por Boca Migotto.
Depois daquela tarde de circo as coisas passaram a ficar mais leves na família de Dora.
Não que o pai se convertera num abstêmio convicto ou a mãe voltara a sorrir e esquecera a dor pela perda do filho e da irmã. Ou, ainda, que a vida de trabalho intenso dos irmãos houvesse amenizado e o dinheiro multiplicado sob o colchão familiar. Não exageremos. Mas é possível afirmar que tudo ficara, sim, mais leve. João conseguira retornar ao trabalho e já não passava os dias na bodega. Agora era apenas nos finais de semana. Com dois braços a mais, ficara também mais fácil trabalhar as benfeitorias da terra e isso era perceptível até para ela. O parreiral aumentara em tamanho e variedade de uvas e, com isso, pode-se produzir mais vinho. Inclusive para vender o excedente. As roças de milho, aipim, feijão, trigo e batata vingaram de tal forma que havia comida abundante estocada no porão da casa ou nas estrebarias, pois também era preciso preparar parte do milho para a silagem, para alimentar os animais durante o inverno. Vacas, porcos e galinhas, proliferaram no ritmo da melhor alimentação que lhes fora fornecida e, agora, a família contava com quinze vacas, mais de cinquenta porcos no chiqueiro, a partir dos quais produziam banha para vender para Porto Alegre, e um galinheiro cheio de poedeiras que garantiam os ovos para a fortaia do café da manhã e para comercializar. Carolina, a mãe, embora seguisse fechada em si, desfilando seus músculos rijos em um rosto marcado pela tristeza e um corpo coberto por vestidos pretos, também estava mais leve.
A família também crescera. Camilo teve seu primeiro filho. Arthur, um menino. E Domingos casara também, trazendo para a casa mais uma boca para comer e dois braços para ajudar na lida doméstica e na roça. A mulher de Domingos, Gabrielle, era de família francesa. Por isso, com ela, vieram também alguns novos hábitos, comidas e, em especial, diferentes tipos de queijos, que eram preparados por ela ao mesmo tempo que ensinava Carolina sobre os segredos da produção de um brie, um rocquefort, um camembert. Já Paolo e Alberto, agora adultos, ajudavam mais na roça e também eles já estavam noivos. Já se falava, inclusive, na necessidade em adquirir novas terras e a única possibilidade viável para os dois irmãos mais jovens era fazer isso no Oeste catarinense, onde as mesmas eram mais baratas e acessíveis. Por isso, até, Paolo e Alberto adiavam os seus casamentos. A mudança para o Norte significava, praticamente, uma ruptura definitiva com a família. Afinal, naqueles anos, uma viagem como essa era longa e demorada. Para os filhos mais jovens, que necessitavam de novas terras, essa ida para Santa Catarina ou, até, para o Paraná, constituía um recomeço da vida, formando suas próprias famílias em terras ainda selvagens, longe dos pais e de Santa Aparecida. Era a certeza de que, provavelmente, nunca mais se reencontrariam.
Dora, agora com dezesseis anos, também estava em idade de casar. Pretendentes havia. Mas Dora não demostrava interesse. Ao contrário, seu desejo era sair de Santa Aparecida, mudar-se para Pérola ou para a capital, a fim de seguir com seus estudos e tornar-se professora. Mais do que se tornar professora, essa possibilidade de estudar fora da vila significava sair daquele cotidiano limitado, o qual não lhe cabia mais nos sonhos. No entanto, embora a mãe fizesse pressão pelo casamento, o pai era contra e, portanto, um aliado na sua intenção de adiar um eventual matrimônio com algum colono da região. O problema com o pai é que João não queria ver a única filha longe de casa e, por isso, a mantinha presa àquela vida. E presa à família. E, por isso, também inviabilizava o sonho de Dora seguir seus próprios passos. Mas se a docência não seria possível, Dora esperava pelo circo. A possibilidade de fugir de Santa Aparecida passava, também, por um eventual reencontro com o trem do circo. Na verdade, algo que lhe agradava até mais que um internato em algum convento de freiras onde sua vida seria ainda mais controlada que em Santa Aparecida. Era por isso que, todos os dias, Dora seguia com seu ritual diário de frequentar a estação, na esperança de um dia ver o circo retornar à região e, nesse dia, quem sabe, subir escondida no mesmo trem e juntar-se aos artistas mambembes. Enquanto isso não acontecia, Dora seguia frequentando a biblioteca da escola e as salas de aula, agora na condição de professora auxiliar. Sem salário, mas com algum prestígio.
De qualquer forma, a vida estava um pouco melhor para todos. O empréstimo adquirido para a compra das terras fora integralmente pago, a comida era abundante, o pai bebia menos, a mãe chorava menos e o centro da vila progredia graças ao acumulo de capital proveniente das roças e das fábricas. Os tempos de guerra ficaram no passado e uma certa paz reinava, não apenas em Santa Aparecida, mas em toda região e até na Europa. Para alguns notórios, já era o momento de lutar pela emancipação de Santa Aparecida. Havia aqueles a favor e aqueles contra. E isso, claro, aos poucos, passou a acirrar os ânimos políticos da vila, dividir as pessoas e aumentar as disputas pelo poder local. Mas esta ainda era uma preocupação para poucos endinheirados que já destoavam da massa de colonos, pois até em Santa Aparecia começa a surgir uma certa elite. As fábricas cresceram em tamanho e negócios, como consequência, algumas casas foram ampliadas e construídas em alvenaria. Também chegavam alguns luxos do exterior, importados por aqueles que enriqueciam mais que outros. Até algumas cores surgiram no horizonte acinzentado de Santa Aparecida. Paralelo a isso, os primeiros automóveis foram adquiridos e circulavam, quase como uma atração exótica, pelas poucas ruas, agora calçadas com pedra basalto.
Foi nessa onda de novidades e alguma felicidade que, um dia, Dora acordou e encontrou toda a família reunida na cozinha, todos vestidos com suas melhores roupas. Não era domingo, dia de missa. Até onde ela sabia, ninguém havia morrido. Então estranhou muito aquela situação. Não era normal ver a família reunida fora dos horários rígidos das refeições, não era normal vê-los reunidos aquela hora da manhã, quando já deveriam estar na roça há muito tempo. Menos ainda, era normal vê-los sorrindo e falando alto quando não estavam discutindo. Foi falando alto que a mãe, devidamente vestida com seu melhor vestido preto, ao ver Dora entrar na cozinha ainda com cara de sono, ordenou para que voltasse ao quarto e, também ela, colocasse sua melhor roupa. A família iria até o estúdio do seu José para tirar uma fotografia. Era preciso que todos estivessem impecáveis para aquele momento sublime que marcaria a história da família, registrando para sempre, e antes que mais alguém morresse, a imagem de cada um deles sobre o papel.
E foi assim que todos, vestidos, arrumados, cabelos presos ou penteados, foram juntos para a rua, seguindo o pai, que ia na frente ditando o ritmo do deslocamento. Havia chovido e a rua estava pontuada por poças d’água e lama. Por isso precisaram de um cuidado extra para não sujarem seus sapatos. Dora não sabia porquê, mas sapatos, scarpes, no italiano, eram levados muito a sério por aquela gente. Não apenas sua família, mas toda comunidade. Talvez porque naquele tempo de pobreza exagerada, sapatos ainda eram raros para a maioria deles, que ou enfrentavam a terra fria e pedregosa pisando ao natural, com os pés descalços ou, na melhor das possibilidades, se utilizavam de tamancos esculpidos diretamente num pedaço de madeira maciça. Algo que não era nada confortável. Por isso, os sapatos, quando os tinham, eram cuidados com todo zelo possível, guardados como um tesouro a ser acessado apenas em dias de missa, festas, velórios ou casamentos. As roupas, mesmo que velhas e remendadas, eles às tinham. Afinal, não era possível saírem sem cobrirem suas vergonhas. Ao mesmo tempo, sempre havia um pedaço de tecido e lã para confeccionarem uma roupa para o trabalho ou para os dias especiais. Já os sapatos, não. Estes eram caros, demandavam um trabalho artesanal que exigia ferramentas apropriadas, assim como um talento que nem todos dominavam e, na dificuldade financeira com a qual a grande maioria convivia, sapatos era algo possível de abrir mão. Ninguém se importava com os miseráveis senza scarpes, como eram apontados quando frequentavam a igreja. Embora, se não os possuir não fazia grande diferença, tê-los nos pés diferenciava o vivente. Era uma espécie de símbolo que traçava o limite entre os trabalhadores e os vagabundos. Afinal, na lógica daquela gente, quem trabalhava prosperava e podia comprar sapatos. Por isso, assim que alguma família melhorava financeiramente, ao ponto de não precisar decidir entre sapatos e comida, a primeira coisa que os pais faziam era entrar numa sapataria para escolher calçados. Mesmo que de segunda mão. A prioridade do investimento, claro, era para o pai. Um chefe de família calçado já denotava uma certa ascensão social, mesmo que o resto da família ainda desfilasse senza scarpes pelas ruas da vila. Depois do pai vinha a mãe ou, em alguns casos, o filho mais velho. As crianças, assim como a ordem do banho semanal, eram as últimas a contarem com tal luxo. Felizmente, na família de Dora, todos já haviam comprado seus sapatos. Inclusive já tinham aqueles para os domingos e dias santos e aqueles mais desgastados, utilizados no trabalho. Assim, vestidos e calçados seguiram pela rua, orgulhos de como estavam bonitos e elegantes em suas roupas de domingo e calçando seus sapatos brilhantes de tanta graxa usada para lustra-los. Naquele dia, pela primeira vez, seriam capturados pela câmera do seu José, legando, assim, para as gerações futuras, uma imagem de uma família unida. Triste, dilacerada, conflituosa, desfalcada de três elementos que se foram antes daquela fotografia se tornar possível, mesmo assim, ainda, unida.
Ao chegarem no estúdio, esperaram seu José preparar o cenário e o equipamento. Primeiro, o fotógrafo abriu um grande pano que reproduzia um jardim com árvores e pássaros tropicais. Em frente a ele, posicionou a família, um a um, tendo João e Carolina sentados no centro. Ao lado, formando uma escadinha do maior para o menor, alguns à esquerda, outros a direita, os filhos, esposas e o neto, Arthur. Então, depois de todos posicionados, seu José pediu para que ficassem imóveis. Não era permitido nem sorrir, para não borrar a fotografia. Isso, no entanto, não configurava um grande problema. Aquelas pessoas sabiam bem como permanecerem sérias. A maior dificuldade era Arthur, ainda muito criança, compreender a importância em permanecer parado. Inquieto, o menino insistia em sorrir e não facilitava as coisas para seu José, que até perdera um pouco da sua típica paciência portuguesa. Tudo apenas foi resolvido depois que Dora propôs ao sobrinho brincarem de estátua. Resolvida a questão, tudo foi relativamente rápido. Seu José ligou as luzes e, desde atrás do grande aparelho que mais parecia uma caixa de abelhas, destampou um buraco que havia na frente da câmera. Dez segundos depois, contados pelos dedos do fotógrafo, anunciou que o registro estava feito. Aquela grande caixa de madeira havia sequestrado a imagem de cada um deles. Agora era só aguardar pelo processo de revelação e, em poucos dias, João poderia voltar para retirar a fotografia. Seu José cobrou pelo serviço, se despediu de cada um da família com um aperto de mão e fechou o estúdio para o almoço. À tarde, explicou, faria uma pequena viagem ao interior da colônia para registrar outras famílias. Alguém precisava registrar aquelas gentes e suas paisagens antes que tudo se perdesse no tempo.
* DORA é o nome, ainda provisório, talvez, do meu próximo livro. Conta a história de Dora, uma mulher nascida nos anos 1930, nas colônias italianas da Serra Gaúcha. Nos seus mais de oitenta anos, Dora acompanha e é testemunha das transformações da região. Trata-se de um work in progress, para usar uma expressão da moda. Ainda falta muito para sua publicação, mas, mesmo isso, e talvez, justamente por isso, decidi compartilhar esse capítulo com meus leitores da Rede Sina. As críticas, opiniões e sugestões são bem vindas.
I. BOCA MIGOTTO