por Boca Migotto
Hoje é 7 de setembro de 2022. Há exatos 200 anos, segundo o que aprendi na escola, Dom Pedro I erguia sua espada às margens do riacho Ipiranga e gritava: “Independência ou Morte”.
Esse ato bravio de coragem e desprendimento, então, fez do Brasil um país livre de Portugal. Quando criança, na escola, já me soava inverossímil nossa independência ter nascido de um ato tão banal, no meio do mato e longe de tudo e de todos. Mas o que poderia uma criança argumentar frente aos fatos e professores? Na minha época – papo de velho – o que os professores diziam era verdade inquestionável e, questioná-los, um ato de insurreição penalizado, muitas vezes, com a famigerada “ida à sala da diretoria”. Para tornar tudo um pouco mais dramático, os livros didáticos que me introduziram na educação formal foram escritos durante a ditadura militar e os professores que me ensinaram haviam sido formados pelo mesmo regime.
Passados quase 40 anos, hoje sou eu quem escreve. Não para estudantes ginasianos – ou fundamentais, para me mostrar mais contemporâneo – mas para quem quiser me ler, aqui, através do site da Rede Sina, ou nos livros e filmes que eu (ainda) me meto a produzir. Para a Rede Sina, no entanto, escrevo a cada 15 dias e, geralmente, o tema sobre o qual decido discorrer surge com relativa facilidade. Não sei se por que eu estava envolvido com o lançamento do meu segundo livro, “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, ou com o lançamento do documentário, “A próxima estação de Tabajara Ruas” mas, desta vez, estava com sérias dificuldades para decidir sobre o que escrever.
Uma jornalista de quem gosto muito, a Mariliz Pereira Jorge, além de colunista da Folha de São Paulo, tem um programa no Canal Meio, no YouTube, que se chama [no Brasil] “De tédio a gente não morre”. Todo dia, uma “BOMBA”, algo “EXCLUSIVO” ou, ainda, “URGENTE”. E sempre assim, em caixa alta. Penso que, talvez, a profusão de notícias também contribuiu com minha indecisão temática. É tanta novidade velha para atiçar nossa adrenalina que, embora não me deixe morrer de tédio, fico com certa preguiça de decidir sobre o que escrever. Afinal, por que escrever se tudo já foi ou está sendo escrito?
Por isso, pensei, então, em começar este texto discorrendo sobre o bloqueio criativo. Nada mais clichê, confesso. Discursaria sobre o vazio da alma, sobre as angustias do escritor sem tema, mergulharia na retórica do papel em branco, descreveria o silêncio soturno da velha máquina de datilografar e, voilà, tudo estaria resolvido.
Foi quando me caiu a ficha que deveria escrever sobre os 200 anos da(s) independência(s) do Brasil. Assim, no plural, afinal, se houve mesmo uma independência, essa não se resume a apenas uma, mas, sim, muitas. Coincidência ou não, foi ao decidir o tema desta coluna que me dei conta sobre o quanto ando lendo de Brasil. Recentemente, após devorar o livro “O ovo da serpente”, da Consuelo Dieguez, e enquanto aguardo ansiosamente o lançamento do livro da jornalista Juliana Dal Piva, “O negócio do Jair – a história proibida do clã Bolsonaro”, retomei – e agora com empolgação – o intenso e profundo “Diálogo Possível”, do ensaísta Francisco Bosco. Meu interesse pelo Brasil contemporâneo, no entanto, não exclui revisitar a história deste jovem senhor que completa dois séculos de autonomia (?) política. Laurentino Gomes, Marco Antônio Villa, Lilia Schwarcs, Celso Furtado, Gilberto Freyre, Lira Neto, Sérgio Buarque de Holanda, Jessé Souza, Márcia Tiburi, Fernando Morais, são alguns autores que passaram – e alguns repassaram – sobre minha cabeceira este ano, compartilhando o espaço e a alternância com escritores como Jeferson Tenório, Paulo Scott, José Falero, entre outros. Nessa celeuma literária, até Olavo de Carvalho ando a fim de visitar. Afinal, essa semana, o cara virou nome de rua na minha cidade, Porto Alegre. Rua Filósofo Olavo.
Brincadeiras à parte, não se trata apenas de ler, mas de mergulhar o mais profundo possível na alma desse país tão controverso. Nesse pulo sem paraquedas, compreender melhor a escravidão, nossa principal chaga e responsável direta pelo nosso permanente estado de atraso cívico, é minha principal obsessão. Nesse sentido, o livro do Francisco Bosco nos ajuda a compreender o Brasil contemporâneo através de uma reflexão profunda e sem concessões. Segundo ele – mas não só – é determinante, na nossa constituição como nação, o fato de não termos tido marcos políticos e sociais que estabelecessem momentos decisivos para/na nossa história. Quer dizer, não temos a nossa “Revolução Francesa” ou nossa “Guerra de Secessão”.
Nossa “Independência ou Morte” foi pintada por Pedro Américo, sob encomenda, 64 anos após o grito surdo de Dom Pedro I às margens de um riacho Ipiranga longínquo e isolado. Levou dois anos para o quadro ficar pronto e, desde os cavalos, passando pela indumentária dos soldados e a fisionomia heroica do Imperador, tudo é uma Fake News, para usar um conceito atual. Quanto muito, uma representação épica de um evento prosaico. Na verdade, sabemos que o cavalo de Dom Pedro era uma “magnífica mula baia”, que o evento não foi testemunhado por tantos militares, muito menos trajados como quem vai a uma festa no palácio, e que Dom Pedro estava sofrendo de uma terrível diarreia desde que saíra de Santos e, portanto, sua expressão varonil é pura ficção. Pior, recai sobre o próprio pintor acusações de ter plagiado os pintores franceses Jean-Louis Ernest Meissonier e Horace Vermet quando estes retrataram Napoleão III nas batalhas de Solferino e Friedland.
Nossa Proclamação da República tampouco deixa de ser uma grande farsa. Se deu através de um Golpe Militar, ocorrido, dentre vários motivos, principalmente em resposta à insatisfação da elite brasileira à Abolição da Escravatura ocorrida um ano antes, em 13 de maio de 1888.
Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, o golpe foi acompanhado por “um povo bestializado” e totalmente alheio ao evento liderado por um doente e enciumado Marechal Deodoro da Fonseca. Chega a ser uma piada – embora, se tratando de Brasil, bastante coerente – saber que o fato determinante para que o enfermo militar deixasse sua cama, vestisse seu complexo traje de Marechal, pendurasse suas medalhas e montasse seu cavalo para dar o golpe tenha sido a descoberta de que o novo Presidente do Conselho de Ministros do Império viria a ser Gaspar Silveira Martins, rival de longa data, com quem Deodoro disputara, no Rio Grande do Sul, – e perdera – o amor da Baronesa do Triunfo. Não menos irônico é a constatação histórica, através de cartas e documentos da época, de que Dom Pedro II, embora Imperador por 49 anos, tivesse uma alma republicana enquanto Deodoro da Fonseca, o “pai da república”, ao contrário, fosse um monarquista convicto.
Por fim, mas não menos lastimável, foi a transformação de um ordinário dentista de Minas Gerais em herói nacional. Para os positivistas que embasaram a recém proclamada república, era primordial personificar a identidade republicana brasileira através da construção de um mito unificador. Nesse sentido, a figura de Joaquim José da Silva Xavier se mostrou adequada. Na verdade, embora não tenha tido papel central na Inconfidência Mineira, quando capturado, Tiradentes foi íntegro o suficiente – ou ingênuo demais – para assumir, para si, a responsabilidade pela sublevação enquanto os demais integrantes do movimento, mais importantes que ele, limitaram-se a se acusarem mutuamente para escaparem da morte ou do degredo. Foi assim que, a partir da república, surgiu a imagem de um Tiradentes de barba e camisolão, à beira do cadafalso, pintado à imagem e semelhança de um (quase) Jesus Cristo. Historiadores, entretanto, são unânimes em afirmar que, na época, para evitar a proliferação de piolhos, os presos – e Tiradentes passou três anos preso antes de ser executado – tinham a barba e o cabelo raspados. Portanto, já começa na longa barba ruiva de Tiradentes, pintada por Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo, no seu “Martírio de Tiradentes” ou por Pedro Américo – ele de novo – no ainda mais famoso, “Tiradentes Esquartejado”, a invenção do nosso principal herói nacional. Dessa forma, nem a Independência, a Proclamação da República e, muito menos, nosso principal herói, contribuíram com a constituição de um Estado-Nação reconhecido por brasileiros e brasileiras. Nossos mitos fundantes são uma fraude, empurrados de cima para baixo, a fim de justificarem as manipulações mais espúrias de uma elite (sempre) sedenta por poder e dinheiro.
É a partir desta constatação que Bosco defende, na falta de algo mais honesto, a Cultura Popular como a argamassa que nos une – ou nos unia – como brasileiros. O carnaval, a canção popular – onde destaca-se, sobretudo, o samba – e o futebol são – ou eram – nossa revolução nunca ocorrida, nossa luta por liberdade, nosso verdadeiro sentimento patriótico. Ainda mais revelador, é o fato de que em todas essas três expressões culturais o protagonismo do povo negro é determinante. Até por isso, é claro que esta Cultura Popular sofreu enorme resistência por parte das classes dominantes e da elite intelectual que sempre buscaram fazer do Brasil um puxadinho euro-tupiniquim. O carnaval, a música popular e até o futebol, trazido da pálida Inglaterra por homens brancos, superaram essa resistência, atravessaram as classes sociais, transpassaram, até onde foi possível, os preconceitos, e se constituíram na argamassa que, por muitos anos, uniu o povo brasileiro e, inclusive, fez desta cultura a marca do Brasil internacionalmente. No entanto, Bosco nos diz que faltou realizar, na dimensão socioeconômica, aquilo que fizemos na dimensão da Cultura Popular. Infelizmente, “[…] na história brasileira mais recente, o momento mais dramático de tentativa de forçar os limites desse arranjo terá sido a proposta das reformas de base por João Goulart, que impulsionaram o golpe de 1964”. Ou seja, quanto mais próximos chegamos de finalmente virarmos a chave da nossa desigualdade endêmica, novamente os militares – associados a empresários e à grande mídia da época –, decidiram por nós o que era melhor para o país. Para piorar, aos poucos o carnaval foi institucionalizado, encaixotado e vendido pela Rede Globo, a música deturpada pela Indústria Cultural, ao ponto de, hoje, (quase) toda ela, nas rádios, se resumir, basicamente, ao Sertanejo Universitário e, por último, o futebol, esse negócio “padrão FIFA”, passou a ser acessível aos pobres somente através da TV aberta. Tudo isso, claro, diz muito sobre o Brasil que, hoje, chega aos seus 200 anos de independência(s) sequestrado por uma milícia institucional.
Ora, a democracia, por si só, demanda justiça social, demanda ações para aplicarmos à vida real aquilo que está escrito na nossa Constituição Federal. No entanto, isso não ocorre no Brasil. Na sua essência, nunca ocorreu.
E, portanto, o brasileiro nunca chegou perto de uma democracia plena. Por isso, o Brasil segue sendo um lugar extremamente injusto socialmente, onde também a justiça não chega aos mais pobres. Pretos e pobres jamais foram reparados pela democracia brasileira e, ao mesmo tempo, foram escanteados daquilo que lhes era legítimo. Quando isso esteve mais próximo de acontecer, com redemocratização, e a sociedade teve a oportunidade de demandar, minimamente, o devido reparo sócio-histórico, a direita retrógrada, mais uma vez, reagiu. Nesse sentido, o ano de 2013 é simbólico. Foi quando a direita roubou das esquerdas a pauta – além das ruas – que deu origem às manifestações daquele ano e, a partir dai, fez eclodir o adormecido ovo da serpente. “Chega de concessões” – dirão os conservadores. O povo – “bestializado e inerte” – nunca foi integrado a esse país, salvo para servir como mão de obra escrava. Aqui, então, fica a pergunta: como dialogar nesse palco onde, de um lado, milhões de pessoas clamam por um prato de comida e, de outro, descendentes das velhas capitanias insistem em manter seus privilégios hereditários? No momento quando as máscaras de um apartheid dissimulado caem por terra, ainda é possível dialogar?
É verdade, ainda segundo Bosco, que após a ditadura militar a direita não foi “convidada” a debater a nova democracia que se estabelecia. Pudera, esta direita estava associada ao próprio estado de exceção. No entanto, questiona o autor, para haver diálogo possível este não deveria se dar entre antagônicos? Afinal, uma democracia também é construída a partir do contraditório, desde que estes, obviamente, estejam, todos, do lado da democracia. É por isso que, se há algo de bom neste momento histórico o qual vivemos, sob intenso bombardeio da extrema-direita ao estado democrático de direito, e após percebermos que pouco mais de 30 anos de governos de centro-esquerda – e não venham me dizer que o PT foi um governo de esquerda – não foram suficientes para garantir a estabilidade da própria democracia, é que faltou dialogar. E muito. Mas, novamente, fica a questão que dá título ao livro de Bosco: esse diálogo é possível?
Nesse país injusto, o preto e o pobre não podem errar. Mesmo quando não erram correm o risco de serem acusados, condenados e presos. O Partido dos Trabalhadores, no poder, foi um pouco disso. Ao PT não lhe era permitido “escorregões idiotas em dias de sol”. Isso representaria sua morte. E o próprio Lula sabia disso, tanto que fez tal observação em seu discurso de posse quando eleito pela primeira vez. Ao mesmo tempo, nesse país historicamente dominado por conchavos de colarinho, como promover justiça social sem jogar o mesmo jogo já jogado há séculos? Aceitar o jogo que já está estabelecido significa aceitar que a corrupção existe, é um fato, e que é preciso utiliza-la em nome de “objetivos nobres” como um Bolsa Família, um PROUNI, um Minha Casa Minha Vida. Do contrário, é preciso ser muito ingênuo – ou ignorante – para acreditar que o Congresso aceitaria aprovar projetos assim transformadores, como os citados acima, apenas pelo bem do povo brasileiro. Mas os fins não justificam os meios e o PT não podia errar. Tanto é verdade que, assim quando possível, aquele mesmo Congresso abriu um processo de impeachment contra uma presidenta honesta, eleita democraticamente, e sobre quem nenhum crime se comprovou, afastando-a do Palácio do Planalto através dos votos de um bando de homens (quase todos) brancos, ricos, e sobre os quais, estes sim, recaíam todos os tipos de acusações.
Após esse equívoco histórico, ocorrido em 2016, a elite apertou o botão do “foda-se” e, desde então, decidiu gozar o máximo possível, roubando – ainda mais, cada vez mais – tudo que essa terra (ainda) pode(ria) oferecer.E “foda-se” se o país acabar. Sempre haverá Miami.
Nesse sentido, quem não pode roubar o estado quer roubar o vizinho. O homem machista, heterossexual, quer gozar sobre a mulher que sempre subjugou. O motoqueiro quer gozar quebrando as regras de trânsito e sair por ai em “motociatas” sem capacete, ultrapassando o sinal vermelho e acelerando acima do limite permitido. Outros querem gozar com suas armas, atirando contra índios, negros, gays, mulheres e petistas. E, quando isso não for possível, que seja em javalis, perdizes e alvos com a foto do Lula. O importante é gozar, como se não houvesse amanhã. Exatamente como faz Bolsonaro, o símbolo maior dessa distopia sem ponto de retorno. E, talvez, para melhorar, seja mesmo necessário piorar muito.
Ainda não terminei de ler o livro, por isso, não sei se o autor defenderá que um diálogo é, de fato, ainda possível. Sei que, teoricamente, este sempre é viável. No entanto tenho dúvidas sobre o quão eficiente é dialogar com aqueles que apenas querem gozar. Aqui a polarização é entre a razão e o instinto mais básico. Para dialogar é preciso racionalizar e, mais do que nunca, estamos percebendo que o Brasil não racionaliza. No seu livro, Bosco ainda diz que para um debate ocorrer é preciso que os debatedores entrem nele dispostos a se transformarem em algum nível. Mesmo que minimamente, é necessário que o debate, por meio do diálogo, transforme os pensamentos. Quando entramos num debate reticentes a nos transformarmos e dispostos a, apenas, transformar os demais debatedores, é porque esse diálogo já não faz o menor sentido.
Hoje, 7 de setembro, comemoramos 200 anos de um Brasil teoricamente livre e independente. No entanto, em vez de cultura e debate sobre o que significa essa data, o que veremos – publico esta coluna na manhã do feriado – é mais um carnaval golpista. Um gozo coletivo em nome da mais impressionante irracionalidade ético-moral. No entanto, não deixa de ser apenas mais um capítulo dessa lamentável novela de independência e morte onde o diálogo possível serviu, acima de tudo, para gerar uma entidade chamada “Centrão”. Quem sabe, antes do diálogo possível, ainda nos é necessário uma “Revolução Francesa” para chamarmos de nossa. Enquanto isso, seguirei por aqui, escrevendo a cada quinze dias, em busca de um diálogo possível com todos vocês. Mesmo que me falte inspiração. Afinal, no Brasil ninguém morre de tédio.
I. BOCA MIGOTTO