Arquivos história - Rede Sina https://redesina.com.br/tag/historia/ Comunicação fora do padrão Sun, 25 Feb 2024 12:26:52 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.4.4 https://redesina.com.br/wp-content/uploads/2016/02/cropped-LOGO-SINA-V4-01-32x32.jpg Arquivos história - Rede Sina https://redesina.com.br/tag/historia/ 32 32 MAR ABERTO | Foi ao cinema e salvou a história https://redesina.com.br/mar-aberto-foi-ao-cinema-e-salvou-a-historia-2/ https://redesina.com.br/mar-aberto-foi-ao-cinema-e-salvou-a-historia-2/#respond Sun, 25 Feb 2024 12:26:52 +0000 https://redesina.com.br/?p=120893 Por I. Boca Migotto* Durante boa parte do século XX uma das principais atividades populares de lazer era ver um filme. No Brasil, os italianos sempre tiveram a tradição de investir no ramo do entretenimento e, por isso, consequentemente, também apostaram no cinema. Os irmãos Alfonso, Pasquale e Gaetano Segreto, por exemplo, oriundos de Nápoles, …

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Por I. Boca Migotto*

Durante boa parte do século XX uma das principais atividades populares de lazer era ver um filme. No Brasil, os italianos sempre tiveram a tradição de investir no ramo do entretenimento e, por isso, consequentemente, também apostaram no cinema. Os irmãos Alfonso, Pasquale e Gaetano Segreto, por exemplo, oriundos de Nápoles, são até hoje referencias importantes para a história do audiovisual brasileiro do início do século XX. Em Porto Alegre, assim como ocorria em São Paulo e Rio de Janeiro, os italianos foram os pioneiros no negócio de exibição cinematográfica. Cedo ou tarde, consequentemente, os italianos também se envolveram com a produção dos filmes. Não por nada, o homem por trás da principal produtora gaúcha da primeira metade do século XX, a Leopoldis-Som, era um imigrante italiano, Italo Majeroni e outro produtor de sobrenome italiano, que marcou o cinema gaúcho daquele período, foi Itacir Rossi, da Interfilms. Ambos trabalharam com Vitor Mateus Teixeira, o Teixerinha.

No entanto, essa relação dos italianos com o cinema não começou no Brasil. É quase tão antiga quanto a própria história dessa arte – e indústria – que nasceu no final do século XIX, na França. Mas foi durante e após a Segunda Guerra Mundial que a Itália deu sua maior contribuição à história do cinema. O Neorrealismo Italianoinfluenciou europeus e americanos e contribuiu para com o surgimento de outro movimento determinante na história do cinema mundial, então na França, a Nouvelle Vague. Os principais realizadores do Neorrealismo, como Roberto Rossellini, Victorio de Sica, Michelangelo Antonioni e Luchino Visconti, influenciaram toda uma geração de diretores italianos que vieram a seguir como Pior Paolo Pasolini, Federico Fellini e Bernardo Bertolucci os quais, muitos, inclusive foram trabalhar em Hollywood.

É de Bertolucci, provavelmente, o filme que melhor explica a Itália pós-imigrações. Novecento (1976), é um épico que aborda a história da Itália desde o início do século XX até o término da Segunda Guerra e, ao longo desse período, contextualiza o nascimento e fortalecimento das lutas trabalhistas num país ainda desfragmentado o qual, apenas há alguns poucos anos, havia promovido uma das maiores diásporas do mundo moderno, obrigando milhões de italianos a buscar esperança em outras terras, principalmente nas Américas. Essa mesma miséria generalizada, que expulsou os imigrantes e, décadas depois, contribuiu para com a ascensão do Fascismo e do próprio Benito Mussolini, foi muito bem retratada por outro filme; L’albero degli Zoccoli (1978), dirigido por Ermanno Olmi. Ao compor todo o elenco por camponeses reais da província de Bergamo, Olmi dialogou com o Neorrealismo e chamou a atenção do mundo para a diáspora italiana ao ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1978.

Já na vida real, quando nossos antepassados aqui chegaram, foram apresentados a uma região montanhosa, de mata fechada e animais selvagens, no extremo sul do Brasil. Portanto, diferentemente daqueles italianos dos centros urbanos, pioneiros do entretenimento, os colonos que subiram a Serra Gaúcha não tinham como prioridade o cinema e o lazer. Ao contrário, o único objetivo era sobreviver.

Lembro do relato, para o meu documentário Pra ficar na História (2016), da historiadora da UCS – Universidade de Caxias do Sul – Loraines Slomp Giron, uma das primeiras a pesquisar e escrever sobre os imigrantes italianos na Serra Gaúcha, quando ela comenta, em uma conversa com o personagem principal do filme, o Luiz Henrique Fitarelli, que “ninguém se interessa pela história dos pobres e os imigrantes italianos que chegaram no Brasil, eram, na sua época, apenas miseráveis desgarrados, sem pátria, sem terras e sem posses”. Essa afirmação da professora e pesquisadora de Caxias do Sul ajuda a explicar um pouco o que pretendo contextualizar a seguir[1].

É facilmente perceptível que a produção de obras audiovisuais com temática acerca da imigração italiana e/ou que se utilizam das paisagens da Serra Gaúcha, é intensificada por volta, apenas, dos anos 2000. Antes dos anos 1990, por exemplo, a produção pode ser considerada tão efêmera ao ponto de conseguirmos citar apenas algumas poucas obras como, por exemplo, o curta-metragem As colônias italianas do Rio Grande do Sul (1975), de Antonio Carlos Textor, além de filmagens domésticas como aquelas realizadas por Oscar Boz, nos anos 1950, as quais renderam, em 2003, devido justamente à raridade de tais imagens, um curta-metragem homônimo dirigido por Jorge Furtado. A já citada Leopoldis-Som, conhecida pela realização de inúmeros cinejornais que revelam a sociedade e as cidades gaúchas ao longo da primeira metade do século XX, produziu um documentário sobre a Festa da Uva, em 1937. Inclusive, este foi o primeiro registro sonoro realizado no Estado. Além disso, é bem possível que existam inúmeros outros registros domésticos perdidos, destruídos ou até desconhecidos.

 Eu mesmo, dirigi meu primeiro curta-metragem na Serra Gaúcha, apenas em 2008. Rio das Antas – Vale da Fé, foi um episódio da série Na Trilha dos Rios, realizada para a RBS TV. A partir de então, entretanto, foram 13 obras entre curtas-metragens, séries de TV e um documentário longa-metragem, o qual nasceu como um projeto de curta-metragem para a mesma RBS TV e se ampliou a partir da parceria com a Globo Filmes e Globo News. Esse fenômeno pessoal ajuda a ilustrar um pouco a relação da Serra com a produção audiovisual. Por isso, se num primeiro momento a dificuldade é citar títulos anteriores aos anos 1990, num segundo momento, a quantidade de obras é tão vasta que um texto de 3000 palavras, como este, não é suficiente para elencar todos os inúmeros títulos realizados na região a partir da virada do século. E, para tal fenômeno, existe uma explicação.

Acontece que a relação entre a preservação do patrimônio arquitetônico, que faz parte também do que chamamos “paisagem da Serra Gaúcha”, e o resgate da história e da memória local, são elementos cruciais para a viabilidade turística que ganhou força, especialmente, a partir dos anos 1990. Foi o turismo, por uma necessidade de negócio, que ajudou a salvar a história dos colonos italianos. História a qual, por causa da vergonha do passado miserável, era preciso apagar da memória. Portanto, tal sentimento incentivou e justificou a destruição de milhares de documentos e fotografias dos imigrantes, bem como, contribuiu para com a demolição das primeiras construções dos italianos que aqui chegaram e, até, o esquecimento forçado do próprio dialeto vêneto. No entanto, quando as pessoas ligadas à produção vitivinícola perceberam que os turistas não se deslocariam para a região apenas para comprar uma garrafa de vinho, mas o que os atraia – e atrairia cada vez mais – era ver as velhas casas de pedra e de madeira erguidas na paisagem montanhosa da Serra, o jeito do descendente italiano falar, as comunidades rurais onde o passado parecia ter estacionado no tempo, ficou claro que o diferencial da região não era apenas a qualidade do bom vinho local mas, sobretudo, justamente aquilo que os descendentes tentaram apagar e destruir com a máxima força e rapidez possível ao longo das últimas décadas. O vinho, o turista poderia comprar em qualquer supermercado do centro do país, mas a experiência de viver um pouco daquela história, somente deslocando-se para a região da Serra Gaúcha.

Se dependesse apenas do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –, que apesar do excelente trabalho, sempre esbarrou nas limitações orçamentárias, o processo de preservação não teria sido tão eficaz. Portanto, a percepção de que o sucesso econômico do turismo local estaria diretamente associado à preservação do patrimônio histórico-social contribuiu para com a desaceleração desse processo de destruição enquanto que, paralelamente, promoveu o inicio de um trabalho de resgate de todo o universo do imigrante italiano. É bem verdade, também, que o turismo patrocinou heresias em nome dessa “italianização” muitas vezes exagerada, mas foi essa conscientização, pelo bem e pelo mal, que despertou o interesse das produtoras em filmar as paisagens serranas inaugurando, assim, um circulo virtuoso que aproximou o turismo e a produção audiovisual. Esse processo, o qual se intensificou a partir dos anos 2000, teve início nos anos 1980, com o projeto de modernização e qualificação do vinho da região mas, também, com a realização do filme O Quatrilho, em 1995.

Para que o projeto vitivinícola do Vale dos Vinhedos – primeira Região de Denominação para o vinho brasileiro – surtisse efeito, além de melhorar a qualidade da bebida, era preciso também preservar a memória dos imigrantes, pois um conceito estava diretamente relacionado ao outro. No entanto, devido ao rápido processo de apagamento da memória, mais do que resgatar, era preciso salvar essa história. Um dado que ajuda a reforçar tal afirmação vem da própria UCS. Apesar da relação direta da instituição com a história da Serra Gaúcha, as primeiras pesquisas acadêmicas sobre a imigração italiana, ainda de forma incipiente, começaram apenas no final da década de 1970. Ou seja, até esse momento muita coisa já havia se perdido. O projeto ECIRS – Elementos Culturais da Imigração Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul, iniciado 1978 junto à UCS a partir de pesquisadores como Cleodes Maria Piazza, José Clemente Pozzenato e do fotógrafo Aldo Toniazzo, foi determinante para a preservação dos bens e valores culturais das comunidades rurais da região.

Os registros fotográfico, oral e videográfico do ECIRS, inclusive, fundamentaram a pesquisa da produção d’O Quatrilho, filme dirigido por Fábio Barreto a partir do livro homônimo de José Clemente Pozzenato. Essa obra se mostrou essencial no processo de reconhecimento dos valores culturais dos imigrantes italianos e, consequentemente, ponto de virada determinante naquele momento decisivo para a Serra Gaúcha. As filmagens mobilizaram várias cidades como Carlos Barbosa, Garibaldi, Bento Gonçalves, Farroupilha, Caxias do Sul, Antônio Prado as quais, de repente, passaram a receber artistas até então vistos apenas na televisão. Sem dúvida, isso despertou até o mais cético dos “gringos” para o fato de que havia alguma coisa na sua cidade – e naquela história – que merecia melhor atenção.

O Quatrilho é um dos filmes da chamada “Retomada do Cinema Brasileiro”, uma espécie de renascimento da produção nacional que ocorreu alguns anos após o Presidente Fernando Collor de Melo ter extinguido a EMBRAFILME – Empresa Brasileira de Filmes, praticamente aniquilando o setor cinematográfico brasileiro. A título de registro, é irônico pensar que exatamente no mesmo momento quando esse texto foi escrito, o Presidente Jair Bolsonaro atacava a ANCINE – Agência Nacional do Cinema Brasileiro, entidade que veio a ser criada após a “Retomada” e, desde então, passou a regular e incentivar a produção audiovisual nacional. Segundo o site da ANCINE, O Quatrilho fez uma bilheteria de 1.117,754 espectadores, gerou muita publicidade, teve veiculação televisiva, foi distribuído para o mercado de Home Video e foi indicado ao OSCAR de Melhor Filmes Estrangeiro em 1996. Não levou o tão esperado prêmio, mas a partir dessa experiência tudo mudou. Não apenas pelo retorno de imagem do filme, mas também porque o próprio mercado de cinema e televisão sofreu uma transformação radical com a chegada das novas tecnologias digitais as quais contribuíram, decisivamente, para com o aumento da produção, bem como proliferação das janelas de recepção de uma produção cada vez mais pujante. Esse fenômeno foi mundial mas, especificamente no Brasil, coincidiu com o desenvolvimento de uma política de incentivo à produção audiovisual estável e relativamente constante mantida pela ANCINE.

No Rio Grande do Sul, particularmente, também contamos com a experiência do Núcleo de Especiais da RBS TV o qual, ao longo de 15 anos, desde 1999, ajudou a viabilizar inúmeros projetos de curtas-metragens. Muitos foram filmados na região. Para se ter uma ideia, desde o primeiro programa realizado na Serra Gaúcha, Mundo Grande do Sul – Viagem à Terra da Fartura (2001), de João Guilherme Barone, passando por Brasile – 180 anos da Imigração Italiana (2005), de André Constantin, Sapore d’Italia (2011), a primeira série de ficção da RBS TV – e do Rio Grande do Sul – a ser filmada no exterior, dirigida por mim e pelo Rafael Ferretti em mais de 20 cidades entre a Serra Gaúcha e a Região do Vêneto, na Itália, até o último programa gravado na região, em 2012, Se milagres desejais, de Andre Constantin e Nivaldo Pereira, foram, segundo Gilberto Perin e Alice Urbin – responsáveis pelo Núcleo de Especiais – 21 programas produzidos e exibidos aos gaúchos, aos sábados à tarde, após o tradicional Jornal do Almoço. Tal projeto, além de mobilizar a economia das cidades onde as histórias se passavam, também contribuía para com um sentimento regional de valorização da própria cultura.

Então, durante esse período de pujança do audiovisual brasileiro – e gaúcho – inúmeras produções procuraram as prefeituras da Serra Gaúcha como parceiras. Não por acaso, a primeira Film Commission do Rio Grande do Sul – um órgão que existe em várias cidades, estados e países do mundo para receber e facilitar as produções audiovisuais – foi criada em Bento Gonçalves pela então Secretária do Turismo, Ivane Fávero. Tal iniciativa foi repetida também em Garibaldi e, essas duas Film Commissions foram responsáveis, desde então, por capitalizarem inúmeros projetos. Para citar apenas alguns, os longas-metragens Real Beleza (2013) e Saneamento Básico (2007), filmados em Bento Gonçalves, Santa Tereza e Monte Bello, além da série da Globo, Decamerão, a Comédia dos Sexos (2009), gravada em Garibaldi, todos os três dirigidos por Jorge Furtado. Segundo dados das próprias Film Commissions, além destas produções da Casa de Cinema de Porto Alegre, também vale destacar os longas-metragens O céu sobre mim(2012), uma produção da produtora caxiense Spaghetti Filmes, com direção do italiano Gian Vittorio Baldi; A Oeste do Fim do Mundo(2012), de Paulo Nascimento; Os Senhores da Guerra (2012), de Tabajara Ruas e O Filme da Minha Vida (2017), de Selton Mello. A paisagem e as características culturais da Serra Gaúcha também estiveram presentes em novelas, reportagens, comerciais de TV, DVDs como, por exemplo, o programa Estrelas, da TV Globo, gravado em 2017; o documentário Nas trilhas da imigração italiana, gravado em 2017, pela RAI italiana, a novela da Globo, Tempo de Amar, também de 2017; o comercial de Natal da Coca-Cola, de 2015; a novela Além do Tempo, também da Globo, gravada em 2015 e o DVD Chitãozinho & Xororó – Ao vivo em Garibaldi, dirigido por Paulo Nascimento e Gilberto Perin, ainda em 2003, muito antes da implantação da Film Commission, o qual vendeu mais de 40 mil cópias. Ali perto, a pequena cidade de Cotiporã serviu de locação para Os famosos e os duendes da morte (2009), longa-metragem de Esmir Filho, o qual foi filmado também em outras cidades da região, além do documentário Morro do Céu (2009) e do longa-metragem de ficção Os Dragões (2018), ambos de Gustavo Spolidoro. Para fugirmos um pouco da chamada Região da Uva e do Vinho, vale lembrar que Perin e Gustavo Fogaça dirigiram o DVD, Casa da Bossa – Especial Tom Jobim, produção que levou para Canela, em 2005, uma constelação de artistas da Música Popular Brasileira. Importante destacar, também, a inédita experiência ocorrida a partir de 2006, em Flores da Cunha, através de um programa da cidade com a Comunidade Europeia o qual viabilizou, financeiramente, a realização de 10 curtas-metragens sobre a valorização da identidade cultural e turística dos territórios colonizados por italianos na América Latina. Temáticas ligadas às heranças da imigração como a safra da uva, cotidiano das colônias, religiosidade, produção do vinho, dialeto, gastronomia, papel das mulheres, foram abordadas pelas produções locais que tiveram como coordenador – e diretor de alguns curtas-metragens – o realizador Juliano Carpeggiani.

Nem todas produções gravadas na Serra abordaram, diretamente, a história dos imigrantes italianos. Mesmo assim, o simples fato de as obras registrarem a paisagem – natureza, construções, pessoas e seus sotaques – já é, em si, um ato de preservação da memória. Assim, todas essas produções, e tantas outras impossíveis de listar nesse texto, contribuíram para com a divulgação da Serra Gaúcha. Não por acaso, as duas Film Commissions criadas na região nasceram de dentro das Secretarias de Turismo mas poderiam, também – e em muitos lugares do mundo é o que ocorre – terem sido alocadas junto às Secretarias de Indústria e Comércio pois, como já citado anteriormente, a economia dos municípios onde ocorre uma filmagem ganha muito com a chamada Indústria Criativa. Uma produção artística sempre demanda fornecedores como hotéis, para receber as equipes; restaurantes e/ou supermercados, para suprir a alimentação; postos de gasolina, para abastecer caminhões, carros e vans envolvidos nas filmagens, além de material de ferragem e marcenaria para cenários e costureiras para os figurinos. Tudo isso significa receita que permanece nas comunidades e incrementa a economia local. Tudo isso gera empregos, paga impostos e é necessário para que aquela obra artística, vista no cinema e na televisão, possa sair do roteiro e acontecer, através do trabalho exaustivo de milhares de profissionais de inúmeras áreas.

Mas, mais do que a chamada economia direta, essas produções também influenciam corações e mentes, ao mesmo tempo que divertem, educam, provocam reflexão, informam, valorizam e divulgam as regiões e culturas, além de contribuir para com a preservação da memória dos povos. E aqui percebemos o quanto isso é importante para a própria economia. Os Estados Unidos, sempre uma referência para nós, brasileiros, aprenderam desde cedo a importância do cinema e influenciaram o mundo, ao longo de todo o século passado, através das produções de Hollywood. A França, por outro viés, tem no cinema uma das suas principais ferramentas de integração cultural. Enquanto isso, Espanha, Canadá, Reino Unido, Japão, Argentina,  para citarmos apenas alguns países, vêm aumentando consideravelmente os incentivos para o desenvolvimento de suas indústrias do entretenimento e da cultura. Portanto, os países que investirem no audiovisual e suas inúmeras ramificações, certamente terão mais chances de não apenas sobreviverem ao futuro mas, principalmente, de se afirmarem culturalmente perante as demandas apontadas para as próximas décadas. Resta ao Brasil perceber aquilo que a Serra Gaúcha já descobriu. No final, parece que os italianos que vieram para o Estado com uma mão na frente e outra atrás também carregavam, no seu sangue, o DNA do entretenimento como negócio.

* Ivanir Migotto (nome artístico, Boca Migotto) é formado em Publicidade e Propaganda e estudou cinema na Saint Martins College, em Londres. É Especialista em Cinema e Mestre em Comunicação pela Unisinos, onde também foi professor e coordenador-adjunto do Cursos de Realização Audiovisual, além de atuar nos Cursos de Jornalismo e Comunicação Digital. Também foi professor no Curso de Publicidade e Propaganda da Faculdade Cenecista de Bento Gonçalves, onde coordenou o Núcleo de Produção Audiovisual e o Curso de Extensão É tutto vero. Está no último ano do Doutorado em Comunicação na UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Nouvelle Sorbonne – Paris 3. Como realizador, dirigiu e roteirizou mais de 20 curtas-metragens em ficção e documentário, além de séries de TV, comerciais e videoclipes. Os documentários longas-metragens Filme Sobre um Bom Fim (2015), Pra ficar na história (2008) e Já vimos esse filme (2018) são seus principais trabalhos. Atualmente, realiza seu quinto longa-metragem, sobre o Cinema Gaúcho pós-década de 1970, paralelamente à Tese de Doutorado.

BIBLIOGRAFIA

Brasil e Itália em tempo de cinema – RECINE – Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo – Ano 8 – Número 8 – Arquivo Nacional – Novembro de 2011. Acessado em Agosto/2019 em: https://imigracaohistoricablog.files.wordpress.com/2016/12/brasil-e-italia-em-tempo-de-cinema-recine.pdf

CECÍLIA CORRÊA, Ricardo. O Acervo Leopoldis-Som. Trabalho de Conclusão de Curso – UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, 2013. Acessado em Agosto/2019 em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/88679

ZANIN, Luis Fernando Zanin Oricchio. A Presença Italiana no Cinema Brasileiro. Cinema Cultura & Afins, 18 de junho de 2017. Acessado em Agosto/2019 em: https://luizzanin7.wordpress.com/2017/06/18/presenca-italiana-no-cinema-brasileiro/

Site Casa de Cinema de Porto Alegre. Acessado em Agosto/2019 em: http://www.casacinepoa.com.br/

Site UCS – Universidade de Caxias do Sul/ ECIRS – Elementos Culturais da Imigração Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul. Acessado em Agosto/2019 em: https://www.ucs.br/site/instituto-memoria-historica-e-cultural/ecirs/

Site Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual – ANCINE – Agencia Nacional do Cinema. Acessado em Agosto/2019 em: https://oca.ancine.gov.br/

Sobre as produções citadas, as relações das obras e informações sobre as produções vieram do contato direto com as seguintes fontes (não sei como citá-las segundo ABNT):

– Gilberto Perin – ex-Coordenador do Núcleo de Especiais da RBS TV (ele não trabalha mais na RBS, então é um contato direto com ele e não com a empresa)

– Juliano Carpeggiani – ex-Coordenador do Núcleo de Produção Audiovisual de Flores da Cunha.

– Film Commission de Bento Gonçalves – RS

– Film Commission de Garibaldi – RS

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MAR ABERTO | SÃO TANTAS AS ROMAS SOBRE UMA MESMA ÁFRICA https://redesina.com.br/mar-aberto-sao-tantas-as-romas-sobre-uma-mesma-africa/ https://redesina.com.br/mar-aberto-sao-tantas-as-romas-sobre-uma-mesma-africa/#respond Tue, 28 Nov 2023 17:09:30 +0000 https://redesina.com.br/?p=120387 por Boca Migotto Desde as Guerras Púnicas, ainda durante a República, Roma se fez presente no Norte da África como uma força política, econômica, cultural e, sobretudo, militar, que, desde então, ampliou sua presença não apenas naquela região mas, também, no Oriente e Europa Ocidental. A partir dessa afirmação é preciso perceber que mesmo dominando …

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por Boca Migotto

Desde as Guerras Púnicas, ainda durante a República, Roma se fez presente no Norte da África como uma força política, econômica, cultural e, sobretudo, militar, que, desde então, ampliou sua presença não apenas naquela região mas, também, no Oriente e Europa Ocidental. A partir dessa afirmação é preciso perceber que mesmo dominando praticamente todo o mundo antigo conhecido, o controle sobre a África se mostrou fundamental para que Roma expandisse sua influência sobre todo o Mediterrâneo, bem como, ampliasse a força do seu exército – fundamental para a manutenção do império que estava ascendendo –, intensificasse o comércio de cereais para alimentar sua crescente população urbana e, não menos importante, recolhesse os impostos e os inúmeros produtos que geravam a riqueza fundamental para a administração da máquina estatal.

A África mediterrânea, sem sombra de duvida, era uma região bastante rica e, portanto, essencial para o fortalecimento de Roma. Ao mesmo tempo se mostrava indispensável para que um comércio marítimo romano ocorresse sem maiores sobressaltos. A diversidade cultural e econômica da região se refletia em Cartago, não por acaso, uma cidade que fazia frente à Roma antes de sucumbir, após três longas guerras que duraram quase um século. Dessa forma, para o Império, que viria substituir a República em pouco tempo, as províncias do Norte da África se mostraram cruciais para a manutenção do poderio romano sobre toda a região. Da mesma forma, conforme Thébert afirma, “[…] a África romana [também] representa um campo de estudos privilegiado, pois trata-se de uma das mais importantes províncias do Império.” (THÉBERT in VEYNE, 2009, p. 290).

Antes de avançarmos na reflexão, entretanto, é importante compreendermos o conceito de Império aplicado tanto para Roma, que nesse momento ainda estava na sua fase republicana, como para todo o significado gerado a partir de então. Conforme Mendes, Bustamante e Davidson (2009), a historiografia construiu a noção de império a partir da definição para uma política expansionista, patrocinada por um determinado Estado que, por sua vez, por conta da opressão ou persuasão, vai exercer influencia política, econômica e/ou cultural sobre determinados povos ou populações por, este Estado, dominados e administrados. Os autores, no entanto, chamam a atenção para a importância de percebermos que, por trás do conceito de império há, certamente, a necessidade de se perceber a “[…] diversidade, a pluralidade e a singularidade dos processos ou das práticas imperiais para se investigar como e por que os impérios se constroem, se expandem, se legitimam, se consolidam e se desagregam” (MENDES, BUSTAMANTE e DAVIDSON, 2009, p. 19). Por isso, estudar e pensar os impérios sempre é uma prática complexa que precisa levar em conta a construção de uma diversificada e problemática contextualização cultural que não é unilateral e, muito menos, simplesmente imposta de cima para baixo. Por mais opressor que venha a ser o poder central de determinado império, sempre haverá espaço para o oprimido contribuir com a sua própria dinâmica cultural. Um bom exemplo pode ser a influencia da cultura africana sobre o Império do Brasil, Portugal e Algarves. Por mais subjugados que os africanos capturados e escravizados tenham sido, foram determinantes para a cultura brasileira e imprimiram sua marca na nossa língua, gastronomia, arte, nas nossas cidades e, inclusive, no nosso sincretismo religioso.

Portanto, realizada tal digressão conceitual, voltemos à conquista da África e ao fato de que, ao contrário do que a historiografia europeia do final do século XIX e início do século XX pensava, de que territórios dominados por Roma sofriam uma influencia de mão única, através da qual esta levaria a “civilização” aos povos nativos, significou, isso sim, um intercâmbio comercial, político, cultural, cientifico e artístico entre ambos os lados do Mediterrâneo. Não que Roma não tentasse impor sua visão de mundo, seja pela opressão ou pela sedução. Nesta região, existiam culturas tradicionais anteriores ao domínio romano, como a púnica e a berbere. O processo de expansão romana, iniciado ainda na República, fez com que Roma subjugasse diferentes sociedades e estabelecesse o seu império. O Império Romano empenhou-se em construir uma identidade entre as múltiplas culturas, que estavam sob seu domínio, visando a formação de uma comunidade de abrangência mediterrânea. (BUSTAMANTE, 2012, p. 3)

Embora seja impossível subjugar completamente uma sociedade secular como Cartago – e veremos que isso não foi possível nem com a destruição total da cidade –, é compreensível perceber que a historiografia colonial europeia, a exemplo de Roma, tenha se esforçado por construir essa ideia de um Império de mão única, que através da conquista, levava suas benesses civilizatórias aos demais povos sob sua influencia. Algo que, a priori, vemos ocorrer ainda hoje em diversos conflitos mundiais, sobretudo, na mesma região em torno do Mediterrâneo. Afinal, do que se tratou as invasões dos Estados Unidos ao Iraque ou ao Afeganistão ou, ainda, do que se trata a atual guerra entre Israel e os palestinos se não, também, uma tentativa midiática de justificar a dominação destes espaços por conta de interesses econômicos através do velho discurso de um Estado democrático e civilizatório que levará a liberdade e a visão de mundo ocidental onde há, sobretudo, repressão e barbárie? Percebam que não estou defendendo o terrorismo – é bom deixar isso bem claro – mas, apenas, colocando os conflitos mencionados em sua perspectiva histórica. Um povo que passa 50 anos, 100 anos, mais se século, às vezes, sob o domínio de um império, é um povo constituído por gerações – pais, filhos, netos – de pessoas oprimidas e subjugadas que, certo ou tarde, se levantarão contra tal injustiça pratica contra tais populações. E os meios utilizado para isso podem ser os mais variados, desde a política da não-violência de Gandhi, na Índia, até o terrorismo praticado pelo Hamas.

É claro que houveram outros povos que subjugaram populações mais frágeis antes de Roma, mas os “italianos” deram outro significado para tudo isso. Roma foi a primeira superpotência internacional e não apenas subjugou diversos povos como influenciou inúmeras outras tentativas que vieram depois dela. A França de Napoleão, A Alemanha de Hitler, o próprio Estados Unidos, são todos impérios que se inspiraram no Império Romano. Não por acaso, nesse mesmo viés colonialista, a Europa ocidental do final do século XIX também ganhava muito a partir da concepção de que era herdeira do processo civilizatório romano sobre outras regiões do globo. Conforme nos conta Lepelley (2016) sobre a redescoberta da região pelos europeus, a partir de 1830, a percepção de franceses e, principalmente, italianos, era de que estavam retomando para si um território o qual, por direito, lhes era herdado dos romanos. Lepelley conta que na medida que militares e arqueólogos europeus foram encontrando traços da presença romana na África – no caso italiano, especialmente na Líbia – mais crescia o conceito da Épica do retorno, título que Massimiliano Munzi, inclusive, deu ao seu livro sobre o tema.

É verdade que nesse processo os conquistadores descobriram “[…] dezenas de milhares de inscrições latinas, ruínas de cidades qualificadas muitas vezes de Pompeias africanas, obras de arte, dentre as quais muitos mosaicos” (LEPELLEY, 2016, p. 421), no entanto, defender, a partir disso, que seria natural à Europa subjugar a África, por conta de uma primeira dominação romana sobre o mesmo território, é quase como sucumbir ao argumento pós-medieval de Portugal, e da Igreja católica, sobre o seu direito natural de escravizar negros e indígenas pois, estes, não eram batizados pelo cristianismo europeu. Assim, de forma semelhante a como ocorreu nos séculos XV e XVI na América, a mesma justificativa para tamanho genocídio, mais uma vez, funcionou. Com isso, os europeus conseguiram, em pleno século XIX, impor seu olhar dominador sobre a África e recolonizar boa parte da região. Segundo o mesmo Lepelley, é possível reproduzir, abaixo, três passagens diferentes que exemplificam isso. Primeiro, Gas Boissier [latinista] em um discurso pronunciado em 1891, no Congresso das Sociétés Savantes, dizia: “aceitemos a herança, senhores […] nós viemos continuar uma grande obra de civilização interrompida durante séculos. […] Nós retomamos a posse de um antigo domínio, e esses velhos monumentos diante dos quais o árabe não passa sem um sentimento de respeito e de espanto [!], são precisamente nossos títulos de propriedade”. (LEPELLEY, 2016, p. 421)

Discurso semelhantes a outros franceses contemporâneos, como podemos observar abaixo, ainda segundo Lepelley, na introdução de seu grande livro sobre O exército romano da África, publicado originalmente em 1892, René Cagnat escrevia: “Nós podemos, portanto, sem medo comparar nossa ocupação da Argélia e da Tunísia àquela das mesmas províncias africanas pelos Romanos. Como eles, nós conquistamos gloriosamente a região, como eles, nós asseguramos a ocupação, como eles, nós tentamos transformá-la à nossa imagem e ganhá-la para a civilização”. (LEPELLEY, 2016, p. 421)

Se não essencialmente absurdo, ao menos para um olhar contemporâneo – assim esperamos, embora a extrema-direita esteja ai para nos mostrar que absurdos passaram a ser reproduzidos como normalidade –, tudo pode ficar ainda mais assombroso se olharmos para a Itália que, por sua vez, ainda mais que a França, se via herdeira direta das conquistas romanas e, portanto, se via também ainda mais no direito de reivindicar o território da Líbia, em 1911. Seguimos com Lepelley para chegarmos a Massimiliano Munzi, que lançou um livro, em 2001, intitulado L’epica del retorno: archeologia e politica nella Tripolitania italiana (Tradução: A épica do retorno: arqueologia e política na Tripolitânia italiana), no qual ele nos descreve a reprodução de um desenho publicado no mesmo ano da conquista da Líbia. A descrição deste desenho esclarecedor sobre o sentimento europeu – nesse caso, sobretudo, italiano – de posse sobre a África é a seguinte: “Um marinheiro italiano, tendo acabado de desembarcar, encontra na areia o esqueleto de um soldado romano, ainda conservando todo o seu equipamento: seu capacete, seu escudo, sua couraça, seus calçados. O marinheiro recupera o gládio do soldado e a legenda proclama: L’Italia brandisce la spade dell’antica Roma (Tradução: A Itália brande a espada da antiga Roma).” (LEPELLEY, 2016, p. 422)

Assim, percebemos o quanto, mais uma vez na história, se reproduziu e ainda se reproduz uma Roma expansionista na forma de uma Europa moderna, que para suas colônias leva suas línguas latinas, culturas civilizadas, engenharias sofisticadas, produtos tecnológicos e demais conceitos liberais em troca das matérias primas – ah, o ouro negro! –, commodities e produtos manufaturados que países africanos, asiáticos e sul-americanos poderiam – e deveriam – fornecer. Para esta historiografia, portanto, a romanização – percebamos que a grafia da palavra, ironicamente, quase nos leva a ler “romantização” – africana estava marcada por uma bipolaridade constituída por “nativos e bárbaros” versus “romanos e civilizados”. Mais uma vez, nada muito diferente de como se deu a colonização das Américas por portugueses, espanhóis, ingleses, holandeses, belgas e franceses, a partir do século XV ou, ainda mais recentemente, a exploração do território africano subsaariano a partir do século XIX. No entanto, finalmente, esse olhar historiográfico eurocêntrico, parece, começou a ser contestado. “[…] a partir de meados do século XX, com o surgimento de movimentos de independência afro-asiática, a produção historiográfica desenvolveu um novo viés, uma perspectiva pós-colonial, que resgatou a pluralidade e o dinamismo dos elementos nativos, demonstrando uma sensibilidade para a singular hibridez das experiências histórico-culturais”. (BUSTAMANTE, 2012, p. 3)

Este movimento pós-colonial é complexo e não se fecha em si. Muitas são as causas para que isso passasse a ser possível e incontáveis são as consequências que decorrem desse novo olhar sobre uma história que, por séculos, nos foi simplesmente dada e, por nós, americanos do Sul, africanos e asiáticos apenas reproduzida. Embora possamos apontar algumas possibilidades, não cabe em um artigo como este aprofundar questões tão complexas como o decolonialismo ou, até, a nova configuração econômica e geopolítica que tenta deslocar o foco do Atlântico Norte para o Pacífico e o Sul Global. Por isso, voltemos à Antiguidade e à expansão romana sobre a África nos séculos III e II a.C., quando Cartago foi tomada por Roma e, assim, esta obteve a hegemonia sobre o Mediterrâneo. Foi desse modo que Roma pôde, amparada também pelas relações de comércio que ocorreram através do Mediterrâneo, espalhar a cultura helenística para outros território até então ainda virgens da influência romana. Nesse sentido, embora essencialmente estruturalista, Thomas J. Barfield diz que a construção da estrutura de um governo imperial se dá através de um complexo processo que está baseado em cinco características principais: “1) a existência de um sistema administrativo para explorar a diversidade, seja econômica, política, religiosa ou étnica; […] 2) estabelecimento de um sistema de transporte destinado a servir ao centro imperial militar e economicamente; […] 3) criação de um sofisticado sistema de comunicação, que permita administrar diretamente do centro todas as áreas submetidas; […] 4) manutenção do monopólio de força dentro do território imperial e sua projeção frente às regiões externas; […] 5) construção de um “projeto imperial” que impõe certa unidade através do império”. (MENDES, BUSTAMANTE, DAVIDSON, 2009, p. 20-21)

Dessa forma, segundo os autores, é importante focar a interação das redes de poder entre as elites locais e imperiais, levando em conta a importância de um sistema de deslocamento de pessoas e mercadorias que permita ao centro imperial manter o trânsito político, militar e administrativo com suas colônias, bem como o fluxo da informação. Assim, é preciso também definir e gerenciar as linhas limítrofes do império, algumas vezes mediante imposição militar, noutras através da diplomacia político-cultural, algo essencial, inclusive, para a sobrevivência de um império que está essencialmente amparado no compartilhamento de valores centrais sobre os periféricos os quais, por sua vez, nunca serão subjugados na sua totalidade e, portanto, demandam um certa flexibilidade para que possam, invariavelmente, serem assimilados pelas culturas periféricas.

Esses elementos, podem parar para pensar, estão presentes no Império Romano, Inca, Asteca, Português, Espanhol, Norte Americano e foi exatamente o que ocorreu com Roma a partir da sua primeira conquista africana. Segundo Sant’Anna (2015), “O território cartaginês, fundado como parte do movimento colonizador fenício, ocorrido entre os séculos IX e VI a.C., compreendia, na época da Primeira Guerra Púnica, o norte da África, a porção oeste da Sicília, a Sardenha e parte da Hispânia.” (2015, p. 48). A importância dessas conquistas, portanto, sobrepõe as questões militares, uma vez que é a partir de então que Roma vai virar a chave em relação a sua própria história. Basta lembrar que até a segunda metade do século III a.C., segundo Mitchell (1971), citado por Sant’Anna, “[…] Roma praticamente não possuía experiência em diplomacia, sendo ainda um poder agrário sem grandes interesses fora de seus limites territoriais.” (2015, p. 49). Tudo vai mudar a partir de Cartago mas, não sejamos ingênuos, afinal, Roma já era consciente sobre a força do território cartaginês que, para muito além da Líbia, dominava parte da Hispânia e da Sardenha e avançava, perigosamente, sobre a Sicília, constituindo-se, assim, em um vizinho perigoso que, cada vez mais, cercava a República por todos os cantos da península. Além de dominar muito melhor que os romanos a arte da navegação. Dessa forma, o ataque se mostrou a melhor defesa e Roma precisou avançar sobre os enclaves cartagineses na Sicília, uma decisão que garantiu a presença romana sobre a África por aproximadamente oito séculos. Por isso, podemos afirmar que “[…] a África romana começa em 146 a.C., quando a República anexou o norte da atual Tunísia, após ter destruído Cartago e ela termina quando da tomada da mesma cidade de Cartago pelos conquistadores árabes muçulmanos, em 698 […] Trata-se, portanto, de uma longuíssima história”. (LEPELLEY, 2016, p. 434).

Apesar da brutalidade e irracionalidade que envolve todas as guerras, é fato que estas também significam períodos de inovações tecnológicas. Não foi diferente com Roma que, desde a Primeira Guerra Púnica, se viu obrigada a repensar suas estratégias de combate, bem como sua tecnologia bélica. Nesse movimento, os gregos foram importantes na transmissão de conhecimento náutico, uma vez que, ao menos na primeira Guerra, batalhas significantes foram travada no mar, ambiente que os cartagineses demonstravam excelência e superioridade em relação aos romanos. Desde então, até o encerramento dos conflitos, com a conquista romana sobre Cartago e a destruição total da cidade, se passaram longos anos de guerra e paz que tiveram, como cenário, inúmeros terrenos na Europa, no Oriente Médio, no Norte da África e no próprio Mediterrâneo, e envolveram diversas frentes de batalha que, nem sempre, estavam associadas diretamente aos cartagineses. Uma espécie de guerra mundial, se levarmos em conta o mundo conhecido por estes povos naquela época.

Então, em 146 a.C., um exército liderado por Cipião finalizou um cerco de três anos sobre a cidade africana e, finalmente, conforme relato de Sant’Anna, citando Políbio, Diodoro e Apiano, a “civilização” da qual a historiografia europeia dos séculos XIX e início do XX enaltecia, vence a barbárie da seguinte forma: “[…] tudo se resumia, nas palavras de Apino (8. 128-135), “a gritos de dor, lamento e sofrimento de todos os tipos”. Logo o fogo se espalhou e consumiu a cidade, auxiliado pelo trabalho dos legionários romanos, que destruíram os edifícios de uma vez, e não aos poucos, fazendo com que muitas construções cedessem com suas estruturas de pedra sobre os habitantes. Muitos foram vistos, ainda, com vida, feridos ou queimados em maior ou menos escala, emitindo gemidos terríveis. Apiano acrescenta, ainda, que outros caíram de lugares altos em meio ao fogo, pedras e madeira, terminando esfacelados nas mais horríveis formas, esmagados ou mutilados. Cadáveres foram usados para tapar fossos, permitindo, assim, a passagem das tropas. Diz-se que alguns foram arremessados nos fossos de ponta-cabeça e outros de cabeça para cima, tendo seus crânios destroçados por cavalos durante a travessia, pois funcionavam como ponte humana. Tamanho horror persistiu por seis dias e seis noites, até que, no sétimo dia, um grupo de suplicantes apareceu diante de Cipião e o convenceu a poupar as vidas daqueles que, protegidos na cidadela, concordassem em deixar Cartago para sempre. Mais de cinquenta mil homens e mulheres deixaram a cidade sob a guarda do exército romano. Cartago estava completamente arrasada. […] Encerrado o cerco, o território cartaginês transformou-se na província da África”. (SANT’ANNA, 2015, p. 70-71).

Paul Valéry escreveu que a História não pode ser separada do historiador pois este busca, sempre, compreender o presente, e a si mesmo, através do conhecimento sobre o passado. Portanto, historiador e História estão ligados umbilicalmente. Tal afirmação, inclusive, me faz pensar sobre o quanto estou eu, nesse momento, realizando essa reflexão e escrevendo esse texto, dissociado – ou não – do evento militar que envolve Israel e Faixa de Gaza às vésperas do Natal do ano de 2023. Uma vez assinalada tal desconfiança pessoal em relação a minha pretensa neutralidade no tema, retorno ao fluxo do pensamento aqui apresentado para afirmar que é nesse sentido assinalado por Valéry, de certa forma, que podemos perceber o quanto o Norte da África é uma região extremamente importante para compreendermos a Europa atual e, em consequência, a própria influência deste continente sobre todos os territórios por ela colonizados. Uma vez que a relação entre Europa e África, a exemplo da própria fluidez das águas do Mediterrâneo, não se deu unilateralmente, é preciso levarmos em conta que parte do continente europeu sofreu forte domínio africano, principalmente árabe. Isso se dá hoje, mediante a imigração muçulmana – embora nem todo árabe siga o Islamismo – das ex-colônias para países como a França e Itália, por exemplo, mas também já havia ocorrido no passado quando, após a queda – alguns historiadores preferem o termo “transformação” – do Império Romano, ao longo dos anos 700 e 1500, boa parte da península Ibérica esteve sob domínio dos mouros e, estes, por sua vez, tiveram participação direta ou indireta na história das mesmas navegações que vieram a descobrir e colonizar as américas a partir de portugueses e espanhóis.

Quer dizer, de certa forma poderíamos estabelecer uma linha histórica entre o Brasil, encontrado por portugueses apenas em 1500, com o mesmo Império Romano que, por séculos, dominou e impôs sua visão de mundo sobre os povos do Norte da África os quais, por sua vez, séculos depois, marcaram presença, sobretudo, na região da Andaluzia. Por isso, seguindo no raciocínio de Paul Valéry, olhar para a Antiguidade desde hoje é perceber, também, o quanto o presente está contaminado por esse passado. Ao mesmo tempo, e por outro lado, esse mesmo processo de islamização que marcou a ciência, a arte e a cultura da península Ibérica – e repercutiu na América pós-Colombo – na África do Norte, por sua vez, significou uma ruptura com a cultura europeia-romana. Ao menos no sentido que Lepelley traz para o debate ao afirmar que “os países do Magreb [ou Magrebe, no português] são geograficamente muito próximos da Europa mediterrânica. No entanto, a conquista árabe e a islamização, a partir do século VII, fizeram dessas terras um mundo muito diferente: um profundo fosso cultural, religioso, político foi cruzado, fosso que não existia na Antiguidade”. (LEPELLEY, 2016, p. 420)

Mesmo assim, em essência, percebe-se que há uma histórica interrelação cultural entre o Norte da África e a Europa Ocidental e, embora essa relação ora penda mais para um lado do Mediterrâneo, ora penda para o outro, é fato que o eurocentrismo domina – ou dominou, por séculos – a narrativa historiográfica sobre suas colônias. Por exemplo, muito se tentou associar o berbere a uma espécie de maldição anticivilizatória que denotaria uma dupla incapacidade deste povo, tanto no sentido de fazer nascer uma verdadeira civilização a partir das suas práticas tribais – e, portanto, sair da pré-história –, em nome da constituição de um verdadeiro Estado estruturado em políticas elaboradas, refletindo as experiências europeias, bem como, por conta disso, padecer permanentemente frente o domínio estrangeiro que, por sua vez, lhes imporia suas civilizações.

Tal visão de mundo, como sabemos e foi possível perceber ao longo deste texto, não é uma exceção. A historiografia mundial – e em especial, a ocidental – está impregnada de um olhar eurocentrista que precisa ser descontruído até por uma questão de justiça histórica. Sobre a África, por exemplo, estamos falando do continente onde surgiu o ser humano e onde se desenvolveu algumas das civilizações mais prósperas e importantes da antiguidade. Desde os fenícios, passando pelos egípcios e até levando em conta o caldeirão cultural do Oriente Médio, onde surgiram três das principais religiões que influenciam milhões de pessoas no mundo contemporâneo, a África é um caldeirão cultural que precisa ser melhor estudado. E estudado afetuosamente. Não é por acaso que Roma avançou, o máximo que pôde, sobre o referido continente.

A África, inclusive para além dos próprios romanos, sempre foi importante para os europeus por inúmeros motivos. Alexandria, no Egito, por exemplo, era tão admirada pelos latinos que foi da dinastia Ptolomeu que os romanos copiaram o modelo de administração. “[…] concebido como uma espécie de vasta propriedade privada em que a receita era globalmente administrada pela coroa. Em pouco tempo esta exploração converteu-se no ponto de partida preconizada por Augusto para o Egito […] lembrando que a ovelha deveria ser tosquiada, mas não esfolada”. (DONADONI in MOKHTAR, 1983, p. 192-193). Mas não só romanos, uma vez que a cidade fundada por Alexandre Magno, em 332 a.C., era uma espécie de Nova Iorque da Antiguidade. Naquele espaço cosmopolita conviviam romanos, gregos, fenícios, egípcios, judeus, cristãos, a partir do Cristianismo, enfim, uma verdadeira profusão cultural que ajuda a explicar, inclusive, a magnitude da famosa biblioteca de Alexandria.

Em relação a aproximação entre egípcios e romanos, é preciso lembrar que a relação do Egito com o Império era, sim, diferenciada. Havia algumas liberdades concedidas aos egípcios que não eram permitidas aos demais territórios. Um bom exemplo pode ser o calendário que, no Egito, era contado a partir do reinado dos imperadores egípcios e não dos cônsules romanos em exercício. Roma via o Egito como o “celeiro do Império” mas, por outro lado, isso não garantiu uma contrapartida substancial ao comércio entre ambos territórios. Havia a complacência romana sobre o Egito, é verdade, mas ainda assim se tratava de uma relação de exploração e, portanto, unilateral e definida por Roma. No geral, no entanto, essa relação era relativamente tranquila. Houve o cerco à Jerusalém, a Guerra dos Judeus em Alexandria mas, à exceção desses eventos, todos os primeiros séculos do Império foram relativamente tranquilos na região, ao ponto de Trajano reduzir as legiões estacionadas sobre o território africano e de Adriano, seu sucessor, se dar ao luxo – e curiosidade – de mergulhar nas paisagens, cultura e história egípcia.

A partir do século II, no entanto, a condição de “celeiro do Império” foi transferida para os território da região do Magrebe. As terras do Egito estavam exauridas e os agricultores, na impossibilidade de pagarem os altos impostos aos romanos, fugiram para o deserto. Essa crise agrária, contudo, já estava em sintonia com o enfraquecimento e a transformação do Império Romano ocidental, a ascendente influencia o Império Romano do Oriente, a partir de Constantino, sobre o Egito, bem como o fortalecimento do cristianismo que, em especial em Alexandria, vai se encontrar com a filosofia grega. “Em Alexandria o cristianismo assumiu, desde muito cedo e por um processo normal de desenvolvimento, um caráter acentuadamente diferente do cristianismo do resto do país. A cultura grega, de que a cidade estava impregnada, manifestava-se até mesmo na maneira com que a nova religião foi recebida. A mudança para o cristianismo tomou forma não de um ato revolucionário, mas de uma tentativa de justificar determinados conceitos novos e integra-los no amplo quadro da filosofia e da filologia da Antiguidade”. (DONADONI in MOKHTAR, 1983, p. 208)

A complexidade das relações culturais que influenciarão o Egito, o Império Bizantino e a transição do cristianismo para o islamismo, no entanto, demanda outro artigo. Nos cabe pensar, aqui, no deslocamento agrícola que ocorre para a região do Magrebe que, por séculos, teve Cartago como principal ponto de referencia desde quando os primeiros colonos oriundos da Fenícia lá desembarcaram. Assim, ao retomar a relação de Cartago com Roma, é importante explicar que a denominação da cidade se origina no nome fenício Kart Hadasht, que significa “cidade nova”. Embora não haja resquícios suficientes para tal afirmação, muitos historiadores deduzem que Cartago teria sido, desde o princípio, destinada a ser a principal colônia dos fenícios no Ocidente. “No século VI antes da era cristã, Cartago tornou-se autônoma e passou a exercer supremacia sobre as outras povoações fenícias do Ocidente, assumindo a liderança de um império na África do Norte, cuja criação teria profundas repercussões na história de todos os povos do Mediterrâneo ocidental. Tal evolução foi favorecida principalmente pelo enfraquecimento do poder de Tiro e da Fenícia – a metrópole – que caíram sob o jugo do Império Babilônico”. (WARMINGTON in MOKHTAR, 1983, p. 452)

Desde então, Cartago cresceu em importância e influencia e rivalizou, disputando os territórios da Sicília e Sardenha, com os gregos, num primeiro momento, assim como, mais tarde, também com os romanos. Para ambos, gregos e romanos, ninguém comercializava melhor que os cartagineses que, por sua vez, haviam se transformado em exímios negociantes e contribuído para tornar a sua cidade, consequentemente, na mais rica do Mediterrâneo. Cartago e Roma tinham acordos de paz deste 508 a.C., quando a cidade etrusco-latina era ainda uma comunidade de tamanho médio. No entanto, nem um novo acordo, firmado em 348 a.C., foi suficiente para segurar uma Roma já bem mais poderosa que, nas décadas seguintes, acabou por entrar em um conflito com Cartago, que conforme já vimos anterior, repercutiu em outras duas guerras e teve, por encerramento, a total destruição da cidade africana. Mesmo assim, a resistência do povo subjugado se manteve ao longo de séculos, conforme podemos ler em Warmington: “[…] foi necessário esperar mais de um século até que Roma suplantasse realmente Cartago enquanto potencia política e cultural dominante no Magreb. Por diversas razões os romanos apropriaram-se de uma pequena parte do nordeste da Tunísia, após a destruição de Cartago, e mesmo assim não se ocuparam mais desse território. No restante da África do Norte, Roma reconheceu uma série de reinos vassalos, que de maneira geral conservaram sua própria autonomia”. (WARMINGTON in MOKHTAR, 1983, p. 469)

Por conta da prosperidade que territórios como a Numídia e Mauritânia viveram nesse período, bem como a relação com a língua fenícia, em uma versão mais contemporânea tida como neopúnica e, principalmente, por receber sobreviventes cartagineses, a influência cultural de Cartago, mesmo após completamente destruída, perdurou por muito tempo. Somente em 44 d.C. a Mauritânia foi dividida em duas províncias e toda a região do Magrebe foi plenamente dominada por Roma. A partir desse período, então, mais ou menos em 40 d.C., o líbio e neopúnico, embora ainda utilizados oralmente, foram finalmente substituídos pelo latim como língua escrita. Estava se dando a transformação que retiraria parte da influencia fenícia da região que, desde muito antes dos etruscos, havia marcado a entrada do Magrebe na história do Mediterrâneo e estreitado laços comerciais e culturais com a costa norte e leste, para um novo capítulo que colocava toda a região sob influencia do Império Romano. Influencia, esta, que duraria até a invasão vândala sobre Roma e, também, no Norte da África.

Entretanto, todo esse período marcado por conquistas romanas em território africano, desde a queda de Cartago, não foi obtido de forma tranquila ou pacífica. Embora existam poucos registros dessa fase da história africana, é possível afirmar, segundo Mahjoubi (1983), que Roma sofreu muita resistência. Ao mesmo tempo, conforme já observado anteriormente, também é preciso levar em conta que tudo que sabemos sobre essa eventual resistência é relatado por fontes literárias ou epigráficas, segundo o ponto de vista romano, e analisadas de forma ainda mais imprecisa por uma historiografia europeia do início do século passado. Mesmo assim, é possível afirmar que as guerras de resistência que ocorreram mais ao sul da região dominada por Roma num primeiro momento, envolveram desde a Tripolitânia até a Mauritânia. Mais uma vez, então, pesa o fato de essas guerras serem apresentadas pelos historiadores como luta entre a civilização e o mundo bárbaro. Tribos nômades do deserto lutando para evitar o avanço da civilização e, portanto, dessa forma, ignobilmente, também negando os benefícios de uma forma “superior de cultura”.

No entanto, levando em conta a descrição de como se deu a chegada dos romanos à região, é possível não apenas compreender a resistência como, inclusive, relativizar quem eram os civilizados e quem eram os bárbaros nessa disputa bélica. “Os campos dos Númidas sedentários tinham sido devastados. As áreas tradicionalmente percorridas pelos nômades eram constantemente reduzidas e limitadas. Os veteranos e outros colonos romanos e italianos instalavam-se por toda parte, a começar pelas regiões mais ricas do país. Companhias coletoras de impostos e membros da aristocracia romana, senadores e cavaleiros, aproximavam-se de vastos domínios. Enquanto seu país era assim explorado, todos os autóctones nômades e todos os habitantes sedentários que não viviam nas raras cidades poupadas pelas sucessivas guerras e pelas expropriações foram reduzidos a uma condição miserável ou expulsos para as estepes e para o deserto. Portanto, sua única esperança era a resistência armada e seu principal objetivo a recuperação das suas terras.” (MAHJOUBI in MOKHTAR, 1983, p. 475)

Finalmente, mais ou menos no ano 100 d.C., os romanos fundaram a colônia de Timgad e criou-se uma zona fronteiriça formada por uma rede de 50 a 100 quilômetros, progressivamente deslocada para o sudoeste, composta por trincheiras e defendida por postos militares permanentes. Mesmo assim, Roma nunca conseguiu subjugar os berberes que, se utilizando de camelos, se deslocavam como facilidade e rapidez pelo sul e oeste do Saara. Numa nova tentativa de dominar completamente a região, o romanos criaram os assentamentos – limitanei –, formados por soldados-camponeses, para os quais eram distribuídas terras ao longo da fronteira. Esses soldados-camponeses não pagavam impostos mas, em contrapartida, deles se esperava a proteção dos limes. De forma semelhante a como ocorreu, também, ao longo das fronteiras Norte do Império, esses limites impostos pelo Estado, e efetuados por famílias que se viam abandonadas no meio do nada, mais do que separar as terras que pertenciam à Roma da região livre dos berberes, acabou por tornar-se uma área de intensos contatos comerciais e culturais. Ainda antes do Império, as primeiras experiências de colonizações propostas por Caio Graco, por meio da lex rubia, em 123 a.C., são um bom exemplo de como o projeto nasceu fracassado. Conforme sabemos, devido a questões políticas e motivos econômicos, Graco não foi feliz na sua tentativa de “reforma agrária” e os colonos para lá deslocados acabaram escravizados por senadores e cavaleiros que tomaram, para si, as terras dos assentados. Apenas a partir de Otávio Augusto, retomando os planos do pai adotivos, Júlio César, é que houve algum progresso nas relações entre Roma e suas províncias africanas. “De acordo com uma lista fornecida por Plínio, cujas fontes ainda suscitam controvérsias, em pouco tempo havia seis colônias romanas, quinze oppida, civium romanorum, um oppidium latinum, um oppidium immune e trinta oppida libera.” (MAHJOUBI in MOKHTAR, 1983, p. 485)

Em 212, por conta da Constituio Antonina, os diversos grupos que constituíam o Império Romano na África, com exceção aos escravizados, foram incorporados como cidadãos. Nesse momento a sociedade era dividida, conforme a língua e costumes, em três grandes grupos formados por 1) romanos ou italianos imigrantes, 2) cartagineses e líbios sedentário e, por fim, 3) líbios nômades. Essa integração, aos poucos, também permitiu a ascensão desses novos cidadãos à política romana. O primeiro senador africano veio de Circa e viveu no tempo de Vespasiano mas, um século mais tarde, a África já contava com 170 senadores, constituindo o segundo maior grupo político depois dos italianos. O mesmo ocorreu com os militares que integravam as legiões romanas, evidenciando o quanto a conquista do Norte da África fora importante para toda a manutenção do Império. O próprio Tácito (1952), em seus Anais, relata o recrutamento massivo de africanos após a Campânia e, posteriormente, Roma, serem devastadas por uma epidemia tão colérica que todas as casas relatavam a incidência da morte enquanto, nas ruas, só se via enterros. “Não escapava deste perigo nem sexo nem idade; escravos e cidadãos desapareciam em um instante entre os lamentos de suas mulheres e seus filhos que, ao mesmo passo que choravam a seus maridos e seu pais, já tocados pelo mal, eram muitas vezes conduzidos à mesma fogueira […] Nesse mesmo ano se fizeram recrutamentos na Gália Narbonense, na África e na Ásia para completar as legiões da Ilíria, das quais muitos soldados, ou por doentes ou por velhos, iam recebendo suas baixas.” (TÁCITO, 1952, p. 433)

Fica claro, portanto, que a África era uma fonte inesgotável de recursos de todo o tipo. Pudera, alguns historiadores falam em uma população urbana próxima de 4 milhões de pessoas. Portanto, subjugando a África, Roma contava com milhares de soldados, agricultores, artesãos e comerciantes com quem podia compartilhar experiências mas, sobretudo, recrutar soldados para suas legiões, obter produtos agrícolas e artesanais, além de recolher impostos. Na região, os principais produtos econômicos eram oriundos do cultivo de cereais, da manufatura da azeitona para retirar o azeite, bem como a produção de cerâmicas, também para sua utilização no estoque e transporte deste azeite. Mas, por outro lado, com o domínio romano muitos produtos foram proibidos e pararam de ser produzidos em terras africanas e passaram a ser importados da Europa, o que refletia uma balança comercial cômoda para Roma e deixava as províncias sempre em situação comercial desfavorável. Por fim, alguns produtos que não se encontrava na Europa tiveram seu comércio facilitado através das novas fronteiras do Império na África. Nesse sentido, os países forneciam ouro, através de várias rotas que ligavam a minas da Guiné às praias do Mediterrâneo, esmeraldas e pedras preciosas, animais exóticos e até escravizados negros da África subsaariana. Em contrapartida, Roma pagava a conta através do fornecimento de vinhos, objetos de metal e vidro, além de cerâmicas e têxteis, todos produtos com valor agregado.

É bem verdade que, numa relação entre dominantes e dominados, a balança comercial sempre vai pesar mais para um lado mas, mesmo que isso seja um fato, também é preciso levar em conta que não se trata, apenas, de uma relação unilateral entre civilizados versus bárbaros, conforme apontado, nesse texto, inúmeras vezes. “Após ter sido negligenciada durante longo tempo pelos historiadores de Roma, as artes provinciais e as culturas “periféricas” estão, atualmente, no centro das preocupações. Isso se deve a uma compreensão mais clara dos limites da romanização e das diferentes formas que ela assumiu em seus contatos com as sociedades indígenas. Além disso é preciso considerar que a arte de uma determinada província não pode ser dissociada de sua vida econômica, social e religiosa. A propósito, para estudar e apreciar a arte desenvolvida nas províncias africanas durante a dominação romana, tornou-se necessário considerar o persistente substrato líbio-púnico que continuou a existir e a evoluir durante séculos.” (MAHJOUBI in MOKHTAR, 1983, p. 507)

Por esse motivo, é muito importante reconstruir o olhar historiográfico hegemônico, não somente sobre a África, mas em relação aos diversos povos que, por séculos, foram subjugados por europeus e seus herdeiros norte-americanos. O roteiro é sempre o mesmo, a narrativa se renova apenas na troca dos nomes e datas, mas o fato é que o legado imperialista romano não está presente no nosso tempo apenas através das suas maravilhas arquitetônicas, sua contribuição para o Direito ou suas estradas ainda hoje utilizadas para o deslocamento de pessoas e mercadorias. Roma está presente, em nós, sobretudo, por conta do seu legado bélico, voltado à conquista de outros territórios. Não por acaso, a estética do Terceiro Reich, como já mencionado anteriormente, foi fortemente referenciada na Roma Antiga. Por outro lado, Cartago é um bom exemplo de como a resistência de povos e culturas se dá, muitas vezes, inclusive, de forma inconsciente, mesmo quando toda uma cidade ou um país é completamente destruído. E também não há historiografia hegemônica capaz de apagar os resquícios dessa contribuição cultural. Segundo Mahjoubi, “[…] a História costuma distinguir duas culturas na África, uma “oficial”, de caráter romano e outra popular e provincial” (1983, p. 509), no entanto, é fato que muitas vezes, em inúmeros monumentos, de forma semelhante a como ocorre com a arquitetura remanescente, as duas correntes se encontram, se misturam e até se confundem.

Se Thébert afirma que “[…] a integração da África ao mundo romano só intensifica relações já existentes, não as cria.” (2009, p. 298), também é verdade que, segundo G. Charles-Picard, citado por Mahjoubi, a “África deu muito mais a Roma do que recebeu e mostrou-se capaz de fazer frutificar suas influências com um espírito que não é nem da Grécia nem o do levante helenizado.” (1983, p. 509). Portanto, se desde o fim do Império Romano já vimos a história se repetir inúmeras vezes e o enredo parece ser sempre o mesmo, também é verdade que há resistência em todos os sentidos. Tanto militar quanto cultural.

Em vários momentos, ao longo da História, inclusive, os cenários se repetem. Os séculos avançam e lá no Oriente Médio, naquele enclave entre a África, Ásia e Europa, em pleno século XXI, novamente uma potencia militar, dita esclarecida e democrática, tenta riscar um povo, tido como bárbaro, do mapa. A Faixa de Gaza é, hoje, a Cartago de um passado distante. Mas também já foi o Afeganistão e o Iraque de um passado recente. A mesma África explorada por europeus nos séculos XIX, XX e XXI, em busca de diamantes, é a África que forneceu a mão de obra escrava para que a Europa explorasse a América Latina desde o século XVI, e é a mesma África que, como vimos, romanos exploraram num passado tão longínquo que, parece, não nos pertence. Ao mesmo tempo, assim como a história de exploração deste vasto continente, que atravessa séculos mas sempre está nas mãos de algum império de ocasião, também a Roma Antiga repercute diretamente nós, hoje, em pleno século XXI. Mas, também é fato que se a resistência não ocorre através das armas, ela se dá através das ideias. E até para isso é importante revermos esse olhar hegemônico sobre a História. Afinal, se há algo que o estudo da História nos revela é que esta, a História, é uma permanente disputa entre David e Golias. Se nem sempre David vence a briga, quase sempre ele incomoda e, certamente, embora não seja uma Fénix, sempre renasce das cinzas.

Bibliografia CONSULTADA

BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. África do Norte no Império Romano – representações musivas de identidade e alteridade. Anais do XV ERH-ANPUH-RIO, 2012.

LEPELLEY, Claude. Os romano na África ou a África romanizada – arqueologia, colonização e nacionalismo na África do Norte. Revista Heródoto. Unifesp, 2016.

MENDES, Norma Musco; BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha e DAVIDSON, Jorge. História da vida privada – do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne. São Paulo : Companhia das Letras, 2009.

MOKHTAR, G. (coord). A África antiga. São Paulo – Ática : Unesco, 1983

OLIVEIRA, Júlio César Magalhães de. Sociedade e cultura na África romana – oito ensaios e duas traduções. Intermeios, 2020.

SANT’ANNA, Henrique Modanez de. História da República Romana – Petrópolis, RJ : Vozes, 2015.

TÁCITO. Anais – Vol. XXV. São Paulo, SP : Editora Brasileira Ltda, 1952.

VEYNE, Paul (org). História da vida privada I : do Império ao ano mil. São Paulo, SP : Companhia das Letras, 2009.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.

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por Boca Migotto

No próximo ano, 2024, a primeira Constituição do Brasil, como Estado independente, completará 200 anos. A Constituição de 1824, outorgada pelo imperador dom Pedro I, não é apenas a primeira, mas também a mais longeva Carta Magna com a qual o Brasil já foi regido. Vigorou por 67 anos e durou até depois da Proclamação da República, quando foi substituída pela Constituição de 1891. Além destas, o Brasil teve, ao longo da sua História, outras cinco constituições: a terceira foi outorgada por Getúlio Vargas, junto à formação do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937 e, depois, ainda vieram as constituições de 1946, 1967 antes de, finalmente, chegarmos à Constituição Cidadã. A primeira realmente outorgada em um Estado democrático, apenas em 1988, e que vigora até os dias atuais.

A Constituição de 1824, imposta por dom Pedro I, é bastante contraditória e fruto de um processo arbitrário que envolveu, inclusive, a dissolução da assembleia constituída a partir de maio de 1823. Segundo o historiador Boris Fausto – falecido em abril deste ano – em seu livro História do Brasil, dom Pedro, inspirado pelo rei Luís XVIII da França, jurou que defenderia a futura Constituição se esta “fosse digna do Brasil e dele próprio”. Ou seja, o monarca não aceitava perder um milímetro do seu poder.

Os membros da constituinte, no entanto, nem de longe eram políticos radicais. A assembleia era formada, basicamente, por expoentes da elite brasileira, que defendiam, na sua essência, os seus próprios interesses. Ao mesmo tempo, é verdade que o país estava em ebulição desde a independência. Portanto, muitas questões estavam em jogo e isso, naturalmente, provocava discussões acaloradas entre os mais diversos setores aristocráticos. A historiadora Lilia M. Schwarcz, no livro escrito em parceria com Heloisa M. Starling, Brasil – uma biografia, explica que o país, naquele momento, se dividia entre os grupos “coimbrão”, composto, basicamente, por portugueses e os “brasilienses”, formado por brasileiros natos. Segundo a historiadora, “(…) não havia, por exemplo, acordo acerca das estruturas básicas sobre as quais o Estado iria se organizar. E não por acaso, nos dois primeiros anos de país independente – entre 1822 e 1824 – os debates centraram-se na primeira Constituição brasileira”.

Em meio a tudo isso, em maio de 1823 ocorreu a primeira reunião da Assembleia Constituinte. Havia, entre a maioria dos seus membros, a certeza de que o melhor caminho era defender uma monarquia constitucional que garantisse os direitos institucionais dos cidadãos, limitasse o poder do imperador, regrasse o país após este ter se separado de Portugal, mas que não significasse necessariamente uma ruptura completa ao modelo praticado.

Em verdade, a busca era por manter tudo que interessava às elites e apenas diminuir o poder de dom Pedro sobre as questões políticas do país. Basicamente, três grupos se formaram: 1) os liberais moderados defendiam uma monarquia constitucional, sujeita a clássica divisão de Montesquieu, constituída por três poderes, mas sem comprometer a ordem social e status quo vigente; 2) os liberais exaltados que eram os mais audazes na sua luta por transformações estruturais, não apenas sociais, como também políticas. Nesse sentido, eles defendiam um sistema federalista, separação da Igreja do Estado, sufrágio universal, implantação de uma República e gradual emancipação dos escravos. Por fim, os conservadores, chamados também de “partido português”, embora não fosse formado apenas por estrangeiros, que reivindicavam o poder absoluto da monarquia. Foi, portanto, nesse ambiente que iniciaram os trabalhos da Constituinte de 1824, apelidada de “Mandioca” pois esta determinava que apenas teria direito ao voto, ou concorrer ao cargo de deputado, aqueles cidadãos brasileiros “(…) que tivessem renda anual equivalente a 150 alqueires de farinha de mandioca.” Mais do que tudo, uma clara demonstração de força da elite agrária brasileira.

Mal iniciaram as discussões e já estava claro a todos que havia uma articulação para retirar poderes de dom Pedro I, bem como, proibir estrangeiros – no caso, essencialmente os portugueses – de se candidatarem a cargos públicos. Isso chamou a atenção de dom Pedro que, naturalmente, se aproximou do grupo dos portugueses e, em 12 de novembro de 1823, com apoio militar, cercou o prédio e ameaçou os deputados. Estes resistiram, passaram a noite legislando, declararam o monarca um fora-da-lei e enfrentaram o poder do imperador naquela que foi conhecida como “a noite da agonia”.

Em resposta a tão insolente provocação, entretanto, dom Pedro dissolveu a Assembleia Constituinte e os ameaçou com prisão. Ao raiar do dia, diferente do prometido, quase todos deputados voltaram para casa – com exceção de seis, que foram deportados para a França – mas, a partir de então, dom Pedro coordenou os trabalhos até o dia 25 de março de 1824, quando acabou por outorgar, finalmente, a primeira Constituição do Brasil. Esta, no entanto, novamente segundo Boris Fausto, “(…) nascia de cima para baixo, imposta pelo rei ao ‘povo’, embora devamos entender por ‘povo’ a minoria de brancos e mestiços que votava e que, de algum modo, tinha participação na vida política”.

Não é estranho, no entanto, perceber que a Constituição carregava, em si, uma série de contradições que espelhavam o próprio imperador. Dom Pedro gostaria de ser visto como um monarca esclarecido, ilustrado e liberal, embora agisse para garantir seus poderes autocráticos. A Carta Magda não deixa de ser o reflexo desse homem e líder confuso. Por uma lado, trata-se de uma constituição bastante moderna para a época mas, ao mesmo tempo imposta, ampliou os poderes do monarca com a adoção do mecanismo do “Poder Moderador”. Schwarcz explica que o documento “(…) seguia o modelo liberal francês, prevendo um sistema representativo baseado na teoria da soberania nacional. A forma de governo era monárquica, hereditária, constitucional e representativa, dividindo-se o país em províncias. A novidade ficava por conta da introdução não de três poderes, mas de quatro, seguindo-se e adaptando-se a proposta de Benjamin Constant, que defendia a existência de cinco poderes: o real, o executivo, o representativo da continuidade, representativo da opinião e o poder de julgar, estando este acima dos demais”

Praticado exclusivamente pelo imperador, o Poder Moderador, conforme o Artigo 98 do Capítulo I da Constituição, estava acima dos demais e poderia ser aplicado sempre que houvesse necessidade de definir uma questão em disputa. Mais do que um poder de veto, garantido ao imperador ainda no projeto de 1823, o Poder Moderador, conforme aparece na Constituição de 1824, “(…) é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante”. Dessa forma, o poder de dom Pedro lhe concedia o direito de demitir ministros de Estado, membros vitalícios do Conselho de Estado, presidentes de províncias, autoridades eclesiásticas, senadores vitalícios e magistrados do Poder Judiciário. Por fim, o imperador era inimputável e não poderia responder judicialmente por seu atos. Assim, se, esta Constituição representava um avanço ao organizar os poderes, definir atribuições e garantir direitos individuais, por outro lado, sobretudo no campo dos direitos, sua aplicação seria relativa e insuficiente.

Falamos de um país, naquele momento, essencialmente agrário e extrativista, onde praticamente não havia indústrias e o comércio dependia, sobretudo, das importações.

Nesse sistema ainda beirando o feudalismo, a elite, detentora das terras – e o país, consequentemente –, dependia exclusivamente do trabalho escravo para se viabilizar economicamente. Por isso, não espanta o fato de nenhum dos grupos acima mencionados, inclusive os liberais exaltados, tocarem no tema da escravidão. Dom Pedro, por sua vez, também não o fez. Mesmo amparado pelos militares e tendo garantido um poder quase absoluto, não seria ele a enfrentar toda a classe dominante do país e propor a abolição naquele momento crucial, quando o Brasil atravessava uma séria ameaça de se desfragmentar em diversas repúblicas, a exemplo do que já havia ocorrido com a América hispânica. Como bem sabemos, levou sessenta e quatro anos para que o Brasil, finalmente, conseguisse romper com a escravidão. E quando o fez, logo em seguida o império ruiu. Portanto, até o presente momento tudo já havia mudado o suficiente para que mais nada mudasse e, assim, os diversos setores da aristocracia brasileira, bem como o próprio imperador, haviam preservado seu status quo. Não por acaso, os demais pontos da Constituição eram mera formalidade e não geraram discórdia.

Embora a religião oficial do Império fosse a Católica Romana, e esta submetia-se ao Estado, abriu-se espaço para as mais diversas manifestações religiosas, uma vez que estas ocorressem dentro dos seus respectivos templos. A Assembleia Geral era constituída por duas casas, sendo a primeira, dos deputados, temporária e a segunda, dos senadores, vitalícia. As eleições mantiveram-se censitárias indiretas, em dois turnos e, conforme Artigo 90, Capítulo VI das Eleições, as nomeações seriam feitas “(…) por eleições indiretas, elegendo a massa dos cidadãos ativos em Assembleias Paroquiais, os eleitores de províncias, e estes os representantes da nação e da província”. O direito político era restrito, conforme explicitado já no Artigo 92 do mesmo Capítulo. Não votavam escravos, indígenas, mulheres, menores de 25 anos e solteiros, religiosos de claustro, criados a servir, além de todos que tivessem uma renda anual inferior a 100 mil réis. Mas, ao mesmo tempo que a Constituição outorgou poderes absolutistas ao imperador, não rompeu com a escravidão, manteve a Igreja atrelada ao Estado e limitou o direito ao voto, ao longo de todo o Artigo 179 do Título 8°, também garantiu a liberdade de imprensa, o direito à propriedade, o direito do cidadão de ir e vir, exercer e expressar o pensamento livre, e, aos escravos, de não sofrerem tortura ou castigos físicos.

Ao mesmo tempo, além de, fundamentalmente, organizar as leis de um país que estava nascendo para o mundo, a Carta de 1824 passou a considerar como cidadãos brasileiros aqueles nascidos no Brasil e aqueles que, embora nascidos em Portugal, residiam no país por ocasião da Independência. De certa forma, e de uma forma um tanto quanto torta, a Carta de 1824 tentava formar um império liberal, submetido ao controle dos cidadãos e afastado da herança colonial absolutista. Nem tudo saiu como os mais liberais desejavam, mas foi onde se pode chegar em meio a um país ainda em convulsão social, algo, aliás, que levaria mais de uma décadas para ser pacificado, e governado por um imperador de tendência absolutista.

Em meio a tudo isso, então, em 1826 se formou a primeira Assembleia Geral brasileira, com 50 senadores e 102 deputados. A Assembleia se tornou, como não poderia deixar de ser, a casa da discussão política, no entanto, graças ao poder que a Constituição outorgou ao imperador, toda discussão poderia ser facilmente esvaziada por uma canetada aleatória. Ainda havia muito o que transformar nesse país recém nascido e isso, a História nos conta, demandou séculos para ocorrer. As consequências, portanto, estão presentes no Brasil até os dias de hoje.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.

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MAR ABERTO | História que tu faz História https://redesina.com.br/mar-aberto-historia-que-tu-faz-historia/ https://redesina.com.br/mar-aberto-historia-que-tu-faz-historia/#respond Thu, 24 Aug 2023 19:59:47 +0000 https://redesina.com.br/?p=96739 por Boca Migotto Sempre quis fazer História. No ensino médio, na minha época também conhecido como “segundo grau”, a matéria era uma das poucas que me seduzia. Não por acaso, também uma das matérias que melhor me saia nas avaliações. E olha que meus professores de História, no geral, nem eram uma Brastemp. Pronto, denunciei …

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por Boca Migotto

Sempre quis fazer História. No ensino médio, na minha época também conhecido como “segundo grau”, a matéria era uma das poucas que me seduzia. Não por acaso, também uma das matérias que melhor me saia nas avaliações. E olha que meus professores de História, no geral, nem eram uma Brastemp. Pronto, denunciei minha idade por duas vezes em um único parágrafo.

Mas voltando à História, precisei chegar aos quarenta e sete anos, fazer uma especialização, um mestrado e um doutorado para, enfim, me aventurar pelos corredores das Humanidades. Voltei à graduação a convite de um professor da PUCRS, o Charles Monteiro, que me convenceu – bem fácil, diga-se de passagem – a ingressar no curso. E lá estou, compartilhando minhas primeiras quatro disciplinas do curso com colegas que têm idade para serem meus filhos. Um deles, inclusive, ainda menor de idade.

Eu não sou um daqueles que se considera um homem adulto, maduro e bem resolvido na minha adultez. Longe disso. Na verdade, nem levo isso muito a sério. Ainda hoje custo acreditar que estou beirando os cinquenta anos. Cinquenta anos, gente! Quase meio século de vida. Este, sim, um privilégio que me permitiu viver muitas experiências de vida. Aprendi a ler, sobrevivi ao bullying do ensino médio, ingressei numa universidade, me graduei, não fui (totalmente) tragado pela porraloquice da adolescência, avancei nos estudos, morei na Inglaterra, onde aprendi inglês e estudei cinema, além de lavar muita louça, e fiz parte do meu doutorado em Paris, na Sorbonne. Não é pouca coisa para um filho de pedreiro semianalfabeto.

Meu pai, já escrevi por aqui, sempre quis estudar. Seu sonho era ser engenheiro. Meu avô não o deixou. Mal permitiu que ele se alfabetizasse. Naquela época era preciso trabalhar e a roça demandava mais braços e pernas que uma cabeça pensante. Para o meu avô, um filho mais estudado que o pai, inclusive, era percebido como um problema em casa. Os filhos tinham que ser mais “burros” que o progenitor. E talvez seja preciso dizer que meu pai era de outra época. No mínimo, umas três gerações antes de mim. Hoje, se vivo, ele estaria com cento e três anos de idade. Calculem, eu estou com quarenta e sete. Mas seu Olindo – de fato um ser humano lindo – não era de desistir fácil. Na impossibilidade de projetar prédios, ele os construiu. E fez isso em uma época quando um mestre de obras ainda podia projetar, toscamente que fosse, alguns prédios que não contavam com a assinatura de um engenheiro civil. Ainda mais na Carlos Barbosa de 1950.

Meu pai, embora nunca terá seu nome indicando alguma rua da cidade onde viveu, foi um dos responsáveis por construí-la. Como pedreiro foi responsável pelo primeiro edifício da cidade, e tantos outros depois, pelo hospital da cidade, pelo colégio, esteve envolvido na construção da igreja matriz, da Tramontina, quando esta ainda engatinhava, e mais uma pá de edificações em toda região da Serra. Ainda hoje encontro pessoas que me contam que o pai construiu suas casas e estas estão ainda lá, de pé, firmes e fortes. “Não se constrói mais com a qualidade que o teu pai construía”, me dizem.

Mas seu sonho ficou pela metade. E ao ter um filho imaginou que poderia realizá-lo através de mim. Sou filho único, portanto, era sua única chance. Por isso, embora vivêssemos uma vida bem simples – não tínhamos carro, não íamos para a praia, nossa primeira TV colorida chegou quando eu já tinha quase dez anos de idade –, dinheiro para pagar os meus estudos nunca faltou. Às vezes rolava até alguma surpresa inusitada. Ainda lembro o dia que cheguei em casa da escola e ele tinha me comprado uma máquina de datilografar. E me matriculado no curso que era dado pelas freiras do colégio onde eu estudava. Asdfg, asdfg, impossível mesmo esquecer. Tenho até diploma.

E assim papai me pagou os estudos até eu me formar publicitário. Mesmo que ele nem soubesse direito o que um publicitário fazia – quando prestei vestibular nem eu sabia –, mesmo que a minha opção não tenha sido pela engenharia. Aliás, teria sido um péssimo engenheiro. Entender que o meu caminho era outro evitou que alguma ponte caísse por ter sido mal projetada, tenho certeza absoluta disso.

Na família dos Migottos, ao contrário, e muito por responsabilidade dele, o que mais tem é construtor, engenheiro e arquiteto. Mas, quis o destino, após perceber que a publicidade não era para mim, que eu resolvesse ser cineasta. Um filho de pedreiro que quis fazer filmes. E pior que fiz. Fiz alguns filmes, programas para TV, e até escrevi alguns livros. E até estudei na Sorbonne, vejam só. Mas nunca deixei de ser o filho do pedreiro. Nem para mim, nem para aqueles que assim me conheceram. Quando fui para o primeiro encontro com a minha orientadora francesa parei em frente ao imponente prédio da Sorbonne, olhei para ele, para as pessoas que passavam por mim, lembrei de onde vinha, respirei fundo para acreditar que lá estava, e encarei aquele lugar amparado pelo meu, então, ainda macarrônico francês.

Por conta da nossa diferença abismal de idade, o conflito de gerações entre mim e ele era, também, abismal. Quase não havia diálogo entre nós. Por isso, foi minha mãe quem me explicou coisas sobre o sexo, quando a necessidade dessas conversas bateu à porta. Apesar disso, e de não ter me formado engenheiro, eu fiz questão de construir pontes com o meu pai. Estas, pontes duradouras. Ele gostava de contar histórias do passado e gostava de passear de carro pelo interior da cidade para ver as casas antigas. Depois dos meus dezoito anos ganhei um carro, que era o carro da família, e levava ele para passear. Esses passeios eram verdadeiras aulas e aproximavam um pai de setenta e poucos anos de um filho adolescente. Não é por acaso que eu curto histórias, curto a História e tenho uma queda particular por coisas antigas. Casas em especial. Quem conhece meus filmes sabe que muitos tratam da memória dos mais velhos, da memória das casas velhas e das histórias da memória.

Hoje, aos quarenta e sete anos, depois de viver tantas experiências, mas ainda mais novo que o meu pai quando me teve, volto à graduação, sento ao lado de adolescentes que me olham com certa estranheza, para finalmente cursar uma graduação de História. A história estudada pelo ponto de vista da História. E o que motivou o professor citado anteriormente a me enviar um convite para que eu pensasse seriamente em ingressar na PUCRS, foi, justamente, o meu passado como cineasta. Após ler minha tese de doutorado – ele participou da minha banca – e ver meus filmes, me disse que eu tinha – tenho – a História no sangue. Pudera, no meu sangue corre o DNA do seu Olindo.

Confesso que não é tão fácil voltar para os bancos da faculdade nessa fase da vida. E nem falo pelo etarismo, mas porque um turbilhão de memórias passam pela minha cabeça e me fazem refletir sobre o passado. Ao mesmo tempo, não sou mais um adolescente que, na sua época, tinha todo o tempo do mundo para ler e estudar. E muitas vezes nem aproveitava. Nessa altura da vida é preciso conciliar os intermináveis textos, provas, trabalhos, com a vida profissional, com a criação – até onde posso ajudar – do meu enteado, com o tempo que é preciso dedicar à minha companheira e a mim mesmo e, inclusive, dar conta das tarefas de casa. Afinal, nem a roupa, nem a louça se lavam sozinhas. Aos quarenta e sente anos tudo passa a ser mais urgente. Por mais que me sinta jovem, por mais que – espero – ainda tenha muita vida pela frente, esta torna-se cada vez mais imperativa. A contagem regressiva parece acelerar quando nos aproximamos de meio século de vida e ainda há muito o que quero fazer antes de partir.

Por isso está valendo muito a pena voltar à faculdade como estudante de graduação. Sempre gostei de estudar e, em particular, as disciplinas de Humanas sempre me seduziram. Se tivesse tempo e dinheiro faria, ainda, uma faculdade de História da Arte, paralelamente ao curso de História. Ah, a vida é tão curta para tudo que eu gostaria de estudar e viver. Mas quem sabe. Nos meus planos há espaço para outro doutorado, mais um livro, que já estou escrevendo e é sobre, justamente, o envelhecimento, e, claro, filmes. Muitos filmes.

Esses dias fiquei sabendo que uma senhora de quase noventa anos, de Bento Gonçalves, defendeu sua dissertação de mestrado. Se eu pensar em tudo que fiz em pouco mais de vinte anos – sim, porque meus primeiros vinte anos foram mais de festas e tentativas de me localizar no tempo e no espaço – imagino quantas bancas de doutorado ainda posso enfrentar até chegar aos noventa e, finalmente, me aposentar. São, pelo menos, mais quarenta anos pela frente. Por enquanto, enquanto não chego aos noventa, vou mergulhando na História. Um passo depois do outro, piano, piano. Que dádiva é viver. Mas como canta uma canção por ai, para viver “é preciso saber viver”. E isso foi o que melhor aprendi do meu pai. E da própria vida.

PS: e já que estamos falando de História, estou lançando meu terceiro livro e segundo romance. Chama-se “A última praia do Brasil” (Editora Bestiário, em parceria com a Rede Sina). Se passa na Barra do Chuí, na fronteira com o Uruguai, e conta a história de Pedro, um professor de História, aposentado, que para lá se muda junto com a esposa a fim de viverem seus últimos anos em paz e na tranquilidade do isolamento que só a última praia do Brasil pode oferecer. Esse livro fala sobre o luto, sobre o envelhecimento, sobre um pai que precisa se reaproximar do filho, e também reflete sobre nosso lugar nesse vasto continente chamado América do Sul. Quem tiver interesse em lê-lo, compartilho o link para a compra. Até o final do mês de agosto ele está saindo por apenas 54,00 reais, preço promocional da pré-venda. Muito obrigado.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.

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5 ANOS DO COLETIVO MEMÓRIA ATIVA https://redesina.com.br/5-anos-do-coletivo-memoria-ativa/ https://redesina.com.br/5-anos-do-coletivo-memoria-ativa/#respond Mon, 31 Jul 2023 18:08:31 +0000 https://redesina.com.br/?p=67620 Na próxima sexta, dia 4, às 19h, o Coletivo Memória Ativa comemora seus 5 anos em evento no Arquivo Histórico de Santa Maria. O Coletivo nasceu em agosto de 2018 para valorizar o patrimônio histórico e cultural de Santa Maria. Desde então, voluntários representantes de diferentes entidades e profissões têm se reunido semanalmente e realizando …

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Na próxima sexta, dia 4, às 19h, o Coletivo Memória Ativa comemora seus 5 anos em evento no Arquivo Histórico de Santa Maria.

O Coletivo nasceu em agosto de 2018 para valorizar o patrimônio histórico e cultural de Santa Maria. Desde então, voluntários representantes de diferentes entidades e profissões têm se reunido semanalmente e realizando diversas atividades.

Em 2022, o coletivo tornou-se uma associação.

 

CINCO ANOS DO COLETIVO MEMÓRIA ATIVA

Em ato público do dia 4 de agosto 2018, foi lido um Manifesto, dando início às atividades do  COLETIVO MEMÓRIA ATIVA  em defesa do Patrimônio Cultural de Santa Maria. Dentre as ações, propunha-se a dar apoio ao COMPHIC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural); apoiar o processo de tombamento definitivo dos bens imóveis do Centro Histórico da cidade; acompanhar a constituição de uma nova Legislação Municipal de proteção ao Patrimônio Cultural, com a adoção de mecanismos de amparo oficial aos proprietários de bens tombados.

 O nosso nome – Memória Ativa – deve-se ao nosso entendimento de que a defesa do Patrimônio Cultural exige que seja, cada vez maior, o esforço da coletividade em proteger os símbolos materiais e imateriais da história do Município. Sem a sua gente, a cidade está fadada à ruína. É da memória afetiva de cada um que se constrói a memória da cidade.

Nestes cinco anos – tendo passado por dois anos da epidemia Covid 19 – não deixamos de lado nossas atividades (como se pode ver pela síntese da Linha do Tempo, anexa). Temos realizado Caminhadas Guiadas pelo Centro Histórico (acervo Art dèco da Avenida Rio Branco), defendido a recuperação e revitalização da Gare da Viação Férrea e participado ativamente de um dos Comitês do Distrito Criativo. Por isso temos a satisfação e orgulho de comemorar esta trajetória intensa de ação e colaboração.  

Nossa Missão: “Sensibilizar a comunidade de Santa Maria em prol da preservação dos valores do seu patrimônio cultural.”

Nossa Visão: “Ser reconhecida como entidade que busca inserir Santa Maria no circuito mundial da defesa do patrimônio cultural.”

Valores de nossa identificação: Integridade, Liberdade, Diálogo, Identidade, Afetividade.

Santa Maria, 31 de julho de 2023

Orlando Fonseca – Presidente

 

Coletivo Memória Ativa organiza caminhadas sobre a arquitetura e patrimônio de Santa Maria-RS. Foto: Dartanhan Baldez Figueiredo.

 

LINHA DO TEMPO (síntese)

2018

1.º/8 – Reunião de criação do coletivo.

4/8 – Ato público na praça Saldanha Marinho, com leitura do Manifesto em Defesa do Patrimônio Cultural de Santa Maria.

2019

18/2 – Entrega formal das sugestões do Coletivo para a criação da Legislação do Patrimônio – Gabinete da Casa Civil/ Prefeitura.

29/3 – Evento – Aula Inaugural/UFSM com o prof. Da UFRGS, Paulo Edi Martins; passeio pelo acervo Art Déco da Av. Rio Branco.

2020

10/03 – Reunião com a Mesa Diretora e Comissão de Patrimônio da Câmara de Vereadores, Secretaria de Gestão Administrativa e IPLAN sobre as leis do patrimônio.

22/04 – Primeira reunião virtual as quais seguiram ao longo do ano

28/05 – Manifesto em defesa do patrimônio ferroviário (Gare da estação)

13/06 – Ação Civil Pública junto ao MP

2021

26/04 – Lançamento do Audiovisual “Traço Déco de Santa Maria”, parte do projeto Arquitetando Memórias, produzido para fazer parte da programação da AdBa (Associação Déco Buenos Aires) para compor o acervo déco mundial exposto naquele sítio virtual.

23/06 – Participação na Audiência Pública sobre a Gare

30/06 – Participação na Audiência Pública sobre Leis do Patrimônio

17/08 – Representação do Coletivo no lançamento do Projeto Distrito Criativo.

2022

18/01 – Indicação dos representantes do Coletivo no novo CONPHIC, José Luiz de Moura Filho e Clarissa de Oliveira Pereira.

21/03 – Gestão junto ao Google Maps para corrigir o nome da Rua Ernesto Beck; efetivada a correção neste dia. Repercussão na imprensa de Santa Maria.

8/04 – Emissão do CNPJ da Associação Coletivo Memória Ativa

28/6 – Reunião com escritório de advocacia Feversani Pauli & Santos, sobre a intervenção no Clube Caixeiral.

Dia 26/09 – Caminhada pelo Centro Histórico de Santa Maria, guiada pelas arquitetas Lídia Rodrigues e Márcia Kümmel, participação dos alunos do Curso de turismo da UFSM.

2023

17/05 – 10ª Caminhada Guiada pelo Centro Histórico – Aniversário de Santa Maria.

4/08 – Comemoração dos Cinco Anos do Coletivo Memória Ativa.

Redes sociais:
Poema escrito para o coletivo: https://redesina.com.br/ruinas/
Reveja:
Playlist com 11 vídeos sobre o Coletivo Memória Ativa

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VOU JOGAR MINHA ALMA NO RIO por ROGER BAIGORRA MACHADO https://redesina.com.br/joguei-minha-alma-no-rio/ https://redesina.com.br/joguei-minha-alma-no-rio/#respond Fri, 21 Oct 2022 20:51:34 +0000 https://redesina.com.br/?p=19432 Entrei com o caiaque e remei uns duzentos metros para dentro do Uruguai, a correnteza era muito forte. Eu precisava dar cinco ou seis remadas para progredir uns dois metros. Descobri que remar longe da costa é sempre mais difícil, aprendi isso num domingo com vento, nunca mais cometi o mesmo erro. Voltei. Virei o …

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Entrei com o caiaque e remei uns duzentos metros para dentro do Uruguai, a correnteza era muito forte. Eu precisava dar cinco ou seis remadas para progredir uns dois metros. Descobri que remar longe da costa é sempre mais difícil, aprendi isso num domingo com vento, nunca mais cometi o mesmo erro.

Voltei. Virei o barco na direção da ponte internacional. Fui rumo ao antigo “Cortado”, uma pequena área alagada que se forma entre o rio e o bairro Mascarenhas de Moraes, também conhecido como Marduque.

Fui remando sem pressa, sem muito objetivo, sei apenas que fui subindo o rio Uruguai. Eu e o Cenair Maicá (1947-1989). Sim, sempre que entro no Uruguai ele vai comigo. Tem sempre um lugar para ele, bem sentado ao lado das minhas memórias. E o Cenair sempre vai cantando a mesma canção: “Os balseiros do rio Uruguai”. 

“Oba, viva, veio a enchente. O Uruguai transbordou, vai dar serviço pra gente!”

Entre uma remada e outra, eu pensava comigo: “Como pode o Cenair Maicá nunca ter cantado na Califórnia da Canção Nativa?”. Hoje, oito anos depois, percebo que não era esse o objetivo do Cenair, parece-me que ele não estava muito interessado em fazer música para os festivais.

Cenair Marcá queria mesmo era cantar a vida ao redor do rio, falar das suas memórias de criança ribeirinha, da vida missioneira e das dificuldades da lida fronteiriça. Cenair queria mesmo era cantar nossos problemas sociais, dizer sobre como os missioneiros eram desvalorizados na cultura gaúcha. Escrever sobre como o indígena era um herói nas páginas dos livros e ao mesmo tempo um marginal vendendo cestas nas calçadas das ruas.  

E sigo remando em direção ao Cortado. 

Num passado não muito distante, o Cortado era um dos lugares onde as balsas de pranchão e de toras de árvores ficavam atracadas.

Quando as cidades da costa do Rio Uruguai foram se formando, desde meados do século XIX, a madeira era material básico para tudo. A madeira servia para o carvão dos vapores, para abastecer os fogões das cozinhas, para fazer embarcações, casas, câmaras de vereadores, igrejas e galpões.

Até os anos 1950, o transporte e a extração de madeira geravam muitos postos de trabalho, eram parte da economia local.

As balsas, as mais rudimentares, eram feitas apenas com toras de árvores, no centro geralmente havia uma espécie de toldo ou barraca, lugar onde o balseiro se protegia do sol e da chuva. As madeiras das balsas eram retiradas das florestas próximas das margens do rio. Cenair me canta no ouvido que eram espécies como “cedro, angico e canjerana”.

Centenas de pessoas se dedicavam ao trabalho de corte e transporte das árvores por dentro dos matos até a beira do rio e seus afluentes.

No período em que o rio estava baixo, as toras eram deixadas em suas margens para secar e, depois, eram amarradas em forma de balsas, em estruturas que podiam ser pequenas ou ter até mais de 50 metros de comprimento.

Uma vez que os troncos estivessem secos, quando a época das cheias chegasse, as toras boiariam, amarradas umas nas outras e poderiam ser levadas para as cidades e estâncias que ficavam nas margens do Uruguai. 

As balsas chegavam no cortado, vindo de Santo Tomé, São Borja e Itaqui, outras vinham das bandas do Paraná e traziam a madeira de pinho. Haviam balseiros que, além da madeira, traziam produtos contrabandeados da Argentina, farinha, graxa de cerdo, bebidas, produtos que também eram vendidos em cada parada.

Por vezes, algumas balsas ancoravam quase que se desmanchando, é que na descida do rio Uruguai elas enfrentavam tempestades muito fortes e as amarras das toras acabavam se soltando, quando isso acontecia o prejuízo era grande, especialmente, se os pranchões se soltavam, pois ao contrário das toras, eles acabavam afundando 

E eu sigo remando por entre as balsas da minha imaginação, todas próximas da margem, as crianças correndo pela costa em festa e subindo por sobre os troncos de árvores, correndo por sobre as madeiras dos pranchões, desprovidas de medo ou qualquer sensação de perigo, jogando-se na água e subindo novamente.

Até os anos 1950, mesmo depois da inauguração da ponte internacional (1947), o Cortado seguiu sendo utilizado como um atracadouro antes do porto.

No Cortado as balsas também ficavam esperando para descer o rio um pouco mais, até perto de onde era a antiga “destilaria de petróleo”.

Era perto da destilaria que as balsas ficavam esperando pelas chalanas, barcos menores que faziam o transbordo da madeira para a costa.

Carroças aguardavam na margem para levar os pranchões para as madeireiras e serrarias. Já os troncos precisavam ser cortados em pranchões ou fracionados em partes menores para só depois serem transportados.

Na costa também ficavam várias estruturas, feito grandes cavaletes que eram capazes de sustentar por cordas e roldanas as imensas toras.

Uma vez erguidas as toras, um homem subia com uma serra e começava a abrir os pranchões. Na parte de baixo da estrutura, segurando a outra ponta da serra, mais um trabalhador completava o árduo serviço. O homem que estava em cima puxava a serra enquanto que o homem de baixo a empurrava para cima, e depois ao contrário, dezenas e dezenas de vezes. Quantas casas foram construídas em Uruguaiana com as madeiras vindas pelo rio?

Quantas casas, hoje parte do nosso patrimônio histórico, ainda tem nos seus telhados, por debaixo das telhas portuguesas, a firmeza dos cedros, dos angicos e canjeranas que aqui chegavam pelas enchentes?

Enquanto as balsas atracavam, a cerca de uns 500 metros do Cortado começava um projeto que mudaria a história brasileira.

Era um empreendimento de cinco empresários, dentre eles havia o argentino Eustáquio Ormazábal e o brasileiro João Francisco Tellechea, fronteiriços que criaram a primeira destilaria de petróleo do Brasil: A Destilaria Rio-Grandense de Petróleo S/A.

A destilaria iniciou as suas atividades em 1933, com grandes expectativas de geração de empregos e desenvolvimento econômico. E foi logo em seguida à abertura que se viu, em novembro de 1934, nas margens do rio Uruguai, uma destilaria produzir os primeiros litros de gasolina feitos no Brasil.

Era um tempo em que a Petrobrás sequer existia e importávamos todo o combustível que consumíamos. Em 1935 a destilaria uruguaianense já possuía cerca de 200 funcionários e conseguia entregar mais de 400 barris de combustível por dia.

Não tardou para que a destilaria começasse a produzir outros derivados de petróleo, querosene, aguarrás, diesel e vários tipos de solventes.

Enquanto as balsas com madeiras desciam o rio, da Argentina vinham barcos tanques, chamados de “chatas’tanque”, lotados com petróleo equatoriano. O petróleo saía do Equador e vinha de trem pela Argentina, depois, em portos correntinos eram colocados nas “chatas’tanque” e levados até a destilaria de Uruguaiana.

Além de gerar empregos na cidade, a destilaria também gerava empregos no país vizinho, pois era preciso toda uma rede trabalhadores para que o petróleo chegasse até à margem brasileira do Rio Uruguai.

Tudo parecia ir muito bem, a produção crescendo e o consumo dos produtos gerando lucro, mas a destilaria acabou interrompendo seus trabalhos poucos anos depois de aberta. Isso se deu após uma decisão do governo Argentino que proibia a reexportação do petróleo e, com isso, a chegada de matérias primas até Uruguaiana. Em 1936, sem poder receber o petróleo do Equador, impossibilitada de funcionar, a destilaria parecia fadada ao fechamento. No entanto, ela recebeu um novo e importante impulso, era a parceria de investimentos de empresários uruguaios, com isso, a destilaria acabou deixando Uruguaiana.

Praticamente todos os equipamentos foram levados para a cidade de Rio Grande, a nova destilaria foi erguida num grande complexo industrial feito numa faixa de terra entre a Lagoa dos Patos e o mar, surgia assim uma das maiores empresas brasileiras: a Ipiranga S/A.  Sabe a frase “pergunta no posto Ipiranga”? Pois tudo começou na beira do rio Uruguai.

Logo em seguida, em 1938, o governo de Getúlio Vargas nacionalizou a empresa e retirou da gestão os sócios que não eram brasileiros. Seguiram na administração as famílias uruguaianenses que iniciaram o projeto. A empresa não parou de crescer. Em 1975 um incêndio pôs fim às ultimas atividades realizadas nos prédios da destilaria em Uruguaiana.

Hoje em dia os prédios e algumas estruturas da antiga destilaria  uruguaianense seguem na margem do rio, ainda se consegue ver um e outro oleoduto que ficou. Os prédios, abandonados por bastante tempo, agora são administrados pelo poder público municipal. Sempre que passo por ali, entre uma remada e outra, fico pensando no “se…”. E se a destilaria não tivesse parado suas atividades? Como seria a nossa região? Nunca saberemos. 

De volta ao rio Uruguai. Já passei pelo Cortado e sigo remando e cantando a música de Cenair Maicá: “Vou jogar minha balsa no rio, vou rever maravilhas que ninguém descobriu.” Faço o caminho dos Vapores, Salto Grande é para o outro lado, eu vou subindo na direção de Santo Tomé.

Os Vapores eram embarcações que dividiam as águas do Uruguai com as balsas dos madeireiros e as chalanas dos pescadores e contrabandistas. Elas funcionavam como trens ou ônibus, levando pessoas e mercadorias rio acima. Os barcos passavam por São Marcos, Itaqui e São Borja e ligavam estas cidades e suas populações. Em 1912 um dos Vapores mais conhecidos era o Vapor Rio Grande, ele subia o Uruguai e ia deixando um rastro de fumaça.

O Rio Grande fazia paradas em vários locais, deixando e pegando pessoas pelo caminho, algumas delas embarcavam vindo em chalanas. Como eram barcos de grande porte, os Vapores precisavam navegar pelo canal do rio, necessitavam de um local profundo, do contrário acabariam encalhando durante a subida do rio e isso também impossibilitava de chegar muito perto das margens.

E eu sigo remando rio acima. Pouco mais de 500 metros depois do “Cortado”, grandes brechas vão surgindo na encosta do rio, as árvores que já eram poucas, desapareceram.

Com a retirada constante de lenha, as balsas madeireiras acabaram com a mata ciliar. Retirou-se tanta madeira da costa, que hoje só é possível ver o campo. É que depois dos anos 50, as lavouras de arroz deram o tiro de misericórdia.

O desmatamento para abrir locais de plantio e áreas para irrigação terminou com o que restava de mata. Com a erosão das margens, o canal do rio Uruguai se encheu de areia e do lodo que veio das margens, com isso terminaram também as viagens dos Vapores.

Em tempos de seca, quando remo em meu caiaque, tão logo passo pelos pilares da ponte eu encontro diversos bancos de areia, locais em que é possível descer do barco e ficar com a água pelo joelho. Pobre rio Uruguai.

Cansado, desisto de remar até a bomba, um motor que puxa água do rio para as lavouras de arroz do lado brasileiro. Lembro de uma pesquisa feita na UNIPAMPA sobre como os alevinos, os filhotes dos peixes, são sugados e mortos por estes motores, milhões por ano. E culpamos os pescadores artesanais pela diminuição das espécies. Remo uns metros para dentro do Uruguai e deixo a correnteza me levar de volta.

Enquanto retorno, imagino-me rio acima, anos atrás. Vendo o Cenair Maicá criança, cruzando o Uruguai de chalana com o pai, o Seu Nandico Maicá, levando chibo de um lado para outro.

Posso ver o Cenair na beira do rio, aprendendo violão com algum peão paraguaio, crescendo nos acampamentos de extração de madeira em Misiones.

Quase posso ouvir, misturados no barulho do rio, a gaita abafada dos bailes do Sapucay. Dizem que sempre que Seu Nandico queria chibear mercadorias, ele pedia para seu amigo Sapucaia fazer um baile em casa.

Enquanto o baile do Sapucay acontecia noite adentro, Seu Nandico fazia o contrabando de produtos da Argentina sem ser incomodado pelas autoridades e garantia assim o sustento da família.

E o rio Uruguai vai me deixando ir lentamente. Passam por mim, mais para o meio do rio, dois grandes troncos de árvores. Eles vão boiando, parecem mais apressados que eu, vão pela correnteza do centro de algum canal e levam na carona um biguá.

Teriam àqueles troncos partido lá da região das Missões? Quem sabe, estariam neles dois as memórias de outras gentes, como Noel Guarani e Jaime Caetano Braun? Quem me dera, quem me dera eles fossem dois troncos missioneiros…

No fundo, sei que eles eram apenas duas árvores cansadas, vencidas, como tantas outras, cujas raízes costeiras se entregaram diante do nosso descaso e da erosão das nossas ganâncias.

O rio ficou em silêncio. Ali, joguei minha alma no rio, feito uma balsa e desci de volta. O Cenair já não voltou cantando.

Voltamos os três, pensativos e melancólicos. Cenair, o rio e eu.

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.

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MAR ABERTO | Foi ao cinema e salvou a história* https://redesina.com.br/mar-aberto-foi-ao-cinema-e-salvou-a-historia/ https://redesina.com.br/mar-aberto-foi-ao-cinema-e-salvou-a-historia/#respond Tue, 21 Jun 2022 14:07:11 +0000 https://redesina.com.br/?p=18713 por Boca Migotto Durante boa parte do século XX uma das principais atividades populares de lazer era ver um filme. No Brasil, os italianos sempre tiveram a tradição de investir no ramo do entretenimento e, por isso, consequentemente, também apostaram no cinema. Os irmãos Alfonso, Pasquale e Gaetano Segreto, por exemplo, oriundos de Nápoles, são …

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por Boca Migotto

Durante boa parte do século XX uma das principais atividades populares de lazer era ver um filme. No Brasil, os italianos sempre tiveram a tradição de investir no ramo do entretenimento e, por isso, consequentemente, também apostaram no cinema.

Os irmãos Alfonso, Pasquale e Gaetano Segreto, por exemplo, oriundos de Nápoles, são até hoje referencias importantes para a história do audiovisual brasileiro do início do século XX. Em Porto Alegre, assim como ocorria em São Paulo e Rio de Janeiro, os italianos foram os pioneiros no negócio de exibição cinematográfica. Cedo ou tarde, consequentemente, os italianos também se envolveram com a produção dos filmes. Não por nada, o homem por trás da principal produtora gaúcha da primeira metade do século XX, a Leopoldis-Som, era um imigrante italiano, Italo Majeroni e outro produtor de sobrenome italiano, que marcou o cinema gaúcho daquele período, foi Itacir Rossi, da Interfilms. Ambos trabalharam com Vitor Mateus Teixeira, o Teixerinha.

No entanto, essa relação dos italianos com o cinema não começou no Brasil. É quase tão antiga quanto a própria história dessa arte – e indústria – que nasceu no final do século XIX, na França. Mas foi durante e após a Segunda Guerra Mundial que a Itália deu sua maior contribuição à história do cinema. O Neorrealismo Italiano influenciou europeus e americanos e contribuiu para com o surgimento de outro movimento determinante na história do cinema mundial, então na França, a Nouvelle Vague. Os principais realizadores do Neorrealismo, como Roberto Rossellini, Victorio de Sica, Michelangelo Antonioni e Luchino Visconti, influenciaram toda uma geração de diretores italianos que vieram a seguir como Pior Paolo Pasolini, Federico Fellini e Bernardo Bertolucci os quais, muitos, inclusive foram trabalhar em Hollywood.

É de Bertolucci, provavelmente, o filme que melhor explica a Itália pós-imigrações. Novecento (1976), é um épico que aborda a história da Itália desde o início do século XX até o término da Segunda Guerra e, ao longo desse período, contextualiza o nascimento e fortalecimento das lutas trabalhistas num país ainda desfragmentado o qual, apenas há alguns poucos anos, havia promovido uma das maiores diásporas do mundo moderno, obrigando milhões de italianos a buscar esperança em outras terras, principalmente nas Américas. Essa mesma miséria generalizada, que expulsou os imigrantes e, décadas depois, contribuiu para com a ascensão do Fascismo e do próprio Benito Mussolini, foi muito bem retratada por outro filme; L’albero degli Zoccoli (1978), dirigido por Ermanno Olmi. Ao compor todo o elenco por camponeses reais da província de Bergamo, Olmi dialogou com o Neorrealismo e chamou a atenção do mundo para a diáspora italiana ao ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1978.

Já na vida real, quando nossos antepassados aqui chegaram, foram apresentados a uma região montanhosa, de mata fechada e animais selvagens, no extremo sul do Brasil. Portanto, diferentemente daqueles italianos dos centros urbanos, pioneiros do entretenimento, os colonos que subiram a Serra Gaúcha não tinham como prioridade o cinema e o lazer. Ao contrário, o único objetivo era sobreviver.

Lembro do relato, para o meu documentário Pra ficar na História (2016), da historiadora da UCS – Universidade de Caxias do Sul – Loraines Slomp Giron, uma das primeiras a pesquisar e escrever sobre os imigrantes italianos na Serra Gaúcha, quando ela comenta, em uma conversa com o personagem principal do filme, o Luiz Henrique Fitarelli, que “ninguém se interessa pela história dos pobres e os imigrantes italianos que chegaram no Brasil, eram, na sua época, apenas miseráveis desgarrados, sem pátria, sem terras e sem posses”. Essa afirmação da professora e pesquisadora de Caxias do Sul ajuda a explicar um pouco o que pretendo contextualizar a seguir.

É facilmente perceptível que a produção de obras audiovisuais com temática acerca da imigração italiana e/ou que se utilizam das paisagens da Serra Gaúcha, é intensificada por volta, apenas, dos anos 2000. Antes dos anos 1990, por exemplo, a produção pode ser considerada tão efêmera ao ponto de conseguirmos citar apenas algumas poucas obras como, por exemplo, o curta-metragem As colônias italianas do Rio Grande do Sul (1975), de Antonio Carlos Textor, além de filmagens domésticas como aquelas realizadas por Oscar Boz, nos anos 1950, as quais renderam, em 2003, devido justamente à raridade de tais imagens, um curta-metragem homônimo dirigido por Jorge Furtado. A já citada Leopoldis-Som, conhecida pela realização de inúmeros cinejornais que revelam a sociedade e as cidades gaúchas ao longo da primeira metade do século XX, produziu um documentário sobre a Festa da Uva, em 1937. Inclusive, este foi o primeiro registro sonoro realizado no Estado. Além disso, é bem possível que existam inúmeros outros registros domésticos perdidos, destruídos ou até desconhecidos.

Eu mesmo, dirigi meu primeiro curta-metragem na Serra Gaúcha, apenas em 2008. Rio das Antas – Vale da Fé, foi um episódio da série Na Trilha dos Rios, realizada para a RBS TV. A partir de então, entretanto, foram 13 obras entre curtas-metragens, séries de TV e um documentário longa-metragem, o qual nasceu como um projeto de curta-metragem para a mesma RBS TV e se ampliou a partir da parceria com a Globo Filmes e Globo News. Esse fenômeno pessoal ajuda a ilustrar um pouco a relação da Serra com a produção audiovisual. Por isso, se num primeiro momento a dificuldade é citar títulos anteriores aos anos 1990, num segundo momento, a quantidade de obras é tão vasta que um texto de 3000 palavras, como este, não é suficiente para elencar todos os inúmeros títulos realizados na região a partir da virada do século. E, para tal fenômeno, existe uma explicação.

Acontece que a relação entre a preservação do patrimônio arquitetônico, que faz parte também do que chamamos “paisagem da Serra Gaúcha”, e o resgate da história e da memória local, são elementos cruciais para a viabilidade turística que ganhou força, especialmente, a partir dos anos 1990.

Foi o turismo, por uma necessidade de negócio, que ajudou a salvar a história dos colonos italianos. História a qual, por causa da vergonha do passado miserável, era preciso apagar da memória. Portanto, tal sentimento incentivou e justificou a destruição de milhares de documentos e fotografias dos imigrantes, bem como, contribuiu para com a demolição das primeiras construções dos italianos que aqui chegaram e, até, o esquecimento forçado do próprio dialeto vêneto. No entanto, quando as pessoas ligadas à produção vitivinícola perceberam que os turistas não se deslocariam para a região apenas para comprar uma garrafa de vinho, mas o que os atraia – e atrairia cada vez mais – era ver as velhas casas de pedra e de madeira erguidas na paisagem montanhosa da Serra, o jeito do descendente italiano falar, as comunidades rurais onde o passado parecia ter estacionado no tempo, ficou claro que o diferencial da região não era apenas a qualidade do bom vinho local mas, sobretudo, justamente aquilo que os descendentes tentaram apagar e destruir com a máxima força e rapidez possível ao longo das últimas décadas. O vinho, o turista poderia comprar em qualquer supermercado do centro do país, mas a experiência de viver um pouco daquela história, somente deslocando-se para a região da Serra Gaúcha.

Se dependesse apenas do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –, que apesar do excelente trabalho, sempre esbarrou nas limitações orçamentárias, o processo de preservação não teria sido tão eficaz. Portanto, a percepção de que o sucesso econômico do turismo local estaria diretamente associado à preservação do patrimônio histórico-social contribuiu para com a desaceleração desse processo de destruição enquanto que, paralelamente, promoveu o inicio de um trabalho de resgate de todo o universo do imigrante italiano. É bem verdade, também, que o turismo patrocinou heresias em nome dessa “italianização” muitas vezes exagerada, mas foi essa conscientização, pelo bem e pelo mal, que despertou o interesse das produtoras em filmar as paisagens serranas inaugurando, assim, um circulo virtuoso que aproximou o turismo e a produção audiovisual. Esse processo, o qual se intensificou a partir dos anos 2000, teve início nos anos 1980, com o projeto de modernização e qualificação do vinho da região mas, também, com a realização do filme O Quatrilho, em 1995.

Para que o projeto vitivinícola do Vale dos Vinhedos – primeira Região de Denominação para o vinho brasileiro – surtisse efeito, além de melhorar a qualidade da bebida, era preciso também preservar a memória dos imigrantes, pois um conceito estava diretamente relacionado ao outro. No entanto, devido ao rápido processo de apagamento da memória, mais do que resgatar, era preciso salvar essa história. Um dado que ajuda a reforçar tal afirmação vem da própria UCS. Apesar da relação direta da instituição com a história da Serra Gaúcha, as primeiras pesquisas acadêmicas sobre a imigração italiana, ainda de forma incipiente, começaram apenas no final da década de 1970. Ou seja, até esse momento muita coisa já havia se perdido. O projeto ECIRS – Elementos Culturais da Imigração Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul, iniciado 1978 junto à UCS a partir de pesquisadores como Cleodes Maria Piazza, José Clemente Pozzenato e do fotógrafo Aldo Toniazzo, foi determinante para a preservação dos bens e valores culturais das comunidades rurais da região.

Os registros fotográfico, oral e videográfico do ECIRS, inclusive, fundamentaram a pesquisa da produção d’O Quatrilho, filme dirigido por Fábio Barreto a partir do livro homônimo de José Clemente Pozzenato. Essa obra se mostrou essencial no processo de reconhecimento dos valores culturais dos imigrantes italianos e, consequentemente, ponto de virada determinante naquele momento decisivo para a Serra Gaúcha. As filmagens mobilizaram várias cidades como Carlos Barbosa, Garibaldi, Bento Gonçalves, Farroupilha, Caxias do Sul, Antônio Prado as quais, de repente, passaram a receber artistas até então vistos apenas na televisão. Sem dúvida, isso despertou até o mais cético dos “gringos” para o fato de que havia alguma coisa na sua cidade – e naquela história – que merecia melhor atenção.

O Quatrilho é um dos filmes da chamada “Retomada do Cinema Brasileiro”, uma espécie de renascimento da produção nacional que ocorreu alguns anos após o Presidente Fernando Collor de Melo ter extinguido a EMBRAFILME – Empresa Brasileira de Filmes, praticamente aniquilando o setor cinematográfico brasileiro.

A título de registro, é irônico pensar que exatamente no mesmo momento quando esse texto foi escrito, o Presidente Jair Bolsonaro atacava a ANCINE – Agência Nacional do Cinema Brasileiro, entidade que veio a ser criada após a “Retomada” e, desde então, passou a regular e incentivar a produção audiovisual nacional. Segundo o site da ANCINE, O Quatrilho fez uma bilheteria de 1.117,754 espectadores, gerou muita publicidade, teve veiculação televisiva, foi distribuído para o mercado de Home Video e foi indicado ao OSCAR de Melhor Filmes Estrangeiro em 1996. Não levou o tão esperado prêmio, mas a partir dessa experiência tudo mudou. Não apenas pelo retorno de imagem do filme, mas também porque o próprio mercado de cinema e televisão sofreu uma transformação radical com a chegada das novas tecnologias digitais as quais contribuíram, decisivamente, para com o aumento da produção, bem como proliferação das janelas de recepção de uma produção cada vez mais pujante. Esse fenômeno foi mundial mas, especificamente no Brasil, coincidiu com o desenvolvimento de uma política de incentivo à produção audiovisual estável e relativamente constante mantida pela ANCINE.

No Rio Grande do Sul, particularmente, também contamos com a experiência do Núcleo de Especiais da RBS TV o qual, ao longo de 15 anos, desde 1999, ajudou a viabilizar inúmeros projetos de curtas-metragens. Muitos foram filmados na região. Para se ter uma ideia, desde o primeiro programa realizado na Serra Gaúcha, Mundo Grande do Sul – Viagem à Terra da Fartura (2001), de João Guilherme Barone, passando por Brasile – 140 anos da Imigração Italiana (2005), de André Constantin, Sapore d’Italia (2011), a primeira série de ficção da RBS TV – e do Rio Grande do Sul – a ser filmada no exterior, dirigida por mim e pelo Rafael Ferretti em mais de 20 cidades entre a Serra Gaúcha e a Região do Vêneto, na Itália, até o último programa gravado na região, em 2012, Se milagres desejais, de Andre Constantin e Nivaldo Pereira, foram, segundo Gilberto Perin e Alice Urbin – responsáveis pelo Núcleo de Especiais – 21 programas produzidos e exibidos aos gaúchos, aos sábados à tarde, após o tradicional Jornal do Almoço. Tal projeto, além de mobilizar a economia das cidades onde as histórias se passavam, também contribuía para com um sentimento regional de valorização da própria cultura.

Então, durante esse período de pujança do audiovisual brasileiro – e gaúcho – inúmeras produções procuraram as prefeituras da Serra Gaúcha como parceiras. Não por acaso, a primeira Film Commission do Rio Grande do Sul – um órgão que existe em várias cidades, estados e países do mundo para receber e facilitar as produções audiovisuais – foi criada em Bento Gonçalves pela então Secretária do Turismo, Ivane Fávero.

Tal iniciativa foi repetida também em Garibaldi e, essas duas Film Commissions foram responsáveis, desde então, por capitalizarem inúmeros projetos. Para citar apenas alguns, os longas-metragens Real Beleza (2013) e Saneamento Básico (2007), filmados em Bento Gonçalves, Santa Tereza e Monte Bello, além da série da Globo, Decamerão, a Comédia dos Sexos (2009), gravada em Garibaldi, todos os três dirigidos por Jorge Furtado. Segundo dados das próprias Film Commissions, além destas produções da Casa de Cinema de Porto Alegre, também vale destacar os longas-metragens O céu sobre mim (2012), uma produção da produtora caxiense Spaghetti Filmes, com direção do italiano Gian Vittorio Baldi; A Oeste do Fim do Mundo (2012), de Paulo Nascimento; Os Senhores da Guerra (2012), de Tabajara Ruas e O Filme da Minha Vida (2017), de Selton Mello.

A paisagem e as características culturais da Serra Gaúcha também estiveram presentes em novelas, reportagens, comerciais de TV, DVDs como, por exemplo, o programa Estrelas, da TV Globo, gravado em 2017; o documentário Nas trilhas da imigração italiana, gravado em 2017, pela RAI italiana, a novela da Globo, Tempo de Amar, também de 2017; o comercial de Natal da Coca-Cola, de 2015; a novela Além do Tempo, também da Globo, gravada em 2015 e o DVD Chitãozinho & Xororó – Ao vivo em Garibaldi, dirigido por Paulo Nascimento e Gilberto Perin, ainda em 2003, muito antes da implantação da Film Commission, o qual vendeu mais de 40 mil cópias. Ali perto, a pequena cidade de Cotiporã serviu de locação para Os famosos e os duendes da morte (2009), longa-metragem de Esmir Filho, o qual foi filmado também em outras cidades da região, além do documentário Morro do Céu (2009) e do longa-metragem de ficção Os Dragões (2018), ambos de Gustavo Spolidoro. Para fugirmos um pouco da chamada Região da Uva e do Vinho, vale lembrar que Perin e Gustavo Fogaça dirigiram o DVD, Casa da Bossa – Especial Tom Jobim, produção que levou para Canela, em 2005, uma constelação de artistas da Música Popular Brasileira. Importante destacar, também, a inédita experiência ocorrida a partir de 2006, em Flores da Cunha, através de um programa da cidade com a Comunidade Europeia o qual viabilizou, financeiramente, a realização de 10 curtas-metragens sobre a valorização da identidade cultural e turística dos territórios colonizados por italianos na América Latina. Temáticas ligadas às heranças da imigração como a safra da uva, cotidiano das colônias, religiosidade, produção do vinho, dialeto, gastronomia, papel das mulheres, foram abordadas pelas produções locais que tiveram como coordenador – e diretor de alguns curtas-metragens – o realizador Juliano Carpeggiani.

Nem todas produções gravadas na Serra abordaram, diretamente, a história dos imigrantes italianos. Mesmo assim, o simples fato de as obras registrarem a paisagem – natureza, construções, pessoas e seus sotaques – já é, em si, um ato de preservação da memória.

Assim, todas essas produções, e tantas outras impossíveis de listar nesse texto, contribuíram para com a divulgação da Serra Gaúcha. Não por acaso, as duas Film Commissions criadas na região nasceram de dentro das Secretarias de Turismo mas poderiam, também – e em muitos lugares do mundo é o que ocorre – terem sido alocadas junto às Secretarias de Indústria e Comércio pois, como já citado anteriormente, a economia dos municípios onde ocorre uma filmagem ganha muito com a chamada Indústria Criativa. Uma produção artística sempre demanda fornecedores como hotéis, para receber as equipes; restaurantes e/ou supermercados, para suprir a alimentação; postos de gasolina, para abastecer caminhões, carros e vans envolvidos nas filmagens, além de material de ferragem e marcenaria para cenários e costureiras para os figurinos. Tudo isso significa receita que permanece nas comunidades e incrementa a economia local. Tudo isso gera empregos, paga impostos e é necessário para que aquela obra artística, vista no cinema e na televisão, possa sair do roteiro e acontecer, através do trabalho exaustivo de milhares de profissionais de inúmeras áreas.

Mas, mais do que a chamada economia direta, essas produções também influenciam corações e mentes, ao mesmo tempo que divertem, educam, provocam reflexão, informam, valorizam e divulgam as regiões e culturas, além de contribuir para com a preservação da memória dos povos. E aqui percebemos o quanto isso é importante para a própria economia. Os Estados Unidos, sempre uma referência para nós, brasileiros, aprenderam desde cedo a importância do cinema e influenciaram o mundo, ao longo de todo o século passado, através das produções de Hollywood. A França, por outro viés, tem no cinema uma das suas principais ferramentas de integração cultural. Enquanto isso, Espanha, Canadá, Reino Unido, Japão, Argentina, para citarmos apenas alguns países, vêm aumentando consideravelmente os incentivos para o desenvolvimento de suas indústrias do entretenimento e da cultura. Portanto, os países que investirem no audiovisual e suas inúmeras ramificações, certamente terão mais chances de não apenas sobreviverem ao futuro mas, principalmente, de se afirmarem culturalmente perante as demandas apontadas para as próximas décadas. Resta ao Brasil perceber aquilo que a Serra Gaúcha já descobriu. No final, parece que os italianos que vieram para o Estado com uma mão na frente e outra atrás também carregavam, no seu sangue, o DNA do entretenimento como negócio.

* Artigo publicado no livro 150 anos da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul (2019), organizado por Ademir Antonio Bacca e Luis H. Rocha, sob o título Foi ao cinema e salvou a história (2019). Este artigo complementa o texto anterior, também publicado nesta mesma coluna, sob o título, Coleciono coisas que os outros jogam fora.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.

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JANGO: HISTÓRIAS E MEMÓRIAS por Daniela Nascimento https://redesina.com.br/jango-historias-e-memorias-por-daniela-nascimento/ https://redesina.com.br/jango-historias-e-memorias-por-daniela-nascimento/#respond Fri, 14 Jan 2022 02:00:40 +0000 https://redesina.com.br/?p=17294 No documentário “Jango”, a carreira de João Goulart, único presidente morto no exílio, é acompanhada desde sua eleição a deputado estadual, em 1947, até seu sepultamento em 1976, na sua cidade natal de São Borja. João Goulart ficou conhecido na história como o presidente estadista do Brasil que foi derrubado pelo Golpe Militar de 1964. …

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No documentário “Jango”, a carreira de João Goulart, único presidente morto no exílio, é acompanhada desde sua eleição a deputado estadual, em 1947, até seu sepultamento em 1976, na sua cidade natal de São Borja.

João Goulart ficou conhecido na história como o presidente estadista do Brasil que foi derrubado pelo Golpe Militar de 1964. Chamado de populista tanto de forma elogiosa por seus seguidores quanto crítica por quem não gostava de sua figura, o político morreu no exílio em 1976, antes que o país retomasse a democracia na primeira metade dos anos 1980. E seu semblante permaneceu como uma incógnita para muitos até este documentário de 1984 dirigido por Silvio Tendler que resgata não apenas a importância histórica de Jango como também o registro de um momento crucial na política brasileira e que tem reflexos até hoje.

Pois este longa surgiu numa hora mais do que apropriada para o Brasil: o calor dos movimentos pelas eleições diretas naquele ano. Não à toa atingiu um marco histórico para um documentário: foi visto por mais de um milhão de pessoas, recorde para o gênero, tão relegado a segundo plano por aqui para a maior parte do público. Também pudera. Não apenas o contexto político precisava de um filme assim como suas qualidades se sobressaem, especialmente pelo rico material de arquivos e as entrevistas de quem sentiu na pele os chamados “anos de chumbo”.

Entre tantos depoimentos que beiram ao emocionante como o da filha de João Goulart, Denize Goulart, ou ainda aqueles com discurso inflamado como os de Leonel Brizola ou Gregório Bezerra, o líder comunista, é com os jornalistas que sentimos a necessidade de informação ser aclamada. Vide as revelações de Marcos Sá Corrêa sobre a operação “Brother Sam”, que oficializava o envolvimento dos Estados Unidos no Golpe de 1964. Mas não apenas isto. Aqui tem-se um panorama geral das articulações políticas que levaram à ascensão e queda do ex-presidente, fatos que ganham ainda mais destaque com a narração do saudoso José Wilker conduzida ao fundo pela bela trilha sonora de Wagner Tiso e Milton Nascimento.

Em uma época que tanto se discute militares no poder e tantas outras questões nebulosas sobre a política nacional, Jango se torna um documentário indispensável para quem busca entender os trâmites do jogo de poder imposto por aqueles que deveriam se preocupar com a nação e não com suas picuinhas pessoais. Depois de assistir, fica impossível não imaginar o Brasil como um grande espelho de House of Cards ou, ainda mais, de um pernicioso jogo de tronos.

 

 

Daniela Grieco Nascimento e Silva

Doutora em Educação (Linha de Pesquisa: Educação e Artes – PPGE/UFSM). Licenciada em Pedagogia – Mestre em Educação. Diretora da ONG Royale Escola de Dança e Integração Social. Integrante do GEEDAC (Grupo de Estudos em Educação, Dança e Cultura).

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19 POEMAS POLÍTICOS DE TAU GOLIN https://redesina.com.br/19-poemas-politicos-de-tau-golin/ https://redesina.com.br/19-poemas-politicos-de-tau-golin/#respond Wed, 29 Dec 2021 23:11:48 +0000 https://redesina.com.br/?p=17120 Tau Golin estreia na Rede Sina com uma série de poemas políticos que refletem também os últimos anos pandêmicos. Para ele os poemas selecionados são “textos rebeldes cotidiano.  Marcam episódios. Compõem uma espécie de heterônimo rebelde, indignado. Preocupação com o que os bardos e poetas do “baixo clero” fizeram na revolução francesa”. Confira: O PAÍS …

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Tau Golin estreia na Rede Sina com uma série de poemas políticos que refletem também os últimos anos pandêmicos.

Para ele os poemas selecionados são “textos rebeldes cotidiano.  Marcam episódios. Compõem uma espécie de heterônimo rebelde, indignado. Preocupação com o que os bardos e poetas do “baixo clero” fizeram na revolução francesa”. Confira:

O PAÍS DAS COVAS

Teu nome João será apenas João.
Sem sobrenome ou mesmo profissão.
Teu nome José será somente José.
Demais Zés e Joãos, com outros virão;
E Marias, Leocádias, algumas Zayras.
Adultos com rosários de crianças,
Tantos velhos pais, avós, bisavós;
Tataravós nem tantos, brasileiros
Não são assim longevos, morrem
De fome, doenças, sem esperança
E tem mais as terríveis epidemias.

Fizeram do Brasil o país das covas
Rasas como a estupidez governante.
Sem lápides para preservar os nomes
Das vítimas da desgraceira genocida.

Fermenta o enxofre da terra mãe gentil.
No futuro, essa tragédia não terá cheiro,
As gerações se perderão de seus mortos.
A memória será fumaça sem desespero.

No Brasil das covas entulhadas
Do povo condenado à bestialidade,
Os anjos perderam-se dos devotos,
Os orixás embriagaram-se na dor
Das oferendas nulas de proteção;
Os espíritos vagam, almas penadas,
E baixam somente nos cemitérios.
A fé enterrou-se no país das covas.

O futuro depende do grito indignado!

TREZENTOS MIL

300 mil brasileiros mortos
Nem a arca de Noé consegue levar,
Não cabem nos camburões,
Entulham nossos mares.
Faltam covas e ermidas,
Sobram marés de lágrimas,
Na alma devastada da nação.

300 mil já rondam nossas consciências,
A terra mãe gentil virou cemitério,
O bafejo ceifador ronda seu espectro,
O gadanho liberou a sua lâmina:
Morte, morte, morte, aterrorizante
Palavra putrefata, revela nosso país.

Há um demente em apocalipse
Habitando a caixa de pandora,
Alimentando suas vinganças,
No cenário fúnebre nacional.
Existem tropas de prontidão,
Guardas nas esquinas e ruelas
Liberando o trânsito macabro.

300 mil enfezam a mente doentia.
Sua meta vai progredindo aos milhares.
Já não há mais espaço nos jazigos,
Covas rasas, covas abertas, covas,
O Brasil em pandemônio, na ira
Do celerado com poder nacional.

Há um cheiro fétido no seu bafo.
Peidos de morte, pântanos nos pés;
Tempestades no horizonte sem utopia;
Trovoadas nas sirenes das ambulâncias;
Cilindros vazios de oxigênio e esperança;
Intubados nas UTIS, como se os brasileiros
Estivessem empalados por um genocida.

Deslumbra-se a besta com a claque do ódio.
Terraplanistas somente chegam ao círculo
Em piruetas de júbilo ensandecido de dor
Alheia, do inimigo eleito, e odes ao torpor.

Morte! Morte! Morte!
300 mil brasileiros puxam o féretro
De outros milhares a serem abatidos.
Mortos de plumas, mortos sem direitos,
Mortos sem cidadania, mortos sem lápides,
Mortos sem memória, pela banalização da vida.

Mortos que não pesam na consciência da nação.

COMO NOVE BOMBAS ATÔMICAS

Nagasaki chora e se enluta pelo Brasil,
A bomba atômica lançada sobre a cidade,
Matou, meu povo, quarenta mil japoneses.
O coronavírus espalhado nos brasileiros
Equivalem a nove bombas nucleares,
Na segunda semana de abril de 2021,
E outras terríveis estão sendo preparadas.

353.000 mortes, e faltam mais atualizações,
Porque, no Brasil bolsonarista, a burocracia
É incompetente até para contar seus mortos.

Nossas detonações nucleares não são de urânio e plutônio.
A grande destruição do nosso intenso calor tropical,
Nosso deslocamento de ar e contágios virais de morte,
São espalhadas pela radioatividade do negacionismo.

O governo do Brasil, fenômeno muito nacional,
Mata dolorosamente mais que bombas atômicas,
Porque no lugar da ciência solidária para a vida,
Montou a engrenagem da engenharia da morte,
Epidemia da dor, sequelas de efeitos devastadores,
No cotidiano, no futuro, na fome da besta irracional.

Ouviram do nosso hino as margens de carcaças,
Não existem estadistas dando brados de liberdade,
Milhares de Carontes se multiplicam nas barcas
Para transportar, atravessar as águas sujas do poder
E desembarcar os mortos nas costas dos cemitérios.
As moedas nem sempre contam nessa tragédia,
Pois faltam timoneiros, muitos barcos afundaram,
E mesmo os ratos tentam se salvar nesta travessia.

353.000 brasileiros, continuamos diariamente a contar…
Já faltam águas, rios, para o barco de Caronte navegar.
O vento uiva desespero, as lágrimas córregos dos olhos,
Os caixões, barcos naufragados na terra e nela enterrados.

Trezentos e cinquenta e três mil mortos contabilizados,
Mas as cifras já estão carentes de realidade, de toda dor
Dos milhões de enlutados, do pavor dos contaminados
Para sobreviver até o minuto seguinte, não ser intubado,
Submergir no tempo da esperança, quem sabe retornar
Para alegria dos familiares como mais um ressuscitado.

Como nove bombas atômicas a pandemia já matou
De brasileiros, e outros milhares estão enfileirados
Para o abate, como gado; e não como povo varonil
Porque o poder da morte está no governo do Brasil.

PANDEMICÍDIO: 400 MIL CPFs CANCELADOS

400
Mil
Mortos.
E o pandemicida continua no poder.

Como se 10 bombas atômicas
Explodissem nos brasileiros…
E o monstro mostra CPFs
Sem titulares, escafedidos
No seu hálito fúnebre.
400 mil mortos.

“CPF cancelado”,
Acena o celerado a sua bandeira,
Com a grafia assassina de miliciano
E o riso esquizofrênico dos bandidos.

Os olhos já não suportam tantas lágrimas.
Familiares vagam nas lembranças dos parentes,
Perguntas não calam em busca dos culpados,
Mas o espectro da maldade continua seu féretro.

Brasil, Brasil, teu orgulho era o céu anil.
Foste terra adorada, entre outras mil.
Já não és mais pátria amada,
Dos teus filhos, mãe gentil.
Porque tu, nação desgraçada,
Por um governo de milicada,
Abates teu povo às gargalhadas
E, em abril, passas os 400 mil.

A MARCHA FÚNEBRE DO CAPITÃO

Mais de 500 mil mortos
Na marcha fúnebre do capitão.
Logo serão 600 mil vítimas
No morticínio bolsonaristas.
Silêncio indignado e profundo
O vírus rindo do negacionismo,
Famílias pagando o milicianismo!

A bomba atômica matou 40 mil,
A cada lançamento ianque.
Quinzenalmente, o genocídio
De um torpedo nuclear
Devasta vidas no Brasil.

Fogo “amigo”, no necrotério
Etiquetas de votos dos mortos
Atadas nos dedões das vítimas,
Do algoz, 17 macabro, cadáveres
Caídos das falanges neofascistas,
Embandeiradas de verde e amarelo,
Famílias destroçadas pela dor.
Vítimas úteis, vítimas inocentes,
Vítimas na baba da fala, vítimas
Que não cabem no cercadinho,
No brete miliciano do orador.

Brasil, país funeral.
Brasil, nação luto.
Brasil, desalmado.
Brasil, trágico.
Brasil, do samba sequestrado…
País das flautas e tacapes desterrados…
País do povo embuçalado como gado.

Vírus, contágio, velório e enterro
Vão na marcha de morte do capitão.
Sincopados de soluços, choros, gritos,
Gargantas convulsionadas, perdas,
Silêncio e transtornos nos cemitérios,
Na época do governo das covas,
Das florestas convertidas em caixões.

Dos mortos ouve-se uma marcha militar.
Não há cerimônia, despedida de Chopin,
Dignidade da música de Ernesto Nazareth.
Tudo é chulo como a morte sem sentido,
Vírus não atacado antes da multiplicação,
A vida vulgarizada, a violência propagada,
Na trilha da marcha fúnebre do capitão.

A PÁTRIA DILACERADA

600.000 mortes não fazem um bom presidente.
600.000 mortes revelam um governo genocida.
600.000 mortes custa a tropa de caça-fantasmas.
600.000 mortes são virulências de nossas feridas.

600.000 mortes reproduzem a fome na barriga.
600.000 mortes expurgam alunos das escolas.
600.000 mortes extirpam verbas da pesquisa.
600.000 mortes embalam a fome e a carestia.

600.000 mortes investidas dão aos brasileiros
A angústia vivida, o desespero do dia a dia.
600.000 mortes traz a epidemia da atrofia,
O vírus tira do povo o tempo para derrubar
O governo que tem na morte a sua serventia.

600.000 mortes alertam a nação em perigo;
Afogam-nos mais nas lágrimas dos perdidos;
Fazem da pátria uma caricatura militaresca;
Do ódio, o mestre-sala de todas as relações;
Da torpes insana, a indelicadeza burlesca
E a exibição da força nas paradas eunucas.

600.000 mortes ferem o futuro brasileiro,
Não existe destino comum na esperança.
Só persiste milícia reunida para o assalto,
Hidratada nas lágrimas vertidas pelo luto.

600.000 mortes devem alimentar revolta
Ainda estonteada nas dores provocadas.
Virá a hora que o povo não pode esperar.
Virá brado de futuro de tudo no seu lugar.
600.000 mortes pagas para o Brasil mudar
E acabar esse tempo da pátria dilacerada.

CORPUS CHRISTI BRASILEIRO

Corpus Christi,
Corpo de Cristo,
Corpo de Deus,
Corpus Domini,
Sangue de Cristo,
Corpo da nação,
Sangue do povo.
Cruzes nas almas,
No brejal da pátria,
Nas periferias cortiças,
Nas vergas das roças,
Nas montanhas ásperas,
Nas terras baixas, banhadal,
Nos vales dos minérios,
Na revolta dos impropérios,
Nas vilas, atrás das bodegas,
Nas margens dos rios.
Cruzes, cruzes, cruzes,
Senhoras e senhores,
Jovens e meninada,
Idosos da memória,
Crianças sem futuro,
Militantes da cidadania,
Militares fardas honradas
– Raros, raros, raros,
Gritam as araras;
Ave!, papagaios!
Milicianos tiroteiam
No seio esperançoso
Da nossa pátria amada.
Corpos de josés, antônios,
Anas, teresas e marias,
Brasileiros, brasileiras, eira,
Todos com a sua cruz,
Sem canto gregoriano,
Sem ritual de pajés, maracás,
Sem tambores de terreiros.
Féretros em sertanejo
Vulgar, dor de corno,
De cotovelo, traições,
Na dor da morte real,
Na dor humana da falta,
Na dor da ausência
Presente na saudade.
Corpos de nossos pedaços,
Medidos a cruzes e credos,
Enquanto os assassinos
Veneram seu ódio
Nos cadáveres
Sob as cicatrizes
Das cruzes, no silêncio
Absurdo das covas,
Onde não existe paz.
Corpos meus, corpos seus,
Corpos, corpos, corpos nossos.
O sepulcro dos cemitérios
Pede, em sinfonia, justiça!

SENHORA, BANDEIRA…

Manto verde-amarelo
Enrolado no corpo
Resoluta brasileira
De cabelos brancos
Protesta na avenida.
Cartaz, mão aguerrida
Expressa a indignação:
“Essa bandeira é nossa!
Fora miliciano!” Bolsonaro.

Senhora, alma da pátria,
O Brasil segue teu gesto!
Quanta maldade acenada
Nas cores dessa bandeira!

Um verme entrou, ignaro
No corpo utópico da pátria,
Infestou seu coração gentil,
Destruiu a sua alma cidadã,
Empestou os seus símbolos,
Fez de seu céu azul mortalha
Destilou corrosivo fel de ódio
No aceno das mãos de futuro.

Bandeira agora emporcalhada,
Nela chafurda o neofascismo.
Bandeira ignorada dos brasis,
A rebeldia das ruas te purifica
No corpo eterno da sabedoria
Da senhora e dos brasileiros,
No cartaz pelo nosso progresso,
No brado de “Fora Bolsonaro!”

BANDEIRA AGORA DESFRALDADA

Pense na bandeira desenhada
do partido Aliança para o Brasil,
formada pelo mosaico de projéteis.
Balas encartuchadas, balas desnudas,
balas miradas em ti e na pátria amada.

Pense na motivação ideológica,
Da bala acionada e da projetada
Pela ideologia da execução adversária.
Democracia requer palavras argumentadas.

Pense no arsenal de cada bala:
A bala do ódio, bala autoritária,
A bala que mata e também aleija,
A bala que bufa e igualmente cala,
A bala assassina e camuflada,
A bala autorizada da mortalha,
A bala covarde de toda madrugada,
A bala que amanhece ensanguentada.
A bala política, com slogan e marca.
A bala nas costas da menina negra,
Na mochila e nos cadernos da escola.

Pense na bala contra a tribuna,
O altar e a hóstia consagrada,
A mirada vesga e embandeirada,
A bala marchadeira e a mancada,
Do cérebro turvo de escarradeira
Que cospe no prato da esplanada.

Olhe a bandeira do partido da bala detonada,
Tema todo dia o arsenal da bala guardada,
Reservada para o operário, o professor,
O estudante, o cantor, a garotada,
O bailarino, o escritor, o agricultor,
O pobre da periferia e o pescador,
O negro, o nordestino e a indiada.

Pense na aliança do brasil macabro,
Da aguilhada, do relho, da soga atada,
Do trator que corta, do laço que enforca,
Do banqueiro da extorsão legalizada,
Do grileiro desmatador e da queimada,
Do empreiteiro poluidor do solo varonil,
Dos que emporcalham o pendão da esperança,
Das águas sem colosso; do céu de fuligem anil.

Pense na bala paisana e na bala fardada,
Na bala miliciana, assassina e oficializada.
Pense na bala aliancista para ser detonada,
Imagine o futuro do Brasil na bala disparada.

Pense na bandeira do Brasil agora desfraldada…

MARCHA CARNAVALESCA DA GUERRA DO MILICIANO E DO IANQUE

Essa guerra o povo quer ver.
Na briga miliciana com ianque
Muita gente vai se esconder
De vergonha e de vexame.
Primeiro vai ter lançamento de cuspe.
Mas quando faltar munição de saliva
O miliciano vai trocar de munição,
Pólvora molhada não dá tiro e aviva.
O ianque tem bazuca e porta-avião,
Drone teleguiado e ogiva atômica,
Rifle azeitado, pontaria de fuzileiro
E um bobalhão de alvo à disposição.

“Quando termina a saliva tem a pólvora!”
Garganteia o miliciano de boca seca.
O ianque mira de luneta, tapa orelha,
Sem ouvir a bravata e logo sapeca.

Miliciano nunca combateu na guerra,
Só bateu no trabalhador desesperado,
No estudante poético e sonhador
E no povo sofredor e desarmado.

Foi apenas um tiro de advertência.
Miliciano ficou ferido e todo cagado,
Ianque recarregou, ficou preparado,
Miliciano acenou, agora com o rabo.

Essa guerra não é para ter ganhador.
É pro miliciano ficar mais obediente
E dar o que ainda não tinha entregado,
O resto do petróleo e mais o mercado.

No planalto do miliciano viu-se o escarcéu,
General de banda sem saliva e pólvora,
De uniforme oliva e cheiro de naftalina,
Seguindo um celerado capitão da fanfarra.

Peidou-se o bloco de verde e amarelo,
Todos de boca seca, sem saliva gritante,
Já está morta a tropa e sacramentada
Se seguir nessa guerra tal comandante.
Seu arsenal são dois dedinhos em riste,
Miras de pantomina, guerrinha farsante.

UNIU-SE, A CANALHA

Vejo-te canalha deslumbrada,
Herdeira do colonizador.
Vejo-te com a sina etnocida
Do imigrante abusador.
Vejo-te canalha aduladora,
De mãos amealhadoras
No labirinto do poder.
Vejo a tua gosma adesista,
Sinto tuas garras usurpadoras,
Farejo o teu cheiro golpista,
A tua falsidade e o teu fedor.

Canalhas, uni-vos,
Este é o vosso lema.

Uniram-se na escravidão do indígena e do negro.
Uniram-se nas razias exterminadoras dos povos nativos.
Uniram-se para transformar o suor da labuta em vosso lucro;
Uniram-se para bebê-lo com a sede dos vampiros do povo.
Uniram-se no comércio das coisas vivas e mortas, supliciadas,
Do Pai, do Filho, e dos espíritos sem qualquer santidade.
Uniram-se no pastoreio das gentes como na dos gados.

Uniram-se para fermentar vossos ódios de terrores.
Escuto vossos berrantes mugindo homofobia e dor.
A baba de vossos clarins trazendo tempestades,
Os arados de vossos tratadores enterrando povos
Cuidadores da terra, respiradores das florestas,
Acalentadores de climas fraternos e harmoniosos.
Sinto o mercúrio de vosso asco contaminando rios,
O lodo de vossa moral misturado subtrai os minérios,
Mas em vos, ouro ou prata, pedras preciosas, nada reluz.

Tóxicos sois vós e vossos carros de luxo, bandalhos
Dos espaços que frequentas com vossas futilidades,
Punguistas da fraternidade, dos afetos, da sociabilidade,
Vírus amaldiçoadores da paz, pestilentos das muitas cepas
De interesses, com vossos apetites insaciáveis de monstros,
Nos berçários dos recém-nascidos que não vingam,
Nos corpos frágeis das crianças que não encorpam,
Subnutridas, subtraídas de seus futuros descentes.

De que matérias tão asquerosas vos fizeram, canalhas?
Quais bactérias alimentam vossos cérebros torpes,
Massas cinzentas, sem brilhos, opacas e negacionistas?
O que existe em vossos glóbulos que desejam os outros
Como propriedades de vossos usos até esfrangalhá-los
Na engrenagem da exploração e nas metas dos lucros?
Qual solado contaminou vossos pés que destrói tudo
O que é dignamente humano quando pisa, não resiste
Vosso peso amaldiçoado de usurpação sobre o alheio?
E ainda, como celerada demente, a canalha gargalha,
Fardada e paisana, na cara inerte da nação estupefata.
Vossos cães afiam as presas no canil do Estado policial.

Vejo-te, canalha,
Genocida de povos, de gentes, de sonhos e de esperança,
Em conluio, para fazer do país vossa imagem e semelhança!
 

A ESTÁTUA DE BOLSONARO

Passo Fundo foi escolhida a cloaca do ódio.
Pelo Brasil juntam os materiais apropriados,
O mutirão da vergonha reúne terras griladas,
Cinzas das florestas queimadas, ossadas várias,
Madeiras das matas usurpadas, lâminas de serras,
E bostas, às toneladas, dos gados para cimentá-la.
Ao monstrengo que vai se levantando, impávido
E sem colosso no Planalto Médio dos Kaingang.
A terra dos povos violados pelos bandeirantes,
Novamente maculada pelo etnocídio da paisagem.

Das minas vem o ferro e o suor dos mineiros
Explorados na cadeia internacional do lucro.
Com pazadas de morte juntam os sedimentos
de barro das barragens de contenção, rompidas
pelo desleixo, enterrando povoados e sonhos.

Armas e relhos se mobilizam nas mãos milicianas,
Festejos de motos, carrões e alguns calhambeques
Preparam-se para o féretro da cidadania violada.
Marcas de cascos de cavalos marcarão a vereda,
Evocando morte, adornada pela jumenta merda.

A bandeira nacional flamulada, de fato profanada,
Conduzirá toda a legislação do trabalho rasgada.
Junto ao recavem da asquerosa figura de borralho,
Reserva-se lugar destacado à carteira do trabalho.

A inauguração da estátua patrimonializa o asco,
Reverencia a desumanidade, recupera a pecha:
“Passo Fundo, a Chicago do Planalto Médio!”
Dístico duramente superado pela sabedoria
Daqueles que levantaram bandeiras culturais,
Fizeram currículos de saberes, educação da lei,
Dignificaram escolas e buscaram a civilização.

Atenção, atenção, atenção…

O monstrengo, terrorista e sabotador da cidade,
Manterá o seu sopro pestilento sobre os cidadãos.
Sua presença contaminará a atmosfera para a paz.
No lugar da constituição carrega manual de algoz,
Emblemas ao ódio, à intolerância, à homofobia,
Sua arenga de barbárie estará sempre entre nós.

As milongas perderão o encanto dos fogos de chão.
Os chamamés tropeçarão no próprio compasso.
Os atabaques silenciarão seus toques fraternos.
Somente um uivo de morte nos nossos passos,
Alimentados na estátua, fonte de ódio profundo.

O PRESIDENTE BUGREIRO

Nas bandas de Chapecó
Aldeia do cacique Kondá,
O presidente dos bugreiros,
Fez a carreata do genocídio.
O gado mugiu em seu delírio,
Mas o povo fez o vaticínio:

Fora Bolsonaro, genocida,
Assassino, vai tomá angu!

SOLILÓQUIO DA MALDIÇÃO I

Eis milhares de corpos brasileiros,
Mortos pelo teu negacionismo vil.
Eu venho em romaria para mostrar
Os bisavós, avós, pais, filhos e netos,
Levados desgraçadamente pela insanidade
De teu governo cruel, algoz, corrupto,
Portador de múltiplas perversidades.
Apresento-te teus mortos, raivoso
Entre as matilhas uivantes do ódio.
Se fosses um povo de cremação
Nossas florestas cairiam ainda mais,
Para celebrar nossos mortos, cão.
Lembro-te a viúva do um homem
gentil, como muitos de teu féretro,
Que tu mataste no teu abatedouro.
Digo a ti o solilóquio da maldição
Que dona Ana de Lancastre lançou
Sobre Ricardo III, o rei assassino,
Atulhador dos dignos em mortalhas,
Hoje, figuras rígidas e frias, funéreas.
Como prossegue a tua insanidade,
Seres apodrecidos, esqueletos descarnados
Que te alimentam, tu, o maior dos Vermes.

“Oh, maldita seja” a tua mão tosca
“Que causou estas feridas, maldito
o coração que teve força de o fazer,
perverso, o sangue que derramou este sangue.
Sobre o hediondo miserável que miseráveis
nos tornou com” nossos mortos; “mais horrores
se abatam do que aqueles que posso desejar
a serpentes, aranhas, sapos, a qualquer réptil
venenoso que vivente seja. Se ele alguma vez
tiver um filho, que seja aborto, temporão,
monstruoso, de aspecto tão horrendo e desigual
que temor terá, em o vendo, a esperançosa mãe,
e que seja o herdeiro da sua má fortuna.
Se ele algum dia tiver mulher, que ela
por sua morte se sinta mais mísera e mesquinha
do que eu me sinto agora pela do meu marido. Sois mortais,
e os olhos dos mortais não podem sofrer o maligno.
Vai-te de ante mim, temeroso ministro dos infernos!
Demônio imundo, vai-te por amor de Deus,
e não nos atormentes; que da terra feliz fizeste
o teu inferno, encheste-a com gritos de maldição
e com profundos clamores. Se te deleitas
em contemplar teus feitos odiosos, põe
os olhos neste exemplo de tua carnificina.
Oh, senhores! Olhai, olhai as feridas”; mortos,
“sem vida abrindo bocas congeladas e de novo sangrando.
Vergonha para ti, vergonha, ó tu, massa informe de sórdida deformidade,
pois que é tua presença que aqui faz verter o sangue das veias geladas e vazias
onde o sangue já não tem morada! O teu feito inumano e contrário
à natureza provoca este dilúvio contrário a toda a natureza.
Oh, Deus! Tu que criaste este sangue, vinga a sua morte.
Oh, terra! Tu que bebes este sangue, vinga a sua morte.
Ou que os relâmpagos dos céus se abatam sobre o assassino,
ou que a terra se abra e de súbito o devore, tal como tu,
ó terra, sorves todo o sangue deste bondoso” povo,
“que teu braço comandado pelo inferno tão cruelmente matou.
Pérfido, tu não conheces nem a lei de Deus nem a lei dos homens.
Não há besta alguma, por mais feroz, que não conheça a piedade.
Permite, ó varonil pestilenta infecção, que apenas me seja possível
destes males conhecidos acusar tua maldita pessoa passo a passo.
Ó mais torpe do que o coração consegue imaginar, não podes
Manifestar outra escusa a não ser o teu próprio enforcamento.
E por esse desespero serás tu escusado por, finalmente digno,
teres vingado em ti a carnificina indigna que cometeste noutros.”

Assim como Ricardo disse a Ana “Não matei o teu marido”
Afirmas não ter submetido o povo a imunização de rebanho.
“Maior mentira nunca o mundo ouviu.” Cientistas, jornalistas,
Viram “a tua lâmina assassina fumegante de sangue.”
Reclamas de injúrias, que lançaram culpas sobre teus ombros.
Mentes. “Foste provocado pelo teu espírito perverso
que nunca sonha com mais nada senão carnificinas.
Pois me conceda Deus também uma maldição sobre ti
por esse feito perverso”, por matares povo “amável.”
E se Céu ainda existir, nele “tu nunca entrarás.
O teu lugar não é senão o inferno.
Que se abata a inquietude sobre a alcova onde te deitas.”
Se perto de ti pudesse chegar, “digo-te, homicida,
estas unhas arrancariam a ‘formosura’ de teu rosto.
Que a noite negra escureça teu dia, e a morte tua vida.”
Reclamas que o povo te cospe, urina por onde tu passas.
“Oxalá, para teu bem, fosse veneno mortal. Sapo imundo”.

Lamentas pelos olhos de desprezo que te fulminam.
“Oxalá fossem basiliscos para te matarem.”
Te fazes de vítima. “Ergue-te, homem enganador.
Embora eu deseje a tua morte”, o povo será “teu carrasco.”
Que esteja contigo toda a tua laia, teus filhos e puxa-sacos,
Teus milicos, teus milicianos, teus sabotadores da ecologia,
Teus terroristas da democracia e dos direitos humanos.
Que tua vida seja o pesadelo que merecem os genocidas.
Que jamais durmas tranquilamente, que a paz lhe seja estranha.
Que viva com o medo de que possa acontecer aos teus o que fizeste aos outros.
Que recebas tudo em dobro. Mesmo que morras aos pouquinhos, jamais
Terás o tempo suficiente para lembrar todo o dano que fez aos brasileiros.

[“Entre aspas” = Falas de dona Ana, personagem da peça teatral Ricardo III, de William Shakespeare. 1592-1593.]

SOLILÓQUIO DA MALDIÇÃO II

(Por mais terrível que pareça uma maldição
Ainda é branda quando pregada ao nazistão.)

Fizestes incontáveis promessas, falsário.
Juraste amor à pátria e jamais cumpriste.
Prometeste honrar a bandeira, a transformaste
No enxergão dos bajuladores aos estrangeiros,
Desordeiro, sabotador do nosso progresso.
Desonraste a farda que um dia vestiu,
Conforme preceitos da Constituição.
Em vez de contribuir com a segurança,
Planejou ataques terroristas contra o povo.
Quis ser Brilhante, Mussolini, és um bufão.

Queres manipular as datas cívicas,
Bestializar o Dia da Independência,
Tingir de sangue as cores nacionais,
O vermelho que tanto temes, raivoso,
Não poupas dos brasileiros, verdugo,
Parido por forças medievais, macabras,
Como teus gestos de ameaça de morte,
Beligerantes, animadoras e perversas,
Inspiradas em inquisidores, carrascos,
Teus ídolos, Mussolinis, Francos, Hitleres,
Sanguinários de fardas e de continentes,
Jalecos da morte, camuflagens paisanas.

Ouve o solilóquio da maldição,
Jumento da mula sem cabeça.
Se tivesses alma seria penada.

És como Íxion, o mau grego das chamas,
Que construiu uma câmara incendiária
Para incinerar seus críticos, intolerante!
Que fazes com os territórios do Brasil?
Incendeia florestas, savanas, montanhas.
Terras indígenas, povos em chamas.
Bois no lugar dos nativos originários,
Madeira tombada, biodiversidade caída,
Mercúrio contaminando o nosso paraíso.

Se deuses de fato não existirem, os criaremos como magos,
Pois a justiça dos homens é pouca para punir teus crimes.
Serás submetido às leis antigas e modernas, das lendas,
Dos mitos, das religiões e dos ateus, para não escapares,
Já que a tua ficha corrida de lesa humanidade é infindável.

Convocaremos deuses e profetas, duendes, entidades.
Então conhecerás a verdadeira força punitiva dos mitos
E tuas palavras e atos serão apenas mugidos para gados.

Como o castigo purificador de Zeus a Íxion,
Também desejamos a ti, canalha miliciano, corrupto,
Que sejas presos por serpentes numa roda em chamas,
E gire eternamente no calor do inferno da tua memória.

O rei Tântalo também quis ser mito.
Simulou ser um deus entre os deuses,
A quem banqueteou com o filho Pélops.
Tu igualmente cometes filicídio, assassino,
Levas para os cemitérios milhares de filhos
Dos pais que enlutastes com atos pandêmicos.

Sísifo, rei de Corinto, achava-se muito astuto.
Chegou a enganar a morte numa certa ocasião.
Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Teu infortúnio também será eterno no submundo.
A pedra da tua condenação nunca chegará ao topo
E rolará novamente a montanha para que a empurre
Continuamente na penitência da tua punição exemplar.

Tu já tens a fome de Erisictão, o cético rei de Tessália.
Ele também derrubou florestas com árvores belas e antigas,
Que jorravam sangue no corte do seu machado criminoso.
Desconheceu que nelas estavam os espíritos das Dríades,
As energias místicas, os mistérios guardados no ecossistema,
As espécies e suas propriedades de cura, belezas e perfumes.
Já que o apetite de Erisictão era incontrolável no desmatamento,
A deusa Deméter o condenou a fome insaciável de um glutão,
Comendo continuamente, gastando seus bens, vendendo filhos.
E tu também fez de teus filhos machadinhos de teus crimes,
Pelas repartições públicas vão fazendo sempre rachadinhas.

Por usares o fogo para a destruição, o povo não quer tuas hemorroidas,
Como dizes, nem teu fígado exposto para os abutres, como Prometeu.
O que lhe agrada é a condenação de ficares acorrentado 30 mil anos
No Cristo Redentor, já que o monte Cáucaso está muito longe, vil,
E não existe prazo possível que dê conta da punição que mereces.

Os raios convocados pelos pajés já miram a tua cabeça,
Onde a maldade plantou e crescem os desejos torpes.
Nos batuques, os tambores repicam para agora punir-te.
Não te salvarás, pois alinham-se os astros a tua desgraça.
O bumerangue babilônico do deus Adad já te procura.
O martelo de Thor esterilizará teu cérebro carniceiro.
Ouve o estrondo dos raios justiceiros na boca da massa.

A baboseira de teus salmos evangélicos no te salvará,
Teus pastores e bispos violaram todos os mandamentos.
E tu, mentiroso contumaz, cospe sobre o próprio Moisés,
Cujas tábuas de pedra esmagarão tua cabeça estúpida,
Como a tortura do “telefone” aplicada aos democratas.
Recebas o que mereces, rebento militante dos perversos.

Considera-te espirituoso? Verás as travessuras de Curupira,
Que foste provocar na floresta. Mas ele revelou a sombra
Da tua natureza celerada, aspas alongam-se em tua fronte.
Saci-Pererê, que poderia sumi-las, nega-se a colaborar
E marca teu rabo, trançando-lhe, como faz aos cavalos.
Boitatá revelou tua loucura e cegueira nas queimadas.
Caipora simulou caminhos para caíres em armadilhas.
Não és Bicho-Papão nem a Cobra-Grande, és Bradador,
Que a terra se negará a enterrar pelo excesso de pecados,
Ungidos no fel, praticados pela tua Caixa de Pandora.

Apareceste anunciando-se como o mito de Midas,
Prometendo um tempo de prosperidade e ouro
Até revelar-se infortúnio existente em ti, garimpeiro,
Pestilento da nação pelo mercúrio corrosivo do ódio.

Em tuas insônias não contas mais carneirinhos;
Enxergas o féretro interminável de teus mortos.
A pá sinistra da estupidez chega a 600 mil covas.
Governo da pátria macabra, da hiena cadavérica.

Maldito és porque desfila no Dia da Independência
A Pátria destruída, sem mão gentil e filhos contentes.
Da liberdade queres apagar o seu raio no horizonte.
Por sorte ainda existe uma brava gente brasileira,
Deseja a pátria livre de ti, forjador de grilhões.
Nossas mãos, consciências e lutas são poderosas.
Não tememos tuas ímpias falanges, face hostil;
Nossos peitos e braços são muralhas do Brasil.

OPERÁRIO EM GUERRA

O operário vai pro trabalho como o soldado pra guerra.
Dorme sobressaltado com o horário, o patrão à espreita.
O dia é de manobra e combate no território da produção.
O inimigo vigia, investiga, controla a vida do trabalhador.

O governo faz parte da engrenagem, do conluio opressor.
Presidente virou bobo-da-corte do sistema capitalista,
Ministro neoliberal orienta a renda do banco e do vigarista.
Ministro do agrotóxico garante o agronegócio exportador,
A lavoura não enche o prato e a marmita do trabalhador;
O boi berra no latifúndio da floresta caída e vai pro exterior.

No capitalismo neoliberal trabalhar é estar numa guerra suja.
Ministros levantam, tomam banho e perfumam a bunda com talco.
O operário mal dorme, come de cesta básica, repõe a força e o luto
Pra mover o sistema rentista, esmerilhando o corpo no transporte,
Afogando sonhos na pinga, cegando a utopia de futuro,
Vendo os filhos como párias, seus substitutos sem amanhã,
Enquanto a burguesia acumula, festeja o país da sua conquista.

A COMUNIDADE VAI DESCER

Paraisópolis deu o sinal
Heliópolis aumentou o mal
Nos morros o eco fatal.
O povo alvo do policial.

É no samba, é no funk,
Vítimas das bordoadas,
A bala e o cassetete
O hematoma, a pancada,
Carne comunitária furada.

Se a polícia sobe em operação,
Helicóptero, viatura, camburão,
A comunidade um dia desce
Pra cobrar o direito de cidadão.

Pra polícia, povo é bandido camuflado,
As mortes, os feridos justificam a ação.
Pro povo, a polícia é bandido fardado
E esse é todo mal que infesta a nação.

Pra polícia, povo é bandido camuflado.
Pro povo, a polícia é bandido fardado.

ANO NOVO INDÍGENA

No primeiro dia do ano novo
Despertei de alma indígena,
Erva na cuia madrugadeira,
Povo na volta do fogo
Para relatar seus sonhos.
Antigo costume terrunho,
Acompanha os desejos
Das gentes no despertar.

Sonhos metafóricos,
Sonhos animistas,
Sonhos fantásticos,
Sonhos premonitórios,
Sonhos entranhados
No cosmos, nas matas,
Nos rios desgraçados,
Nos conflitos rurais.
Nas cachoeiras criminosas
Despencam os povos atuais.

Sonhos de terras sem males.
Sonhos lavrados pelos tratores.
Sonhos perdidos nos acampamentos,
Devaneios nos acostamentos das estradas.
Sonhos atropelados nas rodovias.
Sonhos amaldiçoados pelo Estado.
Sonhos alvejados pelos milicos e jagunços
Que ainda combatem os povos originários,
Colonialismo da morte, da bala, do pioneiro,
Para quem os indígenas são os estrangeiros.

No primeiro dia do ano novo,
Despertei com sonhos lendários,
Cevei o mate dos pajés rebeldes,
Dos caciques protetores da terra,
Dos indígenas do sonho guerreiro,
Da utopia dos brancos solidários,
Que na cuia do mate tacape
Da memória, sorve a justiça
Da luta dos povos originários.

A BAILARINA CHILENA

A bailarina de vermelho,
Sapatilha bege, bandeira
Da pátria, bailando
A alma chilena.
Alma de Neruda,
Alma de Victor Jara,
Alma de Allende,
Alma de Violeta Parra.

A alma do povo
Na plasticidade
Humana da bailarina
Manteve estacionados
Os veículos da morte
Do exército e dos carabineiros.

Alma chilena, flor esvoaçante
Que a humanidade quer beijar.
Alma chilena, voo de águia,
Liberdade para o povo desejar.

 

Tau Golin. Foto: Arquivo pessoal

TAU GOLIN

Historiador e jornalista. Pós-doutor em História pela Universidade de Lisboa (2010), pós-doutor em História pela Universidad de la Republica – Uruguay (2018). Entre livros e capítulos publicou mais de cinquenta títulos. Ganhou os prêmios Concurso Literário Felipe de Oliveira, Prefeitura de Santa Maria (1984); Prêmio Açorianos de Literatura – Categoria Ensaios de Humanidades (livros A guerra guaranítica e A fronteira, Secretaria da Cultura de Porto Alegre (1999 e 2005 entre outros. É um dos principais nomes do estado do Rio Grande do Sul na crítica da versão oficial sobre figuras históricas da região, e em particular do tradicionalismo gauchesco, que fala do gaúcho como um herói cheio de virtudes. Já se envolveu em muitas polêmicas por conta das suas opiniões desmistificadoras. Mais sobre ele aqui

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Menos Eu, Mais Vida, por TADANY https://redesina.com.br/menos-eu-mais-vida-por-tadany/ https://redesina.com.br/menos-eu-mais-vida-por-tadany/#respond Tue, 28 Dec 2021 12:32:13 +0000 https://redesina.com.br/?p=17125 Aqueles, eram dias muito estranhos, parecia que uma nuvem negra e assustadora havia aparecido do nada e, por pura teimosia, decidiu fixar morada permanente no firmamento pessoal. Eram dias cinzentos, sem luzes para iluminar a alma. Dias melancólicos, sem inspiradores estímulos para impulsionar os pensamentos…   Aqueles, eram dias muito estranhos, parecia que uma nuvem …

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Aqueles, eram dias muito estranhos, parecia que uma nuvem negra e assustadora havia aparecido do nada e, por pura teimosia, decidiu fixar morada permanente no firmamento pessoal.

Eram dias cinzentos, sem luzes para iluminar a alma.

Dias melancólicos, sem inspiradores estímulos para impulsionar os pensamentos…

 

Aqueles, eram dias muito estranhos, parecia que uma nuvem negra e assustadora havia aparecido do nada e, por pura teimosia, decidiu fixar morada permanente no firmamento pessoal.

Eram dias cinzentos, sem luzes para iluminar a alma.

Dias melancólicos, sem inspiradores estímulos para impulsionar os pensamentos.

Eram dias fechados, com portas sem chaves que destrancassem daquele triste cenário.

E dias lúgubres, sem motivos para sorrir, mesmo que fosse um sorriso tímido e forçado.

 

E foi num sonho, naquele fantástico e mágico mundo que se revela entre o estar acordado e o estar dormindo, que uma doce mas assertiva voz bradou solenemente

– “Menos Eu, Mais Vida”

E depois repetiu tão baixo e longínquo como um suspiro daquele que revela um segredo a outrem

“Menos Eu, Mais Vida”

 

Às vezes, os sons mais tênues e as palavras mais doces são os mais impactantes, pois o despertar do sonho foi um salto como daqueles que acordam de um pesadelo horripilante.

E, neste caso, foi um duplo despertar

O primeiro, foi de avivar do sonho que estava sonhando

E o segundo, foi um acordar do pesadelo daqueles dias nebulosos.

O primeiro foi físico e imediato

E o segundo, por ser uma intangível revelação, pode ter impactos imediatos se entendemos o papel do eu nos dias nublados.

 

Dizem que na alegria somos todos iguais, eufóricos e livres

Mas nos dias nublados, somos todos únicos, pois cada um vê sua tristeza, sua dor e seus problemas de uma maneira individual e até mesmo exaltadamente egocêntrica, pois não existe dor ou problema maior do que o meu quando eu estou nele.

 

E, nos dias sombrios, o eu enevoado toma dimensões exorbitantes e, como consequência, elevamos nossas dificuldades, engrandecemos nossas carências, alucinamos nossas insatisfações,  enaltecemos nossas deficiências e desvairamos nossos medos de uma maneira tão surreal que, por mera repetição e validação, conseguimos remover completamente o céu de brigadeiro de nossas existências e o cobrimos com um espessa, tenebrosa e perene nuvem de angústias, desânimos e temores.

E tudo isso acontece porque nos centramos apenas no eu, o eu insatisfeito, o eu incompleto, o eu pequeno, este eu que apesar de tantos esforços, permanece sendo um minguado e insignificante eu.

 

Enquanto isto, por estar desvairado nos prodigiosos desatinos do tristonho eu, a vida, que é o primordial sentido do eu, fica escondida pela nuvem que o eu criou

Mas também é importante saber que ela, a vida, permanece lá aberta, brilhante e em seu estado mais puro e natural

Além, entre e aquém das nuvens.

E a vida segue

Com suas fragrâncias, seus desafios, suas conquistas, suas perdas, seus inícios, meios e fins.

Seus lagos, montanhas, flores e ondas

Suas sociedades, histórias, sistemas e artes

Seus frutos, lavouras, economias e banquetes

Seus abraços, relacionamentos, fantasias e amores

Suas canções, poesias, pensamentos e alegorias

Sua vívida plenitude e sua inalienável essência de ser simplesmente vida

Abundante, exagerada e paradoxal por natureza, mas íntegra por herança divina.

 

Então se hoje o despertar foi num daqueles dias estranhos evite sobrevalorizar os pequenos devaneios do eu incompleto e insatisfeito e siga o sonho maior, a Vida.

Pois a revelação foi sublime e natural

Menos Eu, Mais vida.

Ou, como foi desvelada no melodioso som onírico,

Menos Eu, Mais Vida. 

 

PS: Para citar este Pensamento:

Cargnin dos Santos, Tadany. Menos Eu, Mais Vida.

 

 

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