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Foto: Boca Migotto

MAR ABERTO | A barraca de verão

por Boca Migotto.

Todo verão era a mesma coisa. Uma barraca era montada no pátio da casa mais rica do bairro e as crianças mudavam-se para lá. A idade variava. As crianças mais velhas beiravam a adolescência. Doze, treze anos. As mais novas estavam com sete, oito anos. Alguns eram irmãos. Mas para todas elas era uma novidade, uma espécie de independência domiciliar. Faziam suas mochilas com a pasta e escova de dentes, um casaco, alguma guloseima, um pijama e próximo do final da tarde batiam à porta da casa da família Ferreira para acessarem o quintal onde, de baixo de um abacateiro, os pais de Miguel montavam a barraca. Era uma espécie de tradição. As aulas findavam e a barraca era montada.

Adultos não eram bem-vindos. Apenas tinham o direito – e o dever – de observarem de longe, da janela dos fundos, e às vezes camuflados pela cortina para não parecerem enxeridos. Havia, claro, uma responsabilidade a ser exercida pelos adultos da família Ferreira. Afinal, eram crianças. E uma vez que estavam passando a noite no seu quintal, deveriam zelar pela segurança da gurizada. Depois da janta, geralmente pizzas ou cachorros-quentes, eram as crianças que dominavam o pedaço. E aí valia tudo. Desde os mais velhos contarem histórias assombrosas, para meter medo nos mais novos, passando por jogos como Banco Imobiliário, Jogo da Vida ou Futebol de Botão, até passar pasta de dente no rosto – e em outras partes do corpo também – do primeiro a sucumbir ao sono. Invariavelmente, claro, um ou outro chorava. Algumas vezes, então, era preciso que a mãe de Miguel interviesse. Raras vezes, no entanto, se chamava a mãe ou o pai de alguém para resgatar seu filho. Por mais grave que fosse o abuso, todas crianças sabiam que se os pais viessem em seu socorro, provavelmente, nunca mais seriam convidadas para a festa. E fazer parte daquilo era um privilégio. Por isso, engolia-se o choro e, em poucos minutos, sofria-se outro abuso ou abusava-se do próximo.

Eram brincadeiras inocentes. Nunca ocorrera algo mais sério. No entanto, claro, naqueles anos 1980 o conceito de abuso era bem diferente daquele que temos hoje. Tirar a roupa de uma criança, hoje, é percebido como algo muito grave. Abuso sexual, inclusive. Não naqueles anos, não era nada demais. Uma brincadeira de criança, apenas. Um tanto quanto mais agressiva, até, mas nada que gerasse uma comoção. Nem das crianças, muito menos dos pais que, por sua vez, na sua época de crianças haviam convivido com coisas ainda mais graves. A conscientização social é algo que se desenvolve com o tempo e no tempo.

Havia uma criança que nunca participara daquelas brincadeiras e nunca dormira naquela barraca porque nunca fora convidada. Guilherme não era o mais novo da turma da rua, mas era filho único. Solitário, era percebido por todos os demais como o mais fraco e, portanto, o mais propenso a sofrer bullying. Ele era o saco de pancadas da turma e todo final de ano era a mesma coisa. A expectativa de ser convidado logo se transformava em frustração. As aulas acabavam, os dias se prolongavam, o calor aumentava e as noites, mais agradáveis, anunciavam o momento da família Ferreira montar a barraca para o verão. Todo final de ano Guilherme acreditava que seria convidado. Mas passava o verão, algumas famílias inclusive se mudavam para a praia após o Natal, a barraca era lavada e desmontada, e Guilherme seguia preterido. Seu convite nunca chegava.

O mais triste, para Guilherme, nem era não participar da brincadeira, pois sabia que, se fosse, sofreria nas mãos dos amigos mais velhos. Era ele a vítima preferida e até estranhava não ser convidado para, justamente, sofrer na mão dos demais. Mas nem para ser abusado Guilherme era chamado. Pra quê? Era muito mais divertido excluí-lo da “brincadeira” para, no dia seguinte, na pracinha, quando todos comentavam sobre a noite na barraca, deixa-lo com inveja. Sim, havia requintes de crueldade nessa tradição de final de ano. Silenciosamente, e gradativamente, Guilherme ia crescendo e nutrindo um ódio por aqueles amigos que tanto o faziam sofrer. Havia mesmo um prazer em demonstrar que ele não era bem-vindo. Que ele era descartável. E, aos poucos, isso foi batendo mais forte.

Nada daquilo passava pela cabeça dos pais. Nem de Guilherme, que nada comentava pois não queria que seus pais soubessem que era maltratado pelos demais. Muito menos pelos pais dos seus amigos, que nem desconfiavam o quão ruins seus filhos poderiam ser. Eles, os filhos, é que não contariam suas maldades. Em meio a esse inusitado pacto de silêncio, o ódio de Guilherme apenas aumentava e, sozinho na sua cama, todas as noites perdia o sono imaginando planos mirabolantes para se vingar daqueles que, naquele mesmo momento, estavam se divertindo na barraca.

Uma noite, naqueles momentos entre a consciência e o sono profundo, teve uma ideia. Uma espécie de visão. Visualizou a barraca pegando fogo e todas as crianças dormindo ao relento, sobre a grama fria e molhada. Era isso. Ia botar fogo na barraca. Não apenas isso, iria gravar tudo com a câmera VHS do seu pai para, na escola, exibir a correria que, certamente, se daria a partir do momento quando seus amigos percebessem que a barraca estava queimando. Imaginou toda cena. Os mais velhos, covardes, correndo na frente e deixando os mais novos para trás. Os mais novos, de pijama, fugindo e chorando ao mesmo tempo. Uns chorando mais do que fugindo. Seria uma humilhação geral. E ele, de trás do muro, gravaria tudo aquilo até a barraca ser completamente consumida pelo fogo. Como bônus, acabaria de vez com aquele ritual do qual nunca fazia parte. Ninguém mais dormiria naquela barraca. E, dificilmente, em qualquer outra barraca pois, concluiu, os Ferreira nunca mais comprariam outra barraca e aquela tradição acabaria naquela noite. O plano era infalível.

Então, Guilherme passou dias planejando como tudo seria feito. Era preciso que fosse tarde da noite, para que os pais não o vissem sair de casa e para que ele chegasse à barraca quando todos já estavam dormindo. Portanto, era preciso um despertador para acordar no meio da noite. E este deveria ser forte o suficiente para acorda-lo, mas não para acordar seus pais, que dormiam no quarto ao lado. Precisaria de fósforos e de álcool. E para que o plano saísse como concebido, precisava dar um jeito de pegar a filmadora do pai, sem que ele percebesse, carregar as baterias e conseguir uma fita virgem para gravar toda a cena. Tudo isso deveria ser colocado numa mochila, pois ele sairia de casa pulando a janela. E para voltar, precisava contar com uma escada para poder retornar ao seu quarto antes que os pais acordassem de manhã. Tudo fora arquitetado nos mínimos detalhes. Passo a passo. Executado conforme um cronograma meticuloso o qual culminaria na noite de sábado, quando seus pais costumavam jantar acompanhados de uma garrafa de vinho. Guilherme não sabia porquê, mas já havia percebido que quando faziam isso, seus pais dormiam mais profundamente. E também acordavam mais tarte.

No sábado a noite, então, Guilherme, inocentemente, deu boa noite aos seus pais que, na cozinha, conversavam e riam enquanto bebiam seu vinho. A noite estava agradável. A lua cheia iluminava o campo vizinho à sua janela. A mochila estava preparada, inclusive com um pacote de Doritos para o caso de bater uma fome. Vai que alguns estivessem acordados e ele tivesse que esperar para executar seu plano. Então era só esperar o tempo passar. Colocou o despertador escondido debaixo do travesseiro, assim, quando tocasse, ele se acordaria sem despertar, também, seus pais. Deduziu que o som abafado do despertador sob o travesseiro não chegaria ao quarto dos pais. Fechou os olhos e tentou dormir um pouco. Estava tão ansioso que teve dificuldades em pegar no sono. Se virou para um lado, se virou para o outro, se virou de bruços, até, finalmente, se desligar completamente e apagar.

Acordou sem o despertador. Achou estranho, mas melhor assim. O quarto estava escuro. Não acendeu a luz. Abriu a gaveta ao lado da sua cama e pegou a lanterna, deixada lá propositalmente. Foi até a janela, abriu as cortinas e achou estranho que uma tênue luz penetrava pelas frestas da veneziana. Imaginou que seria a lua cheia, ou a luz do poste na rua, ou as duas coisas juntas. Apenas quando abriu completamente a veneziana se deu conta que já era dia. Não um dia de sol. Estava nublado, o céu estava escuro e carregado, pronto para uma tempestade daquelas. Mas já era dia. Algo havia dado errado. Tudo estava silencioso à volta, os pais ainda dormiam, mas já era dia. Como poderia ser? Então, correu até o travesseiro e pegou o despertador. Seis da manhã. Foi quando percebera que o despertador não tocara pois ele o havia acertado para o meio-dia em vez de meia-noite.

Mal teve tempo de se odiar por aquele equivoco imperdoável quando ouviu um forte trovão. De repente, então, o céu desabou em uma tempestade empurrada por ventos assustadores. Correu para fechar a janela. Foi quando o pai abriu a porta do seu quarto. “Ué, já acordado meu filho? Volta pra cama, é bom dormir com a chuva”. Guilherme voltou. Não para a sua cama, mas para a cama dos pais, para dormir com eles enquanto o mundo, lá fora, se desfazia em tons apocalípticos. Chegava dar medo. O plano infalível havia falhado, mas tudo bem, ele estava protegido.

Na segunda-feira, Guilherme descobriu que a ventania e a tempestade haviam arrancado as lonas da barraca naquela noite. E que todas as crianças saíram correndo dela, assustadas e molhadas, para serem acudidas pelos adultos da casa. Seu Ferreira, ferrado no sono, nada havia percebido até ouvir a gritaria do lado de fora da casa. Aquela havia sido a última vez que montaram a barraca no quintal.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Em 2023 lançou seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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