, o mais sangrento conflito que a América do Sul já viu, foi, em parte, consequência dessa disputa interminável pelo domínio sobre o Rio da Prata.
No entanto, claro, tudo teve início com a divisão do mundo entre portugueses e espanhóis, através do Tratado de Tordesilhas. Uma vez que a tecnologia da época era insuficiente para apontar com exatidão por onde passava a linha divisória, inúmeras eram as possibilidades, conforme a interpretação e os interesses de cada império.
Dessa forma, o continente poderia ser dividido na altura de Buenos Aires, o que, obviamente, era melhor para a Portugal, pois garantia a posse do Rio da Prata, ou de Santos, o que significava que praticamente toda a América pertenceria à Espanha. Entre uma e outra linhas extremas para um lado e para o outro, havia, ainda, pelo menos outras cinco que cortavam nosso continente em diversos pontos. Algumas mais vantajosas para a Espanha, outras para Portugal, mas nenhuma delas pacíficas a um e outro impérios ao ponto de solucionar o impasse.
Levou tempo, demandou inúmeras batalhas, muita diplomacia e novos e velhos tratados para que essa disputa, finalmente, se encerrasse. Algo que veio a ocorrer apenas no início do século XX, através da diplomacia iluminista do barão de Rio Branco, que incentivou os políticos da Velha Republica a cederem parte da lagoa Mirim aos uruguaios, como sinal de boa vizinhança. Embora, por trás dessa pretensa boa vizinhança tivesse, também, a intenção de melhorar a imagem internacional do Brasil, marcada pela interminável escravidão, o que fez com que o nosso país fosse o último a aboli-la em todo o ocidente. De qualquer forma, ceder parte da lagoa Miriam aos vizinhos sobre os quais, inclusive, o Império tentou estender seus tentáculos, surtiu efeito e, a partir de então, as disputas fronteiriças foram sendo pacificadas.
Mesmo assim, hoje, em pleno século XXI, ainda há dois pontos entre Brasil e Uruguai que seguem em litigio internacional. Uma ilha no rio Quaraí e uma área de aproximadamente vinte e dois mil hectares, denominada Vila Thomaz Alborno, que em tese pertence ao Rio Grande do Sul mas, na prática, todos os seus moradores se sentem – e querem ser – uruguaios. Por isso, de certa forma, aqueles blocos de concreto que lembram miguelitos gigantes, empilhados de um lado e outro do arroio Chuy, são mais do que uma obra geopolítica. São a metáfora perfeita para a concretude de uma fronteira líquida que demandou séculos – e o sacrifício de muitas vidas – para ser minimamente domada e plenamente delimitada.
Para quase todo mundo, uma fronteira é uma linha limítrofe, que define o início e o fim de uma jurisdição, de uma cultura, de uma língua. A fronteira separa, divide e até opõe pessoas. É uma linha geográfica, mas também simbólica entre dois países, resultado histórico de disputas políticas que podem ter sido, ou são, definidas através de guerras e/ou muita diplomacia.
Portanto, toda fronteira é, também, uma construção identitária que marca uma transição entre diferentes sociedades. Assim sendo, adquire poderes quase mágicos, uma vez que também pode significar a liberdade ou o aprisionamento das pessoas que por ela transitam. Ou tentam, pretendam, objetivam transitar. Os gaúcho – ou gauchos – que o digam, afinal, para estes, assim como para o vento, o pampa – ou a pampa, para uruguaios e argentinos – não reconhecia linhas imaginárias que definiam qual lado pertencia a qual Estado.
Portanto, defendo que a fronteira sul, entre Brasil e Uruguai, é, também, o ponto onde a América Latina se encontra. O lugar onde o continente Brasil, sempre virado de costas para o resto da América, que fala português e mira o Atlântico à espera dos eternos colonizadores e seus espelhos e panelas, se encontra não apenas com o Uruguai, mas com toda a América Latina. E o gaúcho, esse personagem transnacional, é filho dessa mesma fronteira. Nascido, também, do encontro e do desencontro, nem sempre consentido, entre os povos indígenas que habitavam essas terras com os exploradores portugueses e espanhóis.
Mas não só, pois se pensarmos na Espanha, é preciso também lembrar que toda a península ibérica foi, por séculos, dominada por árabes. Portanto, muitos dos espanhóis que vieram para a América eram descendentes da miscigenação moura-europeia. Se pensarmos em Portugal, que também foi dominado pelos árabes durante séculos, precisamos também lembrar que açorianos, africanos e os próprios europeus de tantos outros países, que para cá vieram em busca de aventura e oportunidades sob a bandeira portuguesa, eram, todos, náufragos, traficantes, degredados e contrabandistas. Portanto, na sua essência, gaúcho e gauchos são, desde sempre, seres transnacionais que muito demoraram para reconhecer os limites alfandegários impostos por estados, impérios e nações que, dessa pampa livre, emergiram. Quer dizer, essa fronteira que levou séculos para ser definitivamente constituída e aceita pelos territórios que viriam a formar o Brasil, o Uruguai, a Argentina e também o Paraguai, desde sempre foi povoada por “não-pessoas” de toda parte. Inclusive brasileiros do norte, já descendentes da inevitável mescla entre indígenas, europeus e africanos, algo que já ocorria, naquela parte do então território português, há séculos.
É nesse lugar histórico, parte dele, durante um tempo, denominado como Campos Neutrais, e marcado por essa globalização precoce, onde gaúchos e gauchos transitavam em liberdade sem reconhecerem as inúmeras tentativas de se definir os limites entre os impérios de Portugal e Espanha, que decidi ambientar a história do meu próximo livro. Não apenas porque a fronteira é esse lugar poroso, que aproxima e afasta duas nações e seus cidadãos, mas também porque o conceito de fronteira é apropriado para pensarmos inúmeras outras experiências humanas. No meu livro, Pedro se vê na situação de encarar a fronteira entre a vida e a morte, mas também no dilema de cruzar ou não a fronteira física que o separa de novas experiências na banda oriental. E da banda oriental para toda a América Latina.
Por isso, após muita pesquisa e o livro quase pronto, tirei quatro dias para revisitar a região. Ficamos, minha namorada e eu, numa casa aconchegante na praia do Hermenegildo, alugada através do airbnb e, lá, mergulhei fundo nas possibilidades que a fronteira tinha a me oferecer.
Fizemos o trajeto, de carro, entre o Hermenegildo e a Barra do Chuí, pela beira mar. Subimos os molhes, olhamos para o outro lado do arroio, avistando o Uruguai e a praia que, do lado de lá, segue igual ao lado brasileiro – a maior praia em extensão do mundo, segundo o Guinness Book. Circulamos pelas ruas de areia da Barra, desfrutando e fotografando a paisagem constituída por casas e chalés, muitos ainda construídos em madeira, com suas parrillas enferrujadas nos pátios a espera da próxima temporada. E, inclusive, voltamos ao Uruguai para, em Punta del Diablo, não muito longe da fronteira, comprar livros e almoçar em um restaurante local.
Foi um final de semana que deu para conciliar trabalho e prazer. Fotografei imagens para a capa do meu livro, coloquei um ponto final no texto e voltamos de lá, no domingo de manhã, com alguns queijos e algumas garrafas de vinho, compradas nos freeshops, no porta-malas do carro. Não sem antes, por muita sorte, presenciarmos a virada do tempo com a chegada do famigerado vento sul que, assustadoramente, sempre que aparece com força, coloca casas, postes de luz e pessoas de joelhos frente sua inevitabilidade. Inclusive, quem conhece o Hermenegildo sabe que a ressaca do mar, quando empurrada pelos ventos oriundo do Fim do Mundo, tem potencial para engolir as construções à beira-mar. Como, de fato, já ocorreu outras vezes no Hermenegildo.
Não posso finalizar esse texto, no entanto, sem indicar essa viagem. De carro ou de ônibus – de carro melhor, pois dá para ir parando –, separem uma playlist com Vitor Ramil, Jorge Drexler, Fito Paez, Bebeto Alvez, Andrés Calamaro e tantos outros poetas que cantam nossa vertente platina, peguem seus casacos, uma touca e um cachecol de lã, levem o Passaporte ou a Carteira de Identidade para dar um pulo do lado de lá da fronteira, e se joguem contra o vento em busca, justamente, dos encantos do sul. Se possível, levem um livro que tenha a região como cenário na bagagem. Além do meu, que está quase batendo à porta, tenho várias indicações. É só me chamar nas redes sociais. Y buen viaje.
I. BOCA MIGOTTO