Arquivos porto alegre - Rede Sina https://redesina.com.br/tag/porto-alegre/ Comunicação fora do padrão Tue, 28 Mar 2023 17:31:30 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.4.4 https://redesina.com.br/wp-content/uploads/2016/02/cropped-LOGO-SINA-V4-01-32x32.jpg Arquivos porto alegre - Rede Sina https://redesina.com.br/tag/porto-alegre/ 32 32 MAR ABERTO | UM ESTRANGEIRO EM PORTO ALEGRE https://redesina.com.br/mar-aberto-um-estrangeiro-em-porto-alegre/ https://redesina.com.br/mar-aberto-um-estrangeiro-em-porto-alegre/#respond Tue, 28 Mar 2023 17:26:54 +0000 https://redesina.com.br/?p=20476 por Boca Migotto No último domingo, 26, Porto Alegre comemorou 251 anos. No dia seguinte, segunda, 27, foi a vez do Cinema Gaúcho comemorar o seu dia, instituído em 2002 através de um projeto de lei do deputado Ronaldo Zulke e sancionado pelo então governador, Olívio Dutra. Claro, ninguém esperaria isso do Ivo “Sartonaro”, aliás, …

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por Boca Migotto

No último domingo, 26, Porto Alegre comemorou 251 anos. No dia seguinte, segunda, 27, foi a vez do Cinema Gaúcho comemorar o seu dia, instituído em 2002 através de um projeto de lei do deputado Ronaldo Zulke e sancionado pelo então governador, Olívio Dutra. Claro, ninguém esperaria isso do Ivo “Sartonaro”, aliás, o governador que extinguiu a Secretaria de Cultura e que mandou os professores buscarem seu piso na Tumelero.

Em homenagem à Porto Alegre e ao Cinema Gaúcho, então, publico um capítulo do meu livro, “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, no qual discorro sobre a histórica influência dos estrangeiros – todos os estrangeiros – para nós, gaúchos e porto-alegrenses, e reflito sobre a importância do filme Cão sem dono, dirigido pelos paulistas Beto Brant e Renato Ciasca, para a nossa cinematografia.

O texto abaixo sofreu algumas pequenas alterações para que pudesse ser lido fora do fluxo do livro, no entanto, mantém sua essência que visa relacionar a famosa visita do escritor Albert Camus à capital, com nossa síndrome de vira-lata e a produção cinematográfica gaúcha contemporânea. Espero que gostem e, caso gostem, e queiram ler mais, informo que ainda há alguns livros à venda. Boa leitura.

UM ESTRANGEIRO EM PORTO ALEGRE

Um estrangeiro em Porto Alegre é o título do curta-metragem de Fabiano de Souza, realizado em 1999, o qual retrata, ficcionalmente, a passagem de Albert Camus por Porto Alegre em 9 de agosto de 1949. Camus, o autor do livro “O estrangeiro” (1942), provavelmente, seja o estrangeiro – ele próprio – mais notório a ter pisado as ruas da capital gaúcha. Isso não quer dizer que ele tenha sido o mais famoso – vejam só, até um ex-Beatle e o próprio Papa já deram as caras por aqui –, mas é bem possível que seja o mais significativo. Isso porque o parceiro existencialista de Sartre representa – ou representou – muito bem a relação da cidade consigo mesma. Se Porto Alegre fosse uma pessoa, eu diria que ela sofre daquilo que, na psicologia, é conhecido como “confiança básica”. No senso comum, a cidade precisaria resolver seus problemas de baixa autoestima. Porto Alegre não é uma pessoa, é verdade, mas por pessoas é constituída. Seus habitantes. E são estes que precisam compreender o próprio lugar onde vivem. Não se trata, obviamente, de uma constatação científica, mas, como percebemos através da historiadora Sandra Pesavento, a capital dos gaúchos – e o próprio Rio Grande do Sul – sempre se viu na posição ingrata daquele amigo estranho, diferente, incompreendido, que não é convidado para as festas e que, invariavelmente, até sobre bullying. Ao contrário da autossuficiente Rio de Janeiro, que inclusive se autodenomina a “Cidade Maravilhosa” –, e realmente é (seguirá sendo?) belíssima –, Porto Alegre busca, na opinião dos estrangeiros que por aqui passam – e/ou passaram –, o devido respaldo que possa evidenciar suas qualidades. A opinião dos estrangeiros sempre nos foi muito importante, principalmente se vier acompanhada de elogios. Por isso, a passagem de Camus pela capital foi tão marcante, tanto por conta do que significou recebê-lo, em 1949, quanto descobrir, apenas décadas depois, que as boas impressões, infelizmente, não eram recíprocas ou, pelo menos, aos porto-alegrenses assim pareceu.

Segundo matéria de Zero Hora, de 5 de outubro de 2008, escrita pelo jornalista Ricardo Chaves (2018), a chegada do futuro Prêmio Nobel de Literatura à cidade – ele receberia o prêmio em 1957 – foi acompanhada pelas figuras mais expressivas do meio literário local, além dos mais importantes representantes da alta sociedade gaúcha da época. Segundo a Revista do Globo, número 490, de 3 de setembro de 1949, citada na matéria escrita por Chaves, o autor francófono permaneceu em Porto Alegre por menos de 24 horas antes de seguir viagem para Montevidéu. A visita de Camus à capital gaúcha fazia parte de uma grande missão de intercâmbio cultural por diversos países e cidades da América do Sul. E como não poderia deixar de ser diferente para uma capital provinciana – e colonizada – como a Porto Alegre do final da década de 1940, o escritor estrangeiro foi recebido com os devidos mimos e idolatria característicos. Em função do cinquentenário de morte do escritor argelino, o artigo publicado por Gervásio Rodrigues Neves (2010) aborda a famosa passagem de Albert Camus por Porto Alegre. A partir das suas memórias de estudante secundarista da época, então com 15 anos, Neves conta como foi aquela tarde quando o auditório do Instituto de Artes da UFRGS ficou pequeno devido à quantidade de pessoas que queriam escutar Camus palestrar sobre o tema “A Europa e o crime”. Segundo consta no artigo de Neves publicado no Correio do Povo Camus seria um “[…] filósofo, romancista, dramaturgo e jornalista, um homem significativo, incorporando o espírito da civilização ocidental e, particularmente, da francesa de modo ardente e dinâmico”.

Tão elogiosa quanto a matéria do Correio do Povo foi a apresentação de Érico Veríssimo, feita em francês – obviamente –, na qual destacou a posição intelectual e ética de Camus, expressas nos seus romances anteriores a 1949, como a obra-prima “O estrangeiro” (1942), e o então recém-lançado “A peste” (1947). Nosso principal escritor, em seu discurso publicado no suplemento “Letras e livros” do Correio do Povo de 15 de agosto de 1981, já traduzido do francês, dirigiu-se ao colega de profissão da seguinte forma:

[…] senhor Camus, vós pertenceis a uma idade nova e dramática. Vós sois uma das mais claras, mais belas e corajosas vozes da França de hoje, temperada na forja da Resistência. Vós representais a nossos olhos o homem que, segundo a frase de Matthew Arnold [13], encontra-se dilacerado entre um mundo que agoniza e outro que tenta. É por isso, senhor Camus, que eu quero vos dizer o quanto nós todos somos felizes, esta noite, de vos ter entre nós e, sobretudo, de vos ouvir (NEVES, 2010, p. 3).

Foi assim, nesse clima de cordialidade intelectual e diplomacia provinciana, que se seguiu o dia atípico na pequena capital do Rio Grande do Sul. Após a apresentação de Veríssimo, Camus proferiu sua palestra, seguida de um coquetel com a alta sociedade porto-alegrense e, segundo relatos, distribuiu autógrafos àqueles que arriscaram solicitá-los. Talvez sem nem ao menos ter visto os pontos turísticos da cidade, Camus seguiu no final do dia para Montevidéu, e sua impressão sobre Porto Alegre – naquela época contava com menos de 400 mil habitantes – foi conhecida apenas em 1978, quando da publicação póstuma do seu “Diário de viagem”, no original, Journaux de Voyage. Não deu nem para reclamar pessoalmente com o autor que, ao descrever o Brasil como o país da “indiferença e exaltação”, escreveu o seguinte – e curto – comentário sobre a capital dos gaúchos: “[…] a luz é muito bela, a cidade feia. Apesar dos seus cinco rios […] essas ilhotas de civilização são frequentemente horrendas”. Além disso, não deixou de observar que o auditório onde palestrou não suportava o público presente, “[…] chegando a recusar pessoas”. Tal afirmação é respaldada pelo registro da Revista do Globo, que, na época, destacou “[…] o enorme público que lotou inteiramente o auditório do Instituto de Artes”.

No entanto, não me surpreende que, embora inteiramente ficcionalizado, o dia de Camus proposto pelo cineasta Fabiano de Souza, em seu curta-metagem, encerre, justamente, com um off do ator Nelson Diniz – na pele de Camus – citando as observações pouco elogiosas do escritor sobre Porto Alegre. Faz parte dessa livre adaptação de Fabiano retratar a passagem do escritor franco-argelino pelo Rio Grande do Sul em um inusitado dia de agosto de muito calor. Algo que, inclusive, contraria todos os registros da época, embora, certamente, justifica-se por conta da liberdade poética, contida no curta-metragem, que busca refletir, possivelmente, a escaldante Argélia onde transita o personagem Meursault em “O estrangeiro”. Trata-se de uma ficção e, como tal, mais do que “registrar” fielmente a passagem do escritor por Porto Alegre, pode sugerir que foi devido ao inusitado passeio pelo litoral gaúcho – conforme o curta-metragem – que surgiu a ideia para Camus escrever o seu clássico livro. Nesse caso, teria sido o estrangeiro Camus a registrar o assassinato que ele mesmo cometera em cenário gaúcho – “a maior praia do mundo”. Mesmo assim, chama a atenção o diretor/roteirista reconstruir toda a passagem de Camus pelo Rio Grande do Sul como uma jornada fantástica, para, então, finalizá-la com um único detalhe factual feito sobre a capital dos gaúchos. Como se houvesse a necessidade, dentre tanta fantasia, de sublinhar que o único aspecto real dessa história, que recai sobre Porto Alegre, é, justamente, algo depreciativo. As palavras de Camus sobre nossa capital.

Felizmente – para Camus e para Porto Alegre –, devo dizer que a palestra lotada ocorreu num típico dia frio do inverno gaúcho. Chamo a atenção para isso porque, tenho certeza, a temperatura amena registrada naquele dia certamente preservou o escritor da desagradável experiência de vivenciar uma sufocante jornada de calor porto-alegrense em um auditório repleto de pessoas e, obviamente, por conta da época, sem ar-condicionado. Quanto a isso, não há autoestima que nos redima. Se Camus tivesse vivido algo assim na sua passagem pela capital, certamente esse detalhe não passaria em branco nas suas anotações. As altas temperaturas presentes no curta-metragem de Fabiano, portanto, não acompanharam Camus pela Porto Alegre real da sua passagem. Bem ao contrário disso, afinal, foi justamente o frio daquela tarde de agosto que proporcionou uma observação, digamos, intrigante do autor sobre sua curta estadia na cidade. Como um bom francófono, chamaram a sua atenção os exóticos ponchos – “kapotes” – que protegiam os porto-alegrenses daquele frio invernal.

Tal introdução, construída com base na traumática relação entre Porto Alegre e Albert Camus, o que já foi tema de inúmeras reportagens e artigos acadêmicos, além do próprio curta-metragem de Fabiano de Souza, tem por objetivo propor uma reflexão acerca da influência de outros dois estrangeiros sobre, no caso, o cinema porto-alegrense. Falo de Beto Brant e Renato Ciasca, realizadores paulistas que vieram para Porto Alegre filmar Cão sem dono (Beto Brant e Renato Ciasca, 2007), adaptado do livro “Até o dia em que o cão morreu” (2003), do escritor paulistano radicado no Rio Grande do Sul, Daniel Galera. A produção desse longa-metragem foi mais uma oportunidade de a cidade – nesse caso, o ambiente da produção audiovisual – se ver frente a frente com aquele forasteiro que ao chegar a um lugar necessariamente provocará um inevitável caos. No entanto, contrariamente ao que fez Camus, Brant viveu a cidade, fez amigos e sempre falou bem – até onde se sabe – de Porto Alegre. A partir disso, se construiu uma outra relação entre a cidade – e os porto-alegrenses – e o diretor paulista. Isso porque, quando há uma reciprocidade de sentimentos, a influência do estrangeiro sobre o lugar será maior afinal, como destaquei no início deste texto, nós sempre fomos reféns dos elogios forasteiros. Foi o que aconteceu com Brant, que conquistou os (quase todos) corações e as mentes locais e, por causa disso, suas observações – bem como sua obra – foram mais bem aceitas e assimiladas pelos porto-alegrenses.

Ao mesmo tempo, não estou aqui condicionando a qualidade do filme de Brant e Ciasca à generosidade com a qual ambos trataram a quase sempre carente de elogios, Porto Alegre, mas, uma vez que os paulistas foram – e são – pessoas agradáveis e educadas, também os porto-alegrenses se dispuseram a recebê-los – e receber o resultado do seu trabalho – com mais simpatia. Uma espécie de “gentileza gera gentileza”. Seja como for, a minha pesquisa demonstrou, com base nas entrevistas realizadas, principalmente com os realizadores locais que trabalharam com Brant e Ciasca, que houve um diálogo mútuo entre “estrangeiros e nativos”, o qual gerou, além de gentilezas, um belo filme, boas amizades que perduraram e, sobretudo, influências recíprocas. Sobre isso, o quanto Porto Alegre influenciou – e afetou – Beto Brant e Renato Ciasca não é tão claro, mas não importou muito à pesquisa. No entanto, para nós, o fundamental é tentar compreender o quanto eles – os estrangeiros – influenciaram a produção audiovisual gaúcha.

Nesse sentido, ao longo dos quatro anos de pesquisa, cada vez mais foi ficando evidente que se há, neste ciclo de praticamente 40 anos de produções porto-alegrenses, um ponto de virada, este ocorreu ao longo da realização de Cão sem dono. Entretanto, esse ponto de virada não teria ocorrido se a produção de Cão sem dono tivesse se dado conforme havia sido planejada. Isso porque, segundo as entrevistas realizadas com os ex-sócios da Clube Silêncio – coprodutora porto-alegrense do filme, constituída por Gustavo Spolidoro, Milton do Prado, Fabiano de Souza e Gilson Vargas – e com o próprio Beto Brant, num primeiro momento, a coprodução dessa obra estava pensada para ser realizada com a Casa de Cinema de Porto Alegre. Ao menos, essa era a intenção inicial de Brant e Ciasca, que vieram para Porto Alegre com o objetivo de conversar sobre essa possível parceria.

Segundo Brant, em entrevista concedida a mim, em São Paulo, a relação com os sócios da Casa de Cinema, principalmente Giba Assis Brasil, Ana Luiza Azevedo, Carlos Gerbase e Luciana Tomasi, remetia às suas primeiras participações no Festival de Cinema de Gramado. Tratava-se, portanto, de uma amizade relativamente longa, sólida e também havia uma admiração profissional, sobretudo em relação aos primeiros longas-metragens, realizados em Super-8, nos anos 1980. Conforme relatou Brant, no entanto, ao ser recebido por Nora Goulart, sócia e produtora executiva dos projetos da Casa de Cinema, a percepção de como a coprodução entre eles deveria ocorrer não combinou com o tipo de filme e, consequentemente, com o modo de produção que os diretores paulistas tinham em mente.

Posso estar propondo uma analogia insuficiente sobre tal situação, mas é curioso pensar que uma casa, geralmente, reúne a família e os amigos mais próximos, enquanto um clube, mesmo que privado, está mais aberto a receber novos sócios, novos agregados. Já citei a observação realizada por Gustavo Spolidoro, em um artigo escrito por ele ao CAC, no qual dizia estar muito agradecido à geração da Casa de Cinema por instruí-lo a buscar sua própria “turma”. A paternidade da expressão “cinema de turma”, na verdade, é desconhecida, creio, até pelos próprios protagonistas. No entanto, independentemente de quem seja o pai e a mãe dessa expressão, a “turma”, aqui, significa dizer que em Porto Alegre se faz um cinema coletivo, embora restritivo. Giba Assis Brasil – um dos sócios da Casa de Cinema – também confirma tal característica quando, segundo ele, tratava-se de “[…] um cinema de autores em lugar do cinema de autor, a ‘saudável utopia’, certa vez identificada pelo crítico Antonio Hohlfeldt”. Se pensarmos que “cinema de turma” é o mesmo que trabalhar, sempre que possível, com as mesmas pessoas, essa característica seria ainda anterior à própria Geração Deu pra ti, uma vez que o próprio Teixeirinha repetia os diretores – Pereira Dias ou Milton Barragan – com quem realizava seus filmes, assim como vários atores e técnicos. No entanto, mesmo que Spolidoro e os seus sócios praticassem um “cinema de turma”, me parece que souberam se moldar muito mais facilmente ao modo de produção de Brant e Ciasca e, dessa forma, escancararam as portas do clube aos cineastas “estrangeiros”.

Spolidoro comentou, em um dos seus depoimento para este vos escreve, que Beto Brant, assim como o diretor pernambucano Lírio Ferreira, eram referências importantes para o seu cinema, pois eram expoentes de uma geração de realizadores que estavam propondo novas abordagens para a produção audiovisual brasileira. Baile perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1996) e Os matadores (Beto Brant, 1997), por exemplo, são dois filmes que marcaram a Geração Clube Silêncio não apenas por terem sido realizadas na retomada, mas, essencialmente, por se apresentarem como filmes mais orgânicos, viscerais e, essencialmente, autorais, sobretudo quando comparados com a filmografia brasileira daquele período. Havia, portanto, uma admiração de Spolidoro por Brant e, como este relata, os dois já se conheciam por conta de um encontro inusitado no Centro Técnico Audiovisual (CTAV), no Rio de Janeiro. Brant, por sua vez, disse que tinha pensado em procurar Spolidoro, mas como sua principal referência, ainda da época dos Festivais de Gramado, era Giba Assis Brasil, Carlos Gerbase, Ana Luiza Azevedo e Luciana Tomasi – então, todos sócios da Casa de Cinema, junto com Jorge Furtado e Nora Goulart –, concluiu que o caminho natural seria a própria Casa de Cinema. No entanto, no momento em que ficou claro para o diretor paulista que as filosofias de trabalho não combinariam, decidiu “tomar uma cerveja” – sempre há “uma cerveja” no cinema brasileiro – com Spolidoro e os seus sócios. Nesse encontro, segundo Spolidoro, Brant decidiu que faria a coprodução com a Clube Silêncio, que era uma produtora jovem, formada por jovens e, por isso, mais propícia a experimentar o seu jeito de produzir e filmar. Ao mesmo tempo, para uma produtora recém-criada, coproduzir um filme de um diretor reconhecido nacionalmente, além de significar prestígio e experiência, representaria algum dinheiro extra em caixa. O negócio parecia bom para os dois lados. Dessa forma, Brant e Ciasca optaram por abrir mão da estrutura mais segura e experiente – embora também mais rígida, que viria associada a uma coprodução com a Casa de Cinema – por uma estrutura menor, mas que lhes parecia mais flexível e permitiria maior liberdade de produção.

Nesse momento, se desenha algo essencial para que possamos perceber a grande transição que significou essa decisão de Brant e Ciasca. Para mim, essa escolha pela produtora mais jovem é, simbolicamente, também um marco para a minha própria pesquisa, uma vez que, de certa forma, explicita duas formas antagônicas de se fazer cinema no Rio Grande do Sul. Uma espécie de plot point dessa história. A primeira forma, o modelo tradicional de produção, que vinha sendo praticado com êxito pela Casa de Cinema ao longo de décadas. Um modo de produção que se espelha no jeito estabelecido de se fazer cinema, conforme – mediante as devidas adaptações, claro – acontece com os grandes estúdios. Geralmente, isso significa produções mais caras, equipes maiores, estruturas maiores e mais lentas e, principalmente, um controle maior sobre a produção e os prazos de realização, bem como apostar na verticalização das relações de trabalho. Cão sem dono não teria funcionado se filmado dessa forma, e os diretores paulistas sabiam disso. Brant cita, por exemplo, que eles realizaram praticamente todas as filmagens na sequência do roteiro. Uma loucura que, para ser possível, era necessário coproduzir esse projeto com parceiros que estivessem mais em sintonia com o que os paulistas imaginavam para o filme. Isso passava, necessariamente, pelo modo de produção e pela forma como técnicos e artistas deveriam se relacionar ao longo das filmagens. Brant e Ciasca apostavam em um filme mais experimental no sentido de buscarem uma atuação orgânica que imprimisse, na película, um certo naturalismo, o qual apenas seria possível de alcançar com um relativo improviso. Para isso ocorrer, seria preciso que toda a equipe – técnicos e artistas – envolvida, bem como a coprodutora, entendessem qual era a busca estética dos diretores e, obviamente, apostassem nessa proposta que visava, consequentemente, uma permanente construção coletiva do filme, ancorada na livre possibilidade de se absorver o “incidental”. Esse tipo de cinema não era necessariamente desconhecido no Rio Grande do Sul. Inúmeros curtas-metragens já haviam sido realizados a partir desse modelos de produção, no entanto, agora, o projeto a ser filmado seria um longa. Beto Brant pediu a Spolidoro, produtor executivo do filme, para lhe indicar “não os melhores profissionais, mas os profissionais amigos”. Isso significava que Brant e Ciasca não queriam, na equipe, profissionais que atuassem como operários de uma fábrica, excessivamente burocráticos na sua relação com as filmagens. Era preciso equilibrar o trabalho com a amizade.

Esse equilíbrio era fundamental, pois apenas alguém completamente engajado ao projeto, ao ponto de até confundir os limites entre o trabalho e o bar, por exemplo, poderia entender a necessidade de extrapolar o cronograma das diárias de filmagem, se isso, um dia, fosse necessário. Segundo relato de Spolidoro, era comum os diálogos no roteiro acabarem e Brant não cortar a cena, o que obrigava atores e atrizes a seguirem improvisando. Para isso ser possível, além de se montar um elenco disposto – e corajoso – a se submeter a tal proposta, há todo um trabalho que antecede a própria filmagem. Em Cão sem dono, isso chegou ao ponto de o ator Júlio Andrade não apenas ir morar no apartamento que serviria de locação para sua casa, no filme, como também adotar o cachorro – o Churras – que seria seu parceiro no filme para, com ele, conviver durante essas semanas que antecediam as gravações. Esse foi o filme que lançou Júlio Andrade nacionalmente, mas isso apenas foi possível porque o ator compreendeu exatamente o que Brant e Ciasca estavam buscando e se permitiu mergulhar no universo diegético do seu personagem – Ciro – a ponto de, ao longo das filmagens, Andrade e Ciro até se confundirem. Isso era algo próximo daquilo que os paulistas propuseram para toda a equipe quando disseram que queriam trabalhar com quem saísse para beber com eles depois das gravações.

Se Andrade saía para beber com a equipe, não sei e isso não interessa aqui, mas que o ator bebeu e realizou uma endoscopia real enquanto filmava, isso é explicitado, em depoimento, pelo próprio Beto Brant. Assim como, muitas vezes, ao finalizar a diária, a equipe seguia discutindo o filme ao redor de uma mesa de bar ou na própria locação. Segundo Brant, as filmagens acabavam em torno das quatro horas da madrugada, toda a equipe estava excitada pelas cenas rodadas, portanto, para desacelerar, bebiam algumas cervejas e descontraiam todos juntos. Brant complementa a ideia lembrando de uma fala do Magnólio, o palhaço do seu filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (Beto Brant e Renato Ciasca, 2011), “a alegria não exclui a seriedade”. Afinal, o cinema de Brant e Ciasca é “feito com amizade e celebração”, ou seja, mais uma vez estamos falando, aqui, de um “cinema de turma”. Mesmo que, talvez, de uma proposta de turma um tanto quanto diferente.

Outro aspecto que me chamou a atenção foi o fato de Brant, um cineasta que vinha de fora do Rio Grande do Sul, optar por filmar – e descobrir – Porto Alegre. Brant buscou representar várias nuances da capital dos gaúchos com a escolha de locações que não eram, geralmente, utilizadas pelos cineastas locais. Talvez, também por isso o crítico de cinema, Marcus Mello, afirma ser esse o mais porto-alegrense dos filmes gaúchos. Conforme minha orientadora no doutorado e pesquisadora, Miriam Rossini, em sintonia com a Nouvelle Vague, movimento o qual teve como uma das suas principais características redescobrir a Paris dos anos 1960 através das lentes do cinema, também Brant olhou para uma Porto Alegre um tanto desconhecida. Isso ocorre porque os filmes gaúchos, até então, haviam criado uma espécie de “circuito geográfico representacional”, que reforçava uma visão de Porto Alegre como uma cidade pequena e homogênea, formada pelo entorno dos bairros Centro, Bom Fim e da Cidade Baixa. Dessa forma, seriam os “estrangeiro” Brant e Ciasca que deram para Porto Alegre aquilo que os porto-alegrenses sempre reclamaram não haver: um certo ar de metrópole. Afinal, a cidade é muito maior que os três bairros – e alguns outros poucos – citados anteriormente.

Todas essas observações acerca do “estrangeiro”, bem como a discussão conceitual que vai colocar, em lados opostos, o que seria o cinema clássico – representado, aqui, pela Casa de Cinema de Porto Alegre – e um modelo de cinema mais desconstrutivo e, de certa forma, experimental – representado, localmente, pela Clube Silêncio –, ao que tudo indica, estão impressas no corte final de Cão sem dono tal qual o olhar paulista sobre Porto Alegre. Ainda, pode não ser algo completamente novo para o cinema, uma vez que (quase) tudo o que foge do padrão clássico, de certa forma, iniciou com a experiência da Nouvelle Vague. No entanto, por incrível que pareça, nenhum outro longa-metragem filmado profissionalmente, em solo gaúcho, a partir de um orçamento significativo e, consequentemente, associado a outras empresas produtoras até então havia proposto tal ousadia em tantas etapas e segmentos de sua realização. Por tudo isso, é mais do que interessante, é fundamental levar em conta Cão sem dono, o seu modo de produção, o momento quando ocorreu, da forma como se deu e, certamente, o seu resultado final, na hora de refletirmos sobre o que, afinal, significa essa história recente do cinema porto-alegrense. Ademais, o que Cão sem dono diz sobre esse nosso (novo) cinema.

Provavelmente, Brant estava certo ao perceber que esse filme não teria condições de acontecer através de uma coprodução com a Casa de Cinema de Porto Alegre. Ao menos, não naquele momento, quando a produtora estava vivendo seu melhor momento, na produção cinematográfica, administrando diversos projetos de filmes que contaram com os melhores orçamentos da sua história. Sem citar os projetos para a televisão. Apesar para se ter uma ideia, naquele mesmo período quando ocorreu a realização de Cão sem dono, a Casa de Cinema estava envolvida com os seguintes longas-metregans: Meu tio matou um cara (Jorge Furtado, 2005), Sal de prata (Carlos Gerbase, 2005), Saneamento básico (Jorge Furtado, 2007) e Antes que o mundo acabe (Ana Luiza Azevedo, 2009), além da coprodução Bens confiscados (Carlos Reichenbach, 2005) e o longa-metragem de baixíssimo orçamento, 3Fs (Carlos Gerbase, 2007).

Esse momento, infelizmente, não durou muito tempo e, desde então, a Casa de Cinema passou a dedicar-se mais à produção televisiva e menos à realização de projetos cinematográficos. Paralelamente, tudo indica que a própria Casa de Cinema foi aprendendo a equilibrar os elementos inerentes ao cinema clássico/comercial e autoral/experimental. Prova disso é a sua significativa participação nos filmes da Novíssima geração de realizadores gaúchos. Diante disso, é preciso ser justo em assumir que a Casa de Cinema de Porto Alegre não apenas se reinventou mas, ao fazê-lo, acabou ajudando a viabilizar alguns dos longas-metragens mais inovadores na cinematografia gaúcha contemporânea como Os famosos e duendes da morte (Esmir Filho, 2010), Castanha (Davi Pretto, 2014), Rifle (Davi Pretto, 2016) e Cidades fantasmas (Tyrrel Spencer, 2017).

As filmagens de Cão sem dono, mais do que simbolizar a opção pela produtora que havia sido criada para propor um novo modelo de produção cinematográfica em Porto Alegre, serviu para influenciar alguns filmes e realizadores gaúchos. Gustavo Spolidoro reiterou inúmeras vezes, nas diversas entrevistas realizadas para esta pesquisa, que no set de Beto Brant não havia a figura do diretor que gritava “ação” ou “corta”. Mais do que isso, não havia a figura do diretor que gritava. Spolidoro relata que isso o surpreendeu, o influenciou e influenciou o tipo de filme que ele gostaria de fazer a partir de então. Para Milton do Prado, o jeito de Brant e Cisca filmarem, bem como o modo de produção operado durante as gravações de Cão sem dono, acabaram encontrando eco nas pretensões artísticas dos diretores da Clube. Possivelmente, não porque Brant/Ciasca estivessem trazendo algo completamente novo aos sócios, mas, sim, porque Cão sem dono pode ter atestado que era viável realizar filmes de longa-metragem se utilizando de um modelo de produção e direção que os diretores da Clube também acreditavam, mas que, até então, por alguma razão ainda não havia sido aplicado em projetos de longas-metragens. Por tudo isso, é interessante observar o quanto a chegada da figura do “estrangeiro” provocou um pequeno caos e permitiu o surgimento – ou, ao menos, a reflexão – de novas configurações de trabalho, bem como possibilidades estéticas e narrativas. E que, ao virem para o Rio Grande do Sul para realizarem um projeto de longa-metragem, mais do que simplesmente filmarem Cão sem dono, Brant e Ciasca provocaram uma pequena revolução que seguiu acontecendo mesmo depois de eles retornarem para suas casas, em São Paulo. De acordo com Marcus Mello, foi preciso vir um diretor de fora do estado para que um cinema mais inventivo, orgânico e, de certa forma, experimental fosse realizado em Porto Alegre. Para ele, Cão sem dono é o filme que melhor traduziu a cidade e o jeito de ser e viver do porto-alegrense. Eu, particularmente, concordo com Mello, no entanto, cabe refletir que a Porto Alegre de Brant e Ciasca é muito mais da desesperança, do isolamento ou da fuga do que a capital da “interminável boemia bonfiniana” como aquela retratada, por exemplo, em Ainda orangotangos (Gustavo Spolidoro, 2007). Talvez a opinião de Mello ilustre um pouco daquilo que Pesavento identificou a respeito do porto-alegrense, o qual, constantemente, se preocupa “[…] como os ‘outros’ enxergam a capital gaúcha […]”, quando nem mesmo ele conseguiu ainda vê-la apropriadamente. Se pensarmos dessa forma, não surpreenderá perceber que aquele que melhor nos traduziu, no cinema, foi justamente um forasteiro, oriundo “do outro lado da fronteira”.

Dessa forma, relembrando as palavras de Albert Camus para Porto Alegre, “[…] a luz é muito bela, a cidade feia. Apesar dos seus cinco rios […]”, seria possível ressignificar nossa percepção com base em uma leitura cinematográfica? Afinal, sabemos que com uma luz bem construída e bons enquadramentos, não há cidade feia. Se assim o audiovisual quiser. Por isso, não por acaso, e é importante sublinhar, Porto Alegre também é um cenário relativamente constante na publicidade nacional. Pensando assim, o que talvez nos falte não é ouvirmos de um “estrangeiro” o quanto a nossa cidade é bonita ou legal, mas, sobretudo, concluirmos, a partir de nós mesmos, o quanto Porto Alegre é tudo aquilo que queremos que ela seja. Até mesmo feia, escura, hostil e violenta, se dessa forma nos agradar. Afinal, quem nela vive somos nós, e não os estrangeiros que por ela passam. Até porque, assim como Camus, estrangeiros virão e estrangeiros irão, mas Porto Alegre seguirá por aqui, iluminada, diariamente, por essa luz que os próprios porto-alegrenses tanto exaltam a cada pôr do sol no Guaíba – “o mais belo do Brasil”. Falta, talvez, permitir que esta mesma luz do nosso pôr do sol, de fato, nos ilumine. E ilumine nossa percepção sobre nós mesmos.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento está lançando seu novo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado, defendida em 2021. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.

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por Boca Migotto

Estive afastado da Rede Sina nas últimas semanas. Acredito, no entanto, que o motivo era nobre. Estava precisando revisar o texto final para a publicação do meu próximo livro, “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”. Sou um tanto disléxico, então, em determinados projetos, se não mergulho de cabeça, o processo não anda. Nesse caso, além do prazo curto, de outros projetos paralelos que não poderiam parar de forma alguma e das coisas da vida – namorar, brincar com o Arthur, ler, ir ao cinema, cozinhar, comer, dormir, arrumar a casa e lavar a roupa – precisei abrir mão dos textos quinzenais. Mas agora estou de volta e, uma vez que passei tanto tempo ausente por conta do livro, nada mais justo que retomar a coluna falando sobre ele.

A ideia é publicar o texto há tempo de lançá-lo no Festival de Cinema de Gramado que, este ano, comemorará meio século de vida e, obviamente, foi o evento que mais impulsionou o cinema gaúcho a partir, principalmente, dos anos 1980. Acho que vai dar certo, embora ainda falte bastante coisa para fazer até o livro chegar, definitivamente, às minhas – e suas, espero que o comprem – mãos. Adaptado da minha tese de doutorado, o livro terá aproximadamente 500 páginas através das quais abordarei uma parte da história do cinema gaúcho. No caso, inicio o recorte – sim, porque o cinema gaúcho, obviamente, é muito maior que o recorte do meu livro – com a realização do icônico “Deu pra ti anos 70”, de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, passo pela criação da Casa de Cinema de Porto Alegre, pela geração dos anos 1990 que, parte dela, vai formar a Clube Silêncio, e fecho com aquela que eu batizei, na minha pesquisa, de “Novíssima geração”. São aproximadamente 40 anos de história que eu pesquisei através da leitura de livros, artigos – acadêmicos ou não –, análise de arquivos e, principalmente, entrevistas realizadas com mais de 50 profissionais, críticos, teóricos e historiadores do cinema gaúcho. Estas entrevistas, inclusive, também deram luz a um documentário longa-metragem, homônimo ao livro, o qual será lançado no ano que vem.

Desde que ingressei no PPGCOM da UFRGS, o processo todo durou mais de quatro anos, sob orientação da professora Miriam Rossini, além de um “doutorado-sanduíche” de um ano na Sorbonne-Nouvelle, em Paris. No entanto, ainda mais que isso, há quase uma vida por trás dessa pesquisa. Isso porque, de alguma forma, ela nasceu na minha adolescência, quando escutava a rádio Ipanema FM no quarto da minha casa, em Carlos Barbosa, passou pela minha mudança para Porto Alegre, pelas minhas experiências profissionais, pelo meu mestrado sobre a Casa de Cinema, pela realização do “Filme sobre um Bom Fim”, pelo meu período como professor e pela própria pesquisa no doutorado. Por isso, mais do que abordar a história do cinema gaúcho através do recorte especificado acima, também falo da relação deste cinema com o Rio Grande do Sul, com a cidade de Porto Alegre, com a própria história do cinema e, ainda, com a minha vida pessoal e profissional. As fronteiras – conceito que trago para pensar esse cinema – estão presentes em suas mais variadas possibilidades: fronteiras geográficas, fronteiras políticas, fronteiras tecnológicas, fronteiras narrativas, fronteiras realizador/pesquisador, fronteiras abertas da América Latina.

Da tese – ou seja, do texto entregue à UFRGS – para o livro que estou prestes a publicar, a tentativa foi de desconstruir, um pouco, também a fronteira acadêmica. Para isso, busquei simplificar a linguagem utilizada na tese para um texto mais leve, sem que isso prejudicasse, no entanto, o aprofundamento das questões importantes por trás da mesma. Nisso, de alguma forma, talvez até me aproxime da própria história do audiovisual produzido no Rio Grande do Sul pois, historicamente, o cinema gaúcho (quase) sempre se preocupou mais em atingir público e, na medida do possível, estruturar um mercado cinematográfico, do que experimentar novas abordagens narrativas. Para isso, portanto, a relação do nosso cinema, inclusive daquele que surge a partir do “Deu pra ti anos 70”, no início dos anos 1980, está bem mais próxima da linguagem do chamado cinema clássico de Hollywood do que com os cinemas “desconstrutivos” como, principalmente, a Nouvelle Vague francesa.

Nesse sentido, quando propus a minha pesquisa, lá no final de 2017, a hipótese inicial estava calcada da percepção de que uma desconstrução da linguagem clássica do cinema – em longas-metragens, claro –, no Rio Grande do Sul, teria ocorrido apenas no início dos anos 1990, através de projetos realizados pelos sócios de uma produtora chamada Clube Silêncio.

Na minha percepção, Gustavo Spolidoro, Fabiano de Souza e Gilson Vargas – o quarto sócio era o montador, Milton do Prado – seriam os primeiros cineastas gaúchos a proporem longas-metragens que fugissem, minimamente que fosse, da linguagem clássica em nome de realizarem filmes os quais, justamente, tensionassem as fronteiras narrativas da sétima arte em solo gaúcho. Portanto, no âmbito acadêmico, a Clube Silêncio foi meu “objeto de estudo”. No livro, isso foi propositadamente um tanto dissolvido em nome de uma obra que abrangesse esses 40 anos de história de uma forma mais equilibrada mas, mesmo assim, segue lá, pois sua importância para o “novo cinema gaúcho”, direta ou indiretamente, é fundamental.

A Clube Silêncio durou poucos anos e realizou, inteiramente seu, apenas um único filme; o plano-sequência de Gustavo Spolidoro, “Ainda Orangotangos”. Mesmo assim, teria influenciado a geração seguinte que, através de nomes como Davi Pretto, Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, além da Cristiane Oliveira – que, embora mais jovem, está ligada à geração da Clube Silêncio – realizadores(a) os quais, pela primeira vez na história do cinema gaúcho, teriam emplacado longas-metragens em festivais internacionais importantes a partir de obras um tanto quanto desvinculadas da essência do que seria a linguagem clássica hollywoodiana. Ou seja, se antes da Clube Silêncio nós, gaúchos, trabalhávamos em função de um público o qual, nem sempre, dava o retorno esperado e, também por isso, nossos filmes não chamavam a atenção dos principais festivais internacionais – e até brasileiros –, após a curta experiência da Clube surgiram novos realizadores(as) que se preocuparam em propor diferentes abordagens narrativas para este mesmo cinema gaúcho.

Todo esse movimento, obviamente, é carregado de inúmeras nuances. Detalhes, exceções, contradições e ironias que têm relação, também, com questões socioculturais inerentes à história do Rio Grande do Sul e da capital, Porto Alegre. Para compreender isso melhor, a primeira coisa que fiz foi resgatar os estudos da historiadora – infelizmente falecida em 2009 – Sandra Pesavento.

A partir desse resgate, surgiram inúmeras outras percepções sobre questões inerentes a nós, gaúchos. Algumas delas, inclusive, já compartilhadas em textos meus publicados anteriormente aqui na Rede Sina. Nesse estudo, salta aos olhos a necessidade histórica de Porto Alegre se constituir como uma cidade moderna, vitrine de um estado que pretendia conquistar mais relevância no cenário nacional, embora seguisse arraigada às tradições conservadoras oriunda da sua elite essencialmente rural. Foi nesse sentido, inclusive, que ganhou forma a importância do Positivismo, do francês Augusto Comte, para o projeto do Partido Republicano de Borges de Medeiros e, principalmente, Júlio de Castilhos. “Conservar melhorando” era o lema que eles propunham e, de certa forma, é o que define a política, economia e cultura do Rio Grande do Sul desde então. Assim, embora a elite gaúcha, ligada ao campo, pretendesse se mostrar contemporânea aos principais centros urbanos do mundo através de uma capital “moderna”, ao mesmo tempo, pretendia fazer isso sem perder seus históricos privilégios obtidos ainda nas primeiras décadas do Brasil Império. A ideia era transformar Porto Alegre em uma espécie de vitrine para exibir o sucesso financeiro e cultural de uma elite gaúcha ligada ao que havia de mais conservador, ao mesmo tempo que pudesse consumir uma cidade minimamente parecida com as grandes metrópoles europeias onde passava suas férias. Obviamente, por várias motivos, isso não deu muito certo.

O mais significativo, talvez, seja perceber que o projeto urbanístico da capital gaúcha, inspirado na Paris projetada por Georges-Heugène Haussmann, no final do século XIX, o qual foi replicado, em maior ou menor sucesso, em cidades como Nova Iorque, Rio de Janeiro e Buenos Aires, não aconteceu em Porto Alegre pois, aqui, os recursos eram bem mais limitados que nessas cidades acima citadas. Isso, por consequência, contribuiu para com um sentimento de frustração dos porto-alegrenses para com sua cidade o qual, A) associado ao conceito de “complexo de vira-lata”, típico de países colonizados e, B) uma histórica dor-de-cotovelo, pois o Rio Grande do Sul apenas era lembrado, na corte, quando era preciso guarnecer as fronteiras das investidas “Hermanas”, acabou por definir uma característica local que nos acompanha até hoje. Desde então, nos dividimos entre aqueles que exaltam a capital e aqueles que à diminuem, conforme o andar da conversa, ao mesmo tempo que, (quase) sempre, aguardamos ansiosamente a opinião otimista de algum estrangeiro de plantão para respaldar nossas virtudes e, assim, melhorar nossa autoestima (quase) sempre lá embaixo, nos cascos dos cavalos. Mesmo que o nosso hino rio-grandense tente convencer o mundo do contrário. O estrangeiro, Albert Camus, que o diga.

Já a relação do cinema do pós-anos 1970 com essa frustração porto-alegrense se dá porque foi justamente o “Deu pra ti anos 70” que conseguiu captar esse desejo urbano da cidade – e seus habitantes – e construir, a partir da sua abordagem sobre uma Porto Alegre “moderna”, um imaginário que a aproximava dos “novos tempos”.

Para a juventude gaúcha – mas, principalmente, porto-alegrense – da época, finalmente se reconhecer na tela do cinema através de um filme que mostrava jovens em um espaço urbano, movimentado, em detrimento ao campo, foi algo inédito e revigorante. É claro que é preciso levar em conta, aqui, o momento histórico do surgimento do “Deu pra ti anos 70”, que se deu justamente quando estávamos começando a reconquistar a democracia, com a campanha das Diretas Já e, associado, também, às consequências de um planeta que, pós-Segunda Guerra Mundial, passava a apostar no liberalismo econômico e, assim, na queda das fronteiras internacionais em nome daquilo que viria a ser conhecido por Globalização. Não é por acaso que o jornalista e pesquisador, Juremir Machado, em seu livro “A miséria do cotidiano”, fruto da sua dissertação de mestrado primeiramente recusada na UFRGS, mas que num segundo momento contou com a orientação de um dos grande pensadores franceses contemporâneos, Michel Mafessoli, defendeu que o bairro Bom Fim, em Porto Alegre, seria “o portão de entrada da pós-Modernidade no Rio Grande do Sul”. Tudo isso precisa ser levado em conta ao pensarmos o nascimento desse novo cinema gaúcho produzido, basicamente, por realizadores(as) fixados na capital. Também não é por acaso, portanto, que a história do bairro Bom Fim dos anos 1980 – resgatada (também) por mim através do documentário “Filme sobre um Bom Fim” – é o pano de fundo desse movimento urbano porto-alegrense o qual, ao meu ver, representa o maior movimento cultural jovem do sul do Brasil.

O sucesso disso que, no seu principio, era quase como um passatempo de alguns jovens da classe-média porto-alegrense que estudavam, basicamente, nas faculdades de Comunicação e tinham pretensões artísticas, acabou abrindo as portas para aquilo que, logo mais, acabou por também se configurar como o melhor período da cinematografia gaúcha. Outras questões, claro, fazem parte desse período: 1) As administrações petistas na Porto Alegre dos anos 1990, que investiram fortemente nas coisas da cultura, 2) as novas tecnologias, que surgiram a partir dos anos 2000, com o advento do digital, 3) a democratização da produção audiovisual, que permitiria, inclusive, a abertura de faculdades de cinema em algumas universidades da grande Porto Alegre e, assim, qualificou a produção local, 4) o intercâmbio internacional, intensificado por essa mesma tecnologia associada, ainda, 5) ao desenvolvimento da internet no período, 6) o inédito investimento da RBS TV na produção audiovisual do Rio Grande do Sul ao longo de mais de uma década, até 2013 e, ainda, 7) o investimento do governo federal em todo o setor audiovisual, associado a uma nova legislação minimante voltada para o cinema nacional, algo que, certamente, repercutiu também no Rio Grande do Sul.

Conceitualmente, é desse cenário que nasceu a experiência da Clube Silêncio, no início dos anos 2000 e, a partir dela, direta ou indiretamente, o surgimento de uma proposta narrativa menos clássica que também vai reconfigurar a relação da produção audiovisual porto-alegrense com a forma como a própria cidade será retratada pelo próprio cinema. Isso porque, se para a geração que realizou “Deu pra ti anos 70” a busca era por retratar uma cidade cosmopolita, em sintonia com as principais metrópoles do mundo – algo tão aguardado por gerações de porto-alegrenses –, nos anos 2000 isso sofreu um ponto de virada quando Beto Brant e Renato Ciasca – dois “estrangeiros” de São Paulo – vieram para Porto Alegre realizar, em coprodução com a mesma Clube Silêncio, o longa-metragem “Cão sem dono”. Nesse filme, adaptado da obra do escritor paulista radicado em Porto Alegre, Daniel Galera, a cidade já é percebida como um lugar hostil, injusto, sem oportunidades e, de certa forma, até opressor.

Dessa forma, se “Cão sem dono” inaugurou esse novo olhar sobre Porto Alegre, o qual será uma tendência praticada por outros cineastas a partir de então, “Ainda orangotangos”, realizado – e dirigido por Gustavo Spolidoro – logo depois, parece enterrar definitivamente a tendência do cinema porto-alegrense em exaltar a cidade transloucada, libertina e progressiva que existiu ao longo da década de 1990 e primeiros anos do novo século. Assim, Brant e Ciasca inauguram um ciclo que é encerrado, logo depois, por Spolidoro. Essa cidade – e esse tempo – retratada em “Ainda orangotangos”, que é de 2007, ao meu ver, morreu ainda em 2005, quando ocorreu o último Fórum Social Mundial na capital – aquele que reuniu mais de 150 mil pessoas para discutir “um novo mundo possível – e o início da administração de José Fogaça que, por sua vez, inaugurou uma sequência de quatro mandatos – até agora – de prefeituras administradas por partidos de direita.

Assim, encerrado mais esse ciclo, que também antecipou o fim da própria Clube Silêncio, vemos Fabiano de Souza sair da capital para realizar uma viagem à praia através do seu primeiro longa-metragem, “A última estrada da praia”, Gilson Vargas ir ainda mais longe, em busca de um resgate com a paisagem da fronteira sul do estado através do seu “Dromedário no asfalto” e o próprio Spolidoro, ressacado pela loucura que foi realizar um longa em plano-sequência, se isolar na pequena Cotiporã, na Serra Gaúcha, para realizar o intimista “Morro do céu”. Ironicamente – não falei que o cinema gaúcho é cheio de ironias? – os três ex-sócios da Clube Silêncio, cada um a sua maneira, deixam Porto Alegre em direções opostas: litoral, fronteira e serra.

Esse movimento de fuga da capital vai, consequentemente, inaugurar duas tendências do cinema gaúcho de Porto Alegre desde então: 1) de um lado, realizadores que filmam Porto Alegre como uma cidade preconceituosa, opressora e conservadora, através de filmes densos e obscuros como “Castanha”, de Davi Pretto, “Desvios”, de Pedro Guindani e “Tinta bruta”, de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher ou, 2) por outro lado, filmes que seguiram a tendência inaugurada pelos realizadores da Clube Silêncio e deixaram a capital para realizarem filmes como “Rifle”, de Davi Pretto, “Beira mar”, de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher e, principalmente, “Mulher do pai”, de Cristiane Oliveira. Destes últimos, dois são cruciais pois, além de tudo, também resgatam o diálogo da capital com o universo da fronteira/pampa o qual era o cenário preferido das produções gaúchas ligadas ao chamado cinema de “bombacha e chimarrão” – cujo principal expoente foi Teixeirinha – e foi interrompido com a realização de “Deu pra ti ano 70”, ocorrido há exatos 35 anos da realização de “Rifle” e “Mulher do pai”. Novamente, aqui também as nuances são inúmeras e apenas podem ser discutidas, minimamente, através de um obra mais extensa, o que ajuda a explicar as mais de 500 páginas do livro e 110 minutos do documentário.

Por tudo isso, espero, esteja valendo a pena o trabalho que essa pesquisa vem me dando já há bastante tempo. A minha intenção em publicá-la na versão livro, mais acessível ao público em geral, é também por poder discutir tudo isso e, dessa forma, tentar contribuir com a história do audiovisual gaúcho. No entanto, este não será um livro apenas sobre cinema. Será, também, um livro sobre Porto Alegre, sobre o Rio Grande do Sul, sobre o Brasil e sobre a América Latina. Muita coisa? Pode ser, mas neste livro coube, até, um pouco sobre a França e, resumidamente, até sobre a própria História do Cinema Mundial. Afinal, o cinema não tem pátria, não tem fronteiras. E o cinema gaúcho não paira no ar, isolado de um todo que o cerca e o complementa. Por isso, este livro pretende também discutir as inúmeras fronteiras que nos apartam, mas que também nos unem. Nesse sentido, este livro é, também, um pouco sobre o pesquisador, que também é realizador (e um pouco escritor), Boca Migotto. No final, então, já não será mais uma tese acadêmica, não será apenas sobre cinema e também não será uma autobiografia, mas será um pouco de tudo isso e, justamente por tudo isso, espero, que seja revelador sobre o quão é complexo esse “certo cinema gaúcho, de Porto Alegre”. O qual, por sua vez, também desnuda nossa própria capital, e a nós mesmos, como só a arte tem condições de fazer.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.

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MAR ABERTO | Meu lugar no mundo? https://redesina.com.br/mar-aberto-meu-lugar-no-mundo/ https://redesina.com.br/mar-aberto-meu-lugar-no-mundo/#respond Thu, 24 Mar 2022 17:26:35 +0000 https://redesina.com.br/?p=17911 Nasci em Carlos Barbosa, morei em Londres e em Paris. Com exceção da primeira, as duas grandes metrópoles citadas na linha anterior fizeram parte dos meus planos para um vida longa e enraizada na Europa. Londres não rolou pois decidi não deixar meus pais sozinhos no Brasil e quando morei em Paris, recentemente, a certeza …

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Nasci em Carlos Barbosa, morei em Londres e em Paris. Com exceção da primeira, as duas grandes metrópoles citadas na linha anterior fizeram parte dos meus planos para um vida longa e enraizada na Europa. Londres não rolou pois decidi não deixar meus pais sozinhos no Brasil e quando morei em Paris, recentemente, a certeza da minha latinidade falou mais alto já nos primeiros meses de vida europeia. Portanto, por mais que quisesse insistir, e apesar das suas imperfeições, foi sempre Porto Alegre que habitou meu coração e mente.

Principal vitrine do Rio Grande do Sul, um estado notadamente conservador e arcaico, a nossa capital se constituiu a partir da relação frustrada entre o querer e o não poder. Pensada por sua elite – tosca, rude e agro – para ser a representação de suas próprias ambições estéticas, Porto Alegre sempre esbarrou na impossibilidade de concretizar sua urbanidade referenciada na Paris de Georges-Eugène Haussmann. Não foi a única, é verdade, Paris foi referência para inúmeras cidades ao redor do planeta. Mas, aqui, ao contrário de Nova Iorque, Rio de Janeiro e Buenos Aires – para citar três exemplos significativos para nós – não havia capacidade de investimento suficiente para transformar, na prática, aquilo que chegou existir no papel. Restou fazer o possível – o Viaduto da Borges, por exemplo – e invejar eternamente as demais capitais inspiradas no traçado urbano da “Cidade Luz”.

No entanto, por causa disso, projeto após projeto, a cidade foi se frustrando mais e mais e, assim, infectando seus próprios habitantes com o vírus do pessimismo. Desde muito cedo Porto Alegre ganhou fama de planejar obras megalomaníacas que dificilmente saiam do papel e disso, então, nasceu uma espécie de amor abusivo e esquizofrênico o qual pode, facilmente, conjugar num mesmo diálogo “a melhor cidade do mundo” com “uma província onde nada há para se fazer”. O fato é que o porto-alegrense se viu perdido entre dois mundos idealizados. De um lado, mais ao norte, a capital, Rio de Janeiro. Do outro lado da fronteira, mais ao sul, “mi Buenos Aires querida”, uma Paris em solo latino-americano. Mesmo São Paulo, sem o charme tropical do Rio, ou mesmo Montevideo, embora tão provinciana quando a própria Porto Alegre, conseguiram ser invejadas pela “mui leal e valerosa” capital dos gaúchos. Durante muito tempo, até a pequena Pelotas chamava mais atenção do mundo artístico e cultural. As produções europeias, após se apresentarem no Rio e antes de chegarem às capitais do Rio do Prata, ancoravam seus navios na pequena “terra do sal e do açúcar”, sem nem ao menos saberem que existia uma certa cidade de nome Porto Alegre.

Na minha pesquisa de doutorado, que visava compreender um pouco do cinema gaúcho realizado em Porto Alegre e/ou por porto-alegrenses, logo ficou claro, era necessário compreender melhor a origem e as consequências dessa frustração histórica. A “dança dos caranguejos” no balde da discórdia seria apenas uma lenda urbana? Para isso, mergulhei nos livros daquela que, possivelmente, foi a pesquisadora que mais dedicou sua vida a compreender nossa capital; Sandra Pesavento. E um livro seu foi fundamental, o qual, inclusive, indico com todas as forças: “O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre”, de 1999. Antes de compreender Porto Alegre, no entanto, é preciso olhar para a história do Rio Grande do Sul.

Para o bem e para o mal, a posição geográfica do nosso estado, suas particularidades históricas, culturais e climáticas fazem desta terra um território atípico no Brasil e na América do Sul. Culturalmente, o Rio Grande do Sul é formado a partir da mescla de diversas etnias, a começar pelos povos indígenas que habitavam esse território sem fronteiras, passando pela colonização lusitana e hispânica sem esquecer, claro, os inúmeros povos africanos que, apesar de terem vindo para cá à força, como escravos, foram fundamentais na construção e consolidação da riqueza advinda, principalmente, das charqueadas a partir do século XVIII. Embora pouco se fale – e se queira admitir – há ainda a contribuição dos muçulmanos que, embora tenham sido expulsos da Espanha no século XVI, por conta dos quase oitocentos anos de permanência na Andaluzia marcaram consideravelmente a cultura ibérica e, consequentemente, acabaram por influenciar, de tabela mas de forma significativa, a constituição do gaúcho. Num segundo momento, é preciso somar a essa formação étnica a contribuição genética e cultural dos alemães, italianos, poloneses, suecos, suíços, russos, chineses e japoneses. Certamente esqueci várias outras etnias mas o que importa, aqui, é perceber que todos estes povos vieram para cá com uma mão na frente e outra atrás, praticamente expulsos de seus países onde pereciam de fome e sem oportunidades de trabalho.

No entanto, esse povoamento é recente. Demorou muito para que as terras ermas, e sem portos naturais, ao Sul da colônia portuguesa, despertassem o interesse econômico de Portugal ou da Espanha. Mesmo após o Tratado de Madri, em 1750, a vinda da família real para os trópicos, em 1808, ou a constituição do Império do Brasil, em 1822, o Sul do país basicamente era lembrado apenas quando havia alguma ameaça de guerra ou revolução. Tudo isso, possivelmente, contribuiu para essa sensação de rejeição que acompanha os gaúchos. Entretanto, foi somente a partir do final do século XIX, com as tentativas frustradas de modernização da sua capital, que tal sentimento passou a ser registrado pela literatura regional, principalmente através dos primeiros jornais porto-alegrenses. Dessa forma, a partir desse momento, a frustração, que até então apenas pairava no ar, disseminada em rodas de mate ao redor do fogo de chão, passou a ganhar as páginas dos periódicos e, assim, ser lida, incorporada e discutida também entre a elite gaúcha. É importante destacar esse movimento da oralidade para a escrita pois simboliza o início da construção efetiva de um imaginário sobre a capital.

Segundo as pesquisas de Sandra Pesavento, nesse período de transformações urbanas significativas em todo o Brasil, Porto Alegre buscava se modernizar conforme os parâmetros europeus do século XVIII e XIX. No entanto, as suas limitações orçamentárias impediam a consolidação de projetos mais significativos.

Ao mesmo tempo, a ascensão de uma burguesia intelectual – e rica – local, que viajava o mundo e retornava para Porto Alegre ansiando (re)viver, aqui, tudo o que havia experimentado nas principais cidades fora do Brasil, ou mesmo em São Paulo e Rio de Janeiro, contribuiu para o surgimento – ou reforço – de um sentimento contraditório. Por um lado, essa burguesia intelectual, também responsável pela abertura das primeiras empresas jornalísticas, almejava não apenas a modernização da capital, mas também uma mudança comportamental da sociedade que se aproximasse, o máximo possível, do padrão europeu. Por outro lado, essa mesma elite intelectual, em Porto Alegre, desejava que isso ocorresse sem dor e sofrimento. Ou seja, sem perder os privilégios garantidos pelo status quo essencialmente ligado às históricas oligarquias do campo. Aqui já é possível perceber que a Porto Alegre que nasce das páginas dos jornais é reflexo, não da diversidade cultural apontada acima – indígenas, negros, europeus de diversos países –, mas da elite ruralista que, na época, já detinha o poder econômico na antiga Província de São Pedro.

É nesse momento, então, que o positivismo é percebido como pensamento ideológico capaz de conciliar tais interesses e, ao mesmo tempo, servir de contraponto ao liberalismo político e econômico. Ambos, positivismo e liberalismo, surgiram no bojo da Revolução Federalista de 1893-1895, entre chimangos e maragatos, e são percebidos como fatores determinantes para a eclosão da histórica polarização política no Rio Grande do Sul. Os maragatos, liderados por Gaspar Martins, representavam os federalistas, e os chimangos, liderados por Júlio de Castilhos, representavam os republicanos. Assim, o positivismo é analisado como base doutrinária dos republicanos enquanto o liberalismo como base doutrinaria dos federalistas. Uma vez que os chimangos se deram melhor, contando com as bênçãos do governo federal, o positivismo também ganhou força. Não apenas no Rio Grande do Sul, mas em toda a Velha República.

Surgido na Revolução Francesa como consequência do desenvolvimento científico e comercial em detrimento à centralização absoluta do Estado, o positivismo buscava a harmonia social a partir da integração da religião cristã, ainda com raízes no medieval, com as transformações científicas e a industrialização das cidades surgidas no bojo da Revolução Industrial. “Conservar melhorando” era a expressão utilizada pelos positivistas, que viam como negativos os tumultos revolucionários – embora admitissem que a nova ordem, que estava emergindo, apenas fora possível por conta de uma revolução que permitiu tais desdobramentos – e percebiam como positivas a reconstrução e a reorganização social. Desejavam construir um Estado mais moderno, para dele usufruir, sem, no entanto, provocar uma ruptura desnecessária com os setores mais tradicionais e conservadores os quais, em última instância, faziam parte do mesmo “clubinho”. Oficiais do Exército, latifundiários, comerciantes e alguns industriários em ascensão, todos almejavam que o Brasil percebesse o Sul como um território voltado para o futuro – a exemplo de Rio e São Paulo – sem que, para alcançar isso, fosse necessário abrir mão dos velhos privilégios de sempre. A vitrine desse Rio Grande do Sul que servisse como exemplo ao Brasil, necessariamente, seria a capital, Porto Alegre. Portanto, era preciso transformar a cidade, melhorando-a estruturalmente sem que, no entanto, isso significasse também uma mudança social.

Na França, os positivistas eram representados pela Igreja e pela nobreza deposta que, embora tivessem perdido alguns privilégios, ainda eram muito influentes sob o ponto de vista cultural e, especialmente, econômico. Algo bastante conveniente, pois permitiria a ascensão da burguesia sem que, para isso, fosse necessário perpetuar o conflito com a histórica elite francesa.

Para os positivistas, claro, esse sistema levaria paz à sociedade e estabilidade ao regime político. O desenvolvimento científico e industrial pavimentaria o caminho para o progresso e a felicidade humana. Percebam que a arte – e os artistas – não fazem parte desse projeto o qual, basicamente, imaginou um futuro onde industriários seriam as peças mais importantes de uma Nação-Estado, na qual caberia aos governos apenas intervir a favor de corrigir os privilégios individuais em busca da solidariedade, da igualdade social e do estímulo à produção. Sim, basicamente o mesmo discurso repetido infinitamente até os dias de hoje. Nenhuma surpresa, afinal, é onde está o dinheiro que rege a sociedade capitalista.

Mas isso é uma outra história, sigamos com Augusto Comte pois, segundo ele, o sistema político positivista seria regido por um regime científico, industrial e pacífico, cujo lema era o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim. É desse slogan, inclusive, que vem os dizeres “Ordem e Progresso” presentes ainda hoje na bandeira brasileira – redesenhada em 1889, por Raimundo Teixeira Mendes, quando da Proclamação da República. Percebam que se já não havia espaço para arte, também o amor foi percebido como superficial. Corta-se o amor, mantém-se a ordem e o progresso. É impressionante o quanto o nosso passado revela o presente.

Embora o positivismo tenha sido importante para fundamentar o pensamento dos republicanos em todo o Brasil, dentre os estados brasileiros, foi no Rio Grande do Sul que o mesmo encontrou as melhores condições de se fazer presente. Não por acaso, alguns dos principais conspiradores republicanos eram militares gaúchos ou, ao menos, por aqui haviam passado. Dizem que não houve, no mundo, outro lugar onde o positivismo melhor se adaptou. Não sei é possível afirmar isso com tal veemência, mas é fato que o mesmo serviu aos interesses da elite gaúcha de forma bastante semelhante ao que ocorreu na França salvo o fato de que, lá, como sabemos, revoluções populares transformaram a sociedade de dentro para fora. Muito diferente do que ocorreu com a Revolução Farroupilha. Por isso, foi necessário readequar alguns conceitos positivistas para a realidade local. Dessa forma, com a morte de Júlio de Castilhos, em 1903, principal entusiasta e defensor do positivismo no Rio Grande do Sul, a versão local do regime francês ganhou uma flexibilidade ainda maior, o que permitiu sua definitiva assimilação pelo público e pela realidade gaúcha urbana.

O principal aspecto desse então menos positivismo e mais castilhismo era pensar a moralização dos indivíduos por meio da tutela do Estado como elemento fundamental para a organização social. Ou seja, o governante teria, para si, o direito e o dever de moralizar a sociedade por intermédio da educação civil.

Foi assim que, durante a Velha República, o Rio Grande do Sul conseguiu incrementar uma série de melhorias de infraestrutura como estradas, viadutos, iluminação pública, obras de saneamento básico e abertura de escolas públicas. Com isso, a modernidade – ou algo próximo disso – alcançou, finalmente, a provinciana Porto Alegre, vitrine deste estado arcaico, porém em ascendente influência política. A vida social urbana passou a ganhar novos ares, e o próprio cinema – principal tema da minha tese de doutorado – teve condições de se estabelecer com mais força nos centros urbanos, definindo, dessa forma, uma nova ordem social que via o espaço público como lugar de lazer e convívio, a exemplo do que havia ocorrido nas maiores cidades do mundo. Com saneamento, iluminação pública, comunicação e estradas, foi possível aos cidadãos ilustres usufruírem das cidades até mais tarde da noite. Dessa forma, mesmo que timidamente, Porto Alegre passou a ser uma capital (mais) pulsante, dando início a uma vida cultural e social intensa, inspirada na “façon de vivre” parisiense ou no “american way of live” nova iorquino. Cafés, confeitarias, livrarias e outros espaços públicos justificavam os tradicionais “footings” – estamos justamente no período de transição da influência da língua francesa para a inglesa – pelo centro da cidade, e assim se consolidou uma rede de serviços e comércio que atraía e mantinha as pessoas nas ruas até tarde da noite. Obviamente, tudo isso ocorria apenas nos bairros centrais onde a elite porto-alegrense constituiu seus negócios e construiu suas moradias e, na medida que a cidade ia crescendo, também ia empurrando sua periferia para mais distante do Centro.

Tudo isso – e apesar disso – provocou uma pequena revolução de costumes, o que gerou uma certa satisfação social. Tal sentimento coletivo, consequentemente, fortaleceu o Partido Republicano, que conseguiu perpetuar-se no poder. Apesar das adaptações sobre o positivismo, realizadas por Castilhos e seguidas por Borges de Medeiros, que governou o Estado por dois períodos, de 1898 a 1908 e, novamente, de 1913 a 1928, o lema de Comte – “conservar melhorando” – seguia presente, embora tais melhorias urbanas não significassem, necessariamente, uma modernização de pensamento. Ao contrário, por causa dessas “melhorias”, o castilhismo era assimilado inequivocamente pela sociedade, restando muito pouco espaço para questionamentos e/ou debate público.

A elite republicana gaúcha começava a se estruturar nas cidades a partir da implantação das indústrias e do aprimoramento dos serviços públicos. Fazia isso, entretanto, sem romper completamente os laços com o campo e as oligarquias locais. “Conservar melhorando” também significava uma forma de, no interior ou na capital, essa elite seguir se perpetuando no centro do poder – e das decisões – e, assim, determinando de forma moralizante os preceitos a serem seguidos por toda a comunidade sul-rio-grandense. Isso se manteve praticamente inalterado ao longo das décadas, disseminando valores os quais estão, ainda hoje, arraigados na sociedade gaúcha: a indústria tradicional e o agronegócio como bases da economia do estado; a dificuldade em aceitar inovações – principalmente culturais – que possam significar um perigo à ruptura dessa ordem; o consequente conservadorismo de pensamento, ancorado numa moralidade construída a partir do mito do gaúcho como aquele homem valente, destemido e honrado e a neutralização daqueles que emanam uma percepção – e opinião – diferenciada sobre tais valores. A priori, um enfrentamento significativo a essa lógica histórica de pensamento e manutenção do poder vai ocorrer somente após a Ditadura Militar, por conta da abertura política, da redemocratização e, principalmente, como reflexo de uma Globalização já bastante intensa na Europa e nos Estados Unidos.

Felizmente, se há algo positivo a respeito desse conservadorismo enraizado no Rio Grande do Sul é o fato de que, aos olhos da História, as revoluções surgem justamente dos ambientes onde a repressão se faz mais presente.

Portanto, não chega a ser uma revolução, é verdade, mas chama a atenção pela sua contradição que, nesse mesmo lugar – “no fim do fundo da América do Sul que nem mesmo Júlio Verne sonhou”, conforme canta Vitor Ramil em sua clássica “Joquim” –, independentemente das ideologias – partidárias ou não –, foram eleitos governadores do Rio Grande do Sul uma mulher (Yeda Crusius), um negro (Alceu de Deus Collares) e, agora recentemente, um governador que se assumiu, publicamente, homossexual (Eduardo Leite). Foi ainda nessa cidade onde ocorreu a produção de um dos primeiros longas-metragens dirigido por um negro no Brasil – “Um é pouco, dois é bom” (Odilon Lopes, 1970) – e que também é um dos primeiros filmes – embora sem o sucesso esperado – a tentar romper com a temática rural do cinema gaúcho. Para completar o quadro das contradições, é também nesse conservador estado do Sul do Brasil que surgiu a primeira Miss Brasil negra, Deise Nunes, eleita em 1986. Para aqueles que possam considerar um concurso de beleza algo não necessariamente significativo para uma análise político-cultural acerca deste histórico tensionamento entre as forças progressistas e conservadoras do estado, lembro que também foi em Porto Alegre que o PT – Partido dos Trabalhadores, ascendeu nacionalmente no final dos anos 1980 – também fruto da conjuntura apontada acima – dando início a um projeto de administração pública que o perpetuou no centro das decisões municipais por quatro renovadores mandatos consecutivos.

Consequência desse mesmo projeto político, em 2001, quando tanto a Prefeitura Municipal como o Governo do Estado estavam sob administração do PT, Porto Alegre foi sede de um evento – naquele momento ainda bastante acanhado – o qual, meio que de surpresa e sem ninguém entender muito bem o que vinha a ser, tomou de assalto o Parque Harmonia, próximo à orla do Guaíba. Mesmo lugar onde ocorre, todos os anos, a festa máxima que comemora uma revolução perdida, símbolo do nosso mais profundo conservadorismo arcaico. O Fórum Social Mundial (FSM) nasceu como contraponto ao Fórum Econômico Mundial, evento que ocorria, na mesma época, em Davos, na Suíça. Já no ano seguinte, em 2002, o mesmo evento realmente se internacionalizaria de uma forma que, até então, Porto Alegre jamais sonhara. De repente, e sem muito aviso prévio, milhares de estrangeiros, de todas as partes do mundo, passaram a percorrer as ruas da cidade. Foram mais de 30 mil pessoas, de diversos países e continentes, que chegaram a Porto Alegre e, na cidade, permaneceram por aproximadamente uma semana, discutindo política, apresentando projetos sociais implantados em diferentes países do mundo, consumindo cultura, trocando experiências e interagindo de diversas formas em inúmeras línguas.

O evento mudou completamente a cidade, que, nessa época do ano, tinha por característica estar vazia em função das viagens de férias de verão. Por essa razão, por mais que os comerciantes locais torcessem o nariz para a temática social do evento, logo se deram conta que “um outro mundo possível” passava pelo aumento das vendas em uma época de “vacas magras”. “Comunistas” também gastavam em dólares e euros. Para fora da cidade e do país, o FSM escreveu o nome de Porto Alegre no cenário internacional. E isso eu mesmo posso testemunhar porque em 2003, quando morava em Londres, pela primeira vez percebi que Porto Alegre não era uma cidade totalmente desconhecida. Ao me apresentar e falar das minhas origens, muitas pessoas me diziam conhecer “a capital internacional do socialismo”. Muitas, inclusive, tinham estado no FSM, e era comum ouvir de italianos, franceses e espanhóis, principalmente, o quanto queriam conhecer e/ou retornar para Porto Alegre. E muitos destes, de fato, vieram.

Uma prova bastante significativa disso, acredito, pode ser conferida no filme Bonecas Russas (Les poupées russes, de Cédric Klapish, 2005), uma continuação do sucesso franco-espanhol O albergue espanhol (L’auberge espagnole, de Cédric Klapish, 2002). Nesse filme, a personagem Martine, vivida por Audrey Tautou, conta para o ex-namorado, Xavier (Romain Duris) que ela “dois aller au fórum social, c’est à Porto Alegre, au Brésil” (“devo ir ao Fórum Social, será em Porto Alegre, no Brasil” – tradução minha). Isso mesmo, não poderia haver um sonho maior para uma cidade historicamente referenciada em Paris que ser pronunciada num sonoro acento francês, pela voz aveludada da doce Amélie Poulain de O fabuloso destino de Amélie Poulain (Le fabuleux destin d’Amélie Poulain, de Jean-Pierret Jeunet, 2001). Nesse caso, levando em conta o ano de lançamento de Les poupées russes, é bem possível que a personagem de Tautou “estivesse vindo participar do FSM de 2005”, a maior de todas as edições, que contou com um público participante de mais de 150 mil estrangeiros.

Essa edição consagrada do evento, no entanto, representou o clímax das administrações petistas no Rio Grande do Sul, marcando, simbolicamente, o início do fim de uma era que se estende até os dias de hoje.

Isso porque em 2004, pela primeira vez desde 1988, o PT não conseguiu eleger seu candidato e, dessa forma, após dezesseis anos, e um natural desgaste do projeto petista, José Fogaça venceu Raul Pont no segundo turno daquelas eleições e assumiu o Paço Municipal em janeiro de 2005, ainda com o FSM em andamento. Desde então, embora ainda tenha tido forças para eleger Tarso Genro governador, em 2010, o PT viu sua influência política local encolher vertiginosamente ao ponto de, nas eleições de 2020, abrir mão da cabeça de chapa e indicar Miguel Rossetto, um nome histórico do partido, para vice de Manuela D’Ávila. Como bem sabemos, mais uma vez, as forças progressistas perderam para o atual prefeito, Sebastião Melo. Tal movimento político, embora dificilmente perceptível no início do século, hoje, analisado a partir do necessário afastamento dos fatos, é revelador. Seria muita ingenuidade – e, de certa forma, foi – acreditar que Porto Alegre – e o Rio Grande do Sul – se transformaria assim facilmente num “outro mundo possível”. Não demorou muito para que as elites conservadoras enfraquecessem os movimento progressistas – não somente aqui, mas em todo o Brasil – e retomassem as rédeas da cidade que sempre lhes pertenceu.

Apesar disso, a cidade vivenciou um período único na sua história. Todas essas últimas conquistas provocadas por setores progressistas promoveram, nas últimas décadas, um ambiente político, social e cultural que proporcionou, por um lado, uma transformação radical no sentimento de autoestima do porto-alegrense para com sua cidade e, por outro lado, muito em função do sucesso dessas iniciativas, a conquista de espaços importantes na sociedade gaúcha. Obviamente, tais conquistas também sofreram um contra-ataque efetivo por parte dos representantes desse mesmo conservadorismo histórico, o qual resultou em retrocessos significativos principalmente para o setor da cultura. A arte incomoda e, portanto, os artistas precisam ser combatidos. Sempre foi assim e assim sempre será.

Essa semana, escutando a Rádio Gaúcha, ouvi da voz das radialistas do programa “Atualidade” que um determinado empresário do ramo de serviços seria “aquele que faz a cidade acontecer”. Ao entrevista-lo, o referido empresário disse que a cidade está “fardada ao sucesso”. Isso mesmo, “fardada”. Talvez o erro gramatical deste que, segundo a Gaúcha, faz a cidade acontecer, não seja por acaso. Vivemos, hoje, um Brasil dominado pela farda dos militares de pijama que, nas últimas décadas permaneceram nos quartéis onde, inclusive, é o lugar deles. Como bem aprendemos ao longo da ditadura, militares não fazem a cidade acontecer. Da mesma forma os empresários. Não sem o protagonismo dos artistas. Uma cidade, seja ela qual for, para frustração das apresentadoras da Gaúcha, é constituída a partir do imaginário o qual se desenvolve, muitas vezes involuntariamente, através dos filmes, das músicas, dos livros, das pinturas e das inúmeras representações artísticas que têm o poder de transferir às ruas, prédios e parques significados que transcendem o concreto. Nesse sentido, o que seria de Paris sem o Impressionismo, do Rio sem a Bossa Nova, de Buenos Aires sem o Tango, de Lisboa sem o Fado? Por isso, é lamentável que Porto Alegre, cada vez mais, sufoque seus artistas e os espaços boêmios onde estes se inspiram e costumam se apresentar. Talvez não seja por acaso que a cidade está se transformando numa grande “praça de alimentação ao ar livre”, onde a arte apenas tem espaço quando transformada em comida e bebida nas bandejas dos glutões que ainda podem pagar por pratos ditos “gourmets”. É essa a Porto Alegre elitista, “feita pelos empresários”, que veio substituir a capital do Orçamento Participavo. Uma cidade “fardada” ao lucro acima de tudo. No entanto, sem alma, incolor e cada vez mais homogênea.

Poderia perder dias listando nomes de artistas locais – esse equívoco já foi cometido essa semana, em uma coluna do GZH – extremamente talentosos que sucumbiram ao ostracismo provocado pelo próprio cenário onde filmaram seus curtas-metragens, contextualizaram suas histórias ou montaram seus palcos. Portanto, parece mesmo que a “cidade dos caranguejos” segue atualizando-se a cada bar fechado pela Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (SMIC), a cada projeto cultural inviabilizado – ou não apoiado – pela Prefeitura, a cada edição do Fumproarte, que insiste em não mais acontecer, mas, especialmente, toda vez que o ressentimento e o conservadorismo porto-alegrense, hegemônicos, decidem que as mais variadas expressões socioculturais, por eles percebidas como subalternas, devam ser exterminadas. De certa forma, o positivismo moralista segue se atualizando nas políticas públicas da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. E aí não importa se estamos falando do carnaval de rua, do Fórum Social Mundial, das feiras de artesanato ao ar livre e/ou do Bom Fim dos anos 1980. A elite porto-alegrense sempre conta com as armas apropriadas para manipular a população – principalmente a classe média – a partir dos seus medos mais latentes, desqualificando, assim, os méritos dessas iniciativas e/ou potencializando seus problemas para, consequentemente, destituir os movimentos.

É claro que o tempo, e algum dinheiro, conferiram alguma maquiagem a essa Porto Alegre bicentenária. No entanto, trata-se apenas de uma ilusão que é refletida nos prédios envidraçados das regiões mais nobres da cidade, simulacros de uma arquitetura urbana, importada dos mesmos colonizadores com os quais, ainda hoje, tanto nos identificamos, muito desejamos e em quase nada nos assemelhamos. Ironicamente, esses mesmos prédios, vestidos de espelhos, refletem o cotidiano e sistemático esfacelamento da nossa memória. Chegará o dia em que esses prédios, assim como a própria sociedade, revelarão, apenas, sua frágil superficialidade.

Ítalo Calvino diz que a cidade “é feita das relações entre as medidas do seu espaço e os acontecimentos do seu passado”. Quem mais preserva o passado de uma cidade melhor que os artistas que, na tentativa de darem conta do seu presente, eternizam a sua percepção sobre o lugar onde viveram? Levando em conta que a cidade é muito mais como a imaginamos e que muita dessa imaginação também decorre das artes, até mais do que da ciência, é essa construção que, no dia a dia, se apresenta aos olhos do presente e, com ele, convive. Ao transeunte que percorre suas ruas, utiliza seu transporte, bebe em seus bares, relaxa ou se exercita em seus parques, a cidade se revela quase como uma fábula. É o que ocorre com o Bom Fim dos anos 1980, por exemplo. Chega um momento que pouco importa se Nei Lisboa realmente compôs “Berlin-Bom Fim” em uma mesa da Lancheria do Parque, se os punks pulavam para dentro do Ocidente a partir dos galhos das árvores que alcançavam as janelas do bar ou se aquilo que ocorreu na esquina da Osvaldo Aranha com a João Telles foi, de fato, um movimento cultural ou apenas uma reunião de bêbados e drogados, como os moradores mais conservadores definiam a aglomeração cotidiana que ocorria no bairro. O importante é que isso tudo simboliza uma Porto Alegre libertária e inovadora a qual, inclusive, pode inclusive ser questionada a partir dessa afirmação. Não era bem assim, faltou falar disso, esqueceram daquilo, exageraram nisso. Que seja. O fato é que ninguém fala sobre aquilo que não existiu.

Costumo dizer que artistas (geralmente) não criam suas artes por decreto. Mas, para criarem, precisam de decretos. Afinal, artistas também comem, bebem, pagam aluguéis e contas. Artistas precisam circular pela cidade, pelo país, pelo mundo. Entrar em contato com outros artistas e com a arte destes. Como fazer isso se mal sobrevivem na própria cidade onde moram? Acho que foi Vinicius de Moraes que disse que “São Paulo era o túmulo do samba”. Nesse sentido, talvez possamos sugerir que Porto Alegre é, hoje, o túmulo das artes.

Entre a já histórica dificuldade de viver da arte e da cultura nessa pequena-grande-capital, somado à política nacional de esvaziamento cultural e à pá de cal que significou a pandemia para todo o setor, penso que Porto Alegre – através dos seus últimos administradores – pretende se constituir como cidade-referencia sem a participação da classe artística. Sinto informar, mas acho que faltou frequentar as classes de História. Uma cidade é um organismo vivo e dinâmico e como tudo que emana vida, também a cidade demanda da arte para se expressar. A nova Orla do Guaíba, a eterna reforma do Cais do Porto, a anunciada revitalização do Centro Histórico ou o resgate do Quarto Distrito, tudo isso é ótimo e necessário, mas sem os artistas, nem o concreto armado se sustenta de pé por muito tempo. Portanto, nesses 250 anos de história, que serão comemorados no próximo sábado, dia 26 de março, mais do que qualquer coisa, Porto Alegre deveria refletir sobre como pretende tratar seus artistas a partir de agora para, quem sabe, resgatar sua autoestima, perdida em alguma mesa de algum bar falido.

* O título deste texto parafraseia o filme “Porto Alegre, meu canto no mundo”, documentário de Cicero Aragon e Jaime Lerner, realizado em 2007.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.

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Paralelo 29: Voos a Porto Alegre são retomados, prefeito Pozzobom se dá bem em redutos petista e nomes para sucessão em 2024 https://redesina.com.br/paralelo-29-voos-a-porto-alegre-sao-retomados-prefeito-pozzobom-se-da-bem-em-redutos-petista-e-nomes-para-sucessao-em-2024/ https://redesina.com.br/paralelo-29-voos-a-porto-alegre-sao-retomados-prefeito-pozzobom-se-da-bem-em-redutos-petista-e-nomes-para-sucessao-em-2024/#respond Wed, 09 Dec 2020 22:31:49 +0000 https://redesina.com.br/?p=12429 Prefeito reeleito se deu bem em bases eleitorais de adversários O resultado do segundo turno e a ampla vantagem conquistada pelo prefeito reeleito Jorge Pozzobom (PSDB) em relação ao seu adversário, o atual vice-prefeito Sergio Cechin (Progressistas), ainda repercutem uma semana depois. Em uma análise da votação por seções de alguns dos bairros mais populosos …

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Prefeito Jorge Pozzobom comemorou sua reeleição no dia 29 de novembro. Muitos dos votos da vitória vieram de seções localizadas em bases eleitorais de adversários / Foto: Ariéli Ziegler, divulgação

Prefeito reeleito se deu bem em bases eleitorais de adversários

O resultado do segundo turno e a ampla vantagem conquistada pelo prefeito reeleito Jorge Pozzobom (PSDB) em relação ao seu adversário, o atual vice-prefeito Sergio Cechin (Progressistas), ainda repercutem uma semana depois. Em uma análise da votação por seções de alguns dos bairros mais populosos da cidade revela que o tucano se deu bem em redutos petista.

Num dos maiores bairros da cidade, o Tancredo Neves, base eleitoral do deputado estadual Valdeci Oliveira (PT) e de seu irmão, o vereador reeleito Valdir Oliveira (PT), Pozzobom venceu em todas as 23 seções, distribuídas no Colégio Tancredo Neves e na Escola Estadual Paulo Lauda. Na maioria, ele obteve uma vantagem folgada. Em uma das seções, chegou a vencer com mais de 80 votos na frente.

Leia matéria na íntegra aqui

Foto: José Mauro Batista, Site Paralelo 29

PARALELAS: Sucessão de Pozzobom é logo ali

NEM BEM TERMINA UMA ELEIÇÃO…

...E já há quem esteja pensando não só nas eleições de 2022, mas, também, nas próximas eleições municipais, em 2024.

Isso mesmo! Já está na agenda de alguns políticos a sucessão do recém prefeito reeleito Jorge Pozzobom (PSDB).

Leia mais no site Paralelo29.

Companhia Azul havia suspendido os voos devido à pandemia desde março / Foto: Prefeitura de Santa Maria, arquivo

Azul retoma voos entre Santa Maria e Porto Alegre

A empresa Azul Linhas Aéreas retomou, a partir desta terça-feira (8), os voos comerciais entre Santa Maria e Porto Alegre. As viagens aéreas serão de segunda a sexta-feira.

A companhia suspendeu os voos no início da pandemia de Covid, em março deste ano. O Aeroporto Municipal de Santa Maria, no entanto, seguiu operando com voos privados.

Da mesma forma, o terminal manteve os serviços com função social, como o transportando doentes, órgãos e valores.

Leia matéria no site Paralelo29.

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NÃO INTERESSA SE ERA ARTE: ERA PENSAMENTO POR CARLOS GERBASE https://redesina.com.br/naointeressaseeraarte/ https://redesina.com.br/naointeressaseeraarte/#respond Sat, 16 Sep 2017 03:01:20 +0000 http://redesina.com.br/?p=3295 A livre manifestação de pensamento não é uma prerrogativa das obras de arte. Discutir se a exposição Queer Museu, no Santander Cultural, tinha valor artístico ou não é irrelevante face ao que aconteceu. Debater se as pinturas e as instalações eram de “bom gosto” é mais irrelevante ainda. A irrelevância máxima é tentar definir se …

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A livre manifestação de pensamento não é uma prerrogativa das obras de arte. Discutir se a exposição Queer Museu, no Santander Cultural, tinha valor artístico ou não é irrelevante face ao que aconteceu. Debater se as pinturas e as instalações eram de “bom gosto” é mais irrelevante ainda.

A irrelevância máxima é tentar definir se havia algum tipo de pornografia. Isso é mais inútil que enxugar gelo. O que alguém chama de pornografia pode ser a fé religiosa do seu vizinho. O que realmente importa é analisar a maneira como a exposição, em que ideias e pensamentos sobre a sexualidade circulavam, foi atacada por pessoas que se sentiam incomodadas.

Vivemos, teoricamente pelo menos, num Estado de Direito. Os incomodados tinham várias opções. Retirar-se (daí vem a velha frase “Os incomodados que se retirem”) e deixar os não-incomodados em paz. Seria uma beleza. Só que não. Eles poderiam recorrer à lei, denunciando a mostra para o Ministério Público, ou chamando a polícia e dizendo que crianças estavam sendo moralmente abusadas, ou encaminhando uma petição a um juiz. Só que não. Eles poderiam promover uma grande campanha contra a exposição nas redes sociais, o que realmente fizeram, manifestando seu pensamento, por mais abjeto que seja. Criada a inevitável polêmica com os não-incomodados, ela chegou ao Washington Post e ao New York Times. A justiça está aí para reprimir as injúrias e os abusos verbais, que foram muitos, conforme manda a lei.

Mas os incomodados não tinham o direito de invadir a exposição e ameaçar seus frequentadores, como fizeram várias vezes. Não tinham o direito de gravar vídeos mostrando as obras de forma distorcida para propagar mentiras. Não tinham o direito de gritar como loucos que crianças estavam vendo pornografia. Foram essas ações físicas, que colocavam em perigo as obras, o público e o local da exposição, que levaram à sua interrupção.

O Santander Cultural tem muitos seguranças, mas eles não conseguiam mais garantir a integridade de quem estava lá. Seria um absurdo retirar apenas as obras “condenadas”, chancelando o julgamento de uma minoria reacionária. Seria temerário esperar um conflito violento. A manifestação de pensamento sobre assunto relevante para a sociedade sucumbiu a um ataque de quem não admite pensamento diferente do seu. É triste. E essa tristeza não tem nada a ver com arte.

CARLOS GERBASE

Nascido em Porto Alegre, onde sempre morou, é escritor, roteirista e diretor cinematográfico, além de professor universitário. É sócio-diretor da empresa Prana Filme. É formado em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1980), tem doutorado em Comunicação Social também pela PUCRS (2003) e Pós-Doutorado em Cinema pela Universidade Sorbonne-Nouvelle – Paris V (2010). Atualmente é professor titular da PUCRS, atuando no Curso Superior de Tecnologia em Produção Audiovisual (graduação) e nos Programas de Pós-Graduação de Comunicação Social e Letras (Escrita Criativa). Começou sua carreira cinematográfica no final da década de 70, na bitola super-8, com a qual realizou o longa-metragem “Inverno”(1983), vencedor do Festival de Gramado em sua categoria. Seguiram-se diversos trabalhos em 35 mm, entre os quais o longa “Verdes Anos” (1984) e o curta “Deus Ex-Machina”(1996), vencedor de 11 prêmios em Gramado e de uma menção honrosa no Festival de Clermont-Ferrand, na França. Mais recentemente, escreveu e dirigiu os longas de ficção “Tolerância”(2000), “Sal de Prata”(2005) e “3 Efes”(2007), além do documentário “1983 – O Ano Azul” (2009) e do longa-metragem “Menos que Nada” (2012). Na televisão, escreveu diversos roteiros para a Rede Globo, com destaque para as minisséries “Memorial de Maria Moura”, “Engraçadinha” e “Luna Caliente”. Roteirizou e dirigiu programas para a Globo (“O comprador de fazendas”, na série “Brava Gente”) e para a RBS-TV (“O amante amador” e “Faustina”, na série “Contos de inverno”). Como escritor tem quatro trabalhos de ficção (dois volumes de contos e dois romances) e três obras ensaísticas na área do cinema (tecnologias digitas, direção de atores e iniciação à realização cinematográfica). Em 2013, participou do projeto “Primeiro Filme”, em que ministrou oficinas de capacitação para professores (ensino fundamental e médio), tendo como base seu livro didático “Primeiro filme: descobrindo, fazendo, pensando”. No segundo semestre de 2014, foi curador da exposição “Moacyr Scliar, o centauro do Bom Fim”, que levou mais de 100 mil visitantes ao Santander Cultural, em Porto Alegre, e foi destacada pela imprensa como um dos principais acontecimentos culturais do ano. Entre 1983 e 2002, foi membro – como baterista e depois vocalista – da banda de rock “Os Replicantes”, que lançou quatro discos no período. Fundou a Invideo Produções Cinematográficas em 1984, ao lado de Luciana Tomasi. Fundou a Casa de Cinema de Porto Alegre, em 1987, e foi seu sócio até 2011. Em outubro de 2011, criou a Prana Filmes, tendo como sócia a produtora Luciana Tomasi.

 

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#Porto Alegre-RS: Louca ou Corajosa? por Rossana Cantarelli https://redesina.com.br/louca-ou-corajosa-por-rossana-cantarelli/ https://redesina.com.br/louca-ou-corajosa-por-rossana-cantarelli/#respond Thu, 03 Nov 2016 15:11:20 +0000 http://redesina.com.br/?p=2433 Sessão de autógrafos na Feira do Livro de Porto Alegre acontece nesse sábado, 5, às 20h. Escrever o Apenas Respire não foi um sonho antigo. Muito pelo contrário, nem era um sonho. Foi somente uma tentativa de fazer algo diferente. Um desafio para quem tinha chegado aos 40, conquistado tanta coisa, mas queria mais da …

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Sessão de autógrafos na Feira do Livro de Porto Alegre acontece nesse sábado, 5, às 20h.

Escrever o Apenas Respire não foi um sonho antigo. Muito pelo contrário, nem era um sonho. Foi somente uma tentativa de fazer algo diferente. Um desafio para quem tinha chegado aos 40, conquistado tanta coisa, mas queria mais da vida.
Sou cercada de pessoas especiais. Família especial, amigos especiais. E por causa dessas pessoas, comecei a escrever e continuo até hoje.
Apesar de nunca ter escrito nada até então (ou que eles soubessem), ninguém ficou surpreso quando contei que estava escrevendo um livro – isso me causou surpresa, juro. Talvez porque meus amigos e familiares já suspeitassem dessa minha veia (eu amo eles!).
Então, o Apenas Respire foi aceito pela Editora Multifoco – gritei quando recebi o e-mail depois de quarenta e cinco dias de espera. Estava nas nuvens. Radiante! Então meu – agora – sonho se tornaria realidade.
A Editora que publica meu livro não faz divulgação. Sempre soube desde que assinei o contrato, mas jamais imaginei que fosse tão importante (e difícil). Entrei em contato com várias pessoas, porque eu não sabia nem por onde começar (desespero!). A primeira coisa que fiz foi criar uma página do livro no Facebook. Ali eu ia postando sobre minha trajetória até o livro ser publicado. Contava um pouco da história. Postava as músicas que embalam o livro. A página foi sendo curtida por amigos inicialmente.
Um autor que catei na internet (sim, sou boa de catar as coisas na internet), chamado Alexandre Lobão, me respondeu a um e-mail, aconselhando-me a escrever mais, porque, segundo ele, ninguém compra livro sem conhecer o que o autor escreve (banho de água fria – eu só tinha um livro e que nem havia sido lançado).feira-do-livro
Que nada. Vamos a outras alternativas de divulgação – detalhe, eu nem tinha o livro físico nas mãos, mas eu precisava que ele fosse conhecido antes mesmo de ser lançado. Senão, quem o compraria? Amigos por caridade!
Do nada, assim como quem acorda e decide que vai na academia naquele dia, eu falei: “Vou lançar meu livro na Feira do Livro de Porto Alegre”. Louca, claro! (ou quem sabe corajosa?)
Daí, começou outra saga: quem iria me lançar em Porto Alegre? Não sou uma autora independente, porque tenho editora. Minha editora não participa da Feira de POA. O que me restou? Busca frenética na internet novamente. Consegui o contato de praticamente todas as livrarias, editoras e distribuidoras que participam da feira. Mandei e-mail para TODAS (menos para as editoras). Olha, foram mais de cinquenta e-mails. Três me responderam. Mas teve uma distribuidora de livros em especial, a Multilivros, que me respondeu e pediu que eu os enviasse um livro físico. Assim que chegaram os livros (que emoção pegar meu livro pela primeira vez nas mãos), eu enviei para a Claudia Pinheiro, dessa distribuidora. Passados cinco dias, a Claudia me mandou um e-mail dizendo que sua mãe tinha lido e “ADORADO”, e acertamos tudo para que o livro fosse lançado em Porto Alegre no final do ano. Só eu e ela sabemos o quanto foi complicada a negociação com a minha editora para conseguir os livros consignados para a feira.
Bem, meu livro foi lançado em Santa Maria em junho desse ano. Fiquei surpresa e emocionada com as pessoas que foram, bem como das que não puderam ir, mas que acreditaram no meu sonho e adquiriram o livro depois.
Dando seguimento à divulgação, após ser lançado em Santa Maria, enviei o livro para algumas blogueiras, que leram, amaram e resenharam – aqui quero registrar meu amor incondicional à Lisse Cunha (blog Everything But the Books); Rebeca Souza (blog Maravilhosas Descobertas), minhas primeiras resenhistas, meninas que me incentivaram e me ensinaram muito.
No entanto, ficar mandando livro sai muito caro. Então, comecei a fazer a divulgação do livro no Instagram @rossanacantarelli. Em questão de três meses, passei de trinta e cinco seguidores, para mais de mil. Ele está fazendo grande sucesso entre os IG literários. Mas sei que ainda é o início. Ele continua um livro desconhecido, que está conquistando seu espaço aos pouquinhos.
Já tive tanto retorno de leitores, que fico emocionada com seus comentários. Ouvi pessoas dizendo que a personagem Isabela era o que faltava na nossa literatura. Ouvi que o modo como escrevo não é clichê. Que é uma história muito envolvente, apaixonante e única. Quem lê fica surpreso com a história. Sou muito orgulhosa desse “filho” que apareceu na minha vida somente para acrescentar mais amor. Até poema já fizeram para mim (muito meigo).
Então, o grande dia, que busquei tanto, a noite de autógrafos na 62ª Feira do Livro de Porto Alegre, está chegando.
Para mais essa divulgação, conto com a querida Melina Guterres da Rede Sina, a quem me ajudou desde o início.
Não sou uma autora conhecida. Só tenho um livro publicado. Mas eu estou tão feliz, que queria dividir essa felicidade com vocês. Escrever esse livro me fez uma pessoa muito mais feliz.
Nervosamente, eu convido a todos para essa grande noite (05/11/16, às 20 h, Praça dos Autógrafos).
Corajosamente, aguardo vocês lá 😉
Muito obrigada.

Música de hoje:

 

Rossana Cantarelli Almeida

Rossana_livro_fotoCapa_Apenas_RespireÉ gaúcha de Santa Maria. Advogada e Analista Jurídica da Procuradoria Geral do Estado. Casada com Marcelo há 9 anos. Mãe do Cassio, 5 anos; madrasta do Arthur, 15 anos.
Mesmo quando tudo parecia perfeito em sua vida, alguma coisa a angustiava. Sem saber direito o que era, e em confidências com seu marido, ele lhe disse uma noite: apaixone-se por você!
E foi então que Rossana começou a escrever. Sua história foi tomando forma; personagens, diálogos, dramas iam surgindo na sua mente. Até que nasceu “Apenas Respire – Rock e perfume: paixão no ar”, seu primeiro romance, publicado pela Editora Multifoco e lançado em junho de 2016. Já tem outros dois livros escritos, à espera de publicação.
Agora é colunista do site Rede Sina, com a coluna quinzenal “Contos dos Cantos”, onde escolherá uma música e escreverá um conto embalado por ela.

Encontre o livro da  autora em: 

http://www.livrariacultura.com.br/p/apenas-respire-46330213

http://editoramultifoco.com.br/loja/product/apenas-respire/ 

Também à venda na livraria Athena em Santa Maria.

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