por Boca Migotto
A semana começou com sol e frio. Após um final de semana de muita chuva, a segunda-feira até se mostrou mais alegre por conta disso. Acordei lembrando que estava na hora de pensar o tema para a minha coluna.
A cada quinze dias é assim, um compromisso com o “sobre”. Sobre o que escrever, que vai interessar aos outros e a mim mesmo. Afinal, escrever é, também, se comprometer. Assuntos não faltam, é verdade. Principalmente se optar escrever sobre política. Mas, às vezes, certos temas me desanimam. E o Brasil de Bolsonaro, certamente, é um deles. Não vejo a hora de não precisar mais ouvir o nome desse cara. Será que isso, um dia, será possível? Então lembrei que hoje, 16 de maio, é aniversario do meu amigo Juan Quintáns. Isso me fez pensar que eu poderia escrever sobre a amizade. Amizade em tempos de cólera.
Conheci o Juan em 2013, quando realizava um longa-metragem, O sal e o açúcar, através do IPHAN. O filme é um tanto inédito pois, como não me pertence – apenas fui chamado para roteirizá-lo e dirigi-lo – não tenho a mínima ingerência sobre a sua exibição. Até onde sei, o IPHAN nunca o lançou publicamente. Eu, da minha parte, gosto muito do filme que, por sua vez, vai muito além de falar sobre os “Doces de Pelotas”. Para quem quiser assisti-lo, tenho-o disponível, meio na surdina, no Vimeo da Teimoso Filmes.
Quando o saudoso Raymundo me chamou para o projeto – a produtora dele havia vencido a licitação e ele precisava de um diretor – eu estava mergulhado no inferno, por motivos que já expus, aqui, anteriormente. O que importa saber, nesse momento, é que 2013 foi um ano que produzi muito e este longa-metragem, que acabou sendo o meu primeiro, fez parte dessa onda descomunal de trabalho. Então, numa bela manhã de muito frio, acho que era junho ou julho, a equipe contratada pelo Raymundo para rodar esse documentário me pegou em casa, no Bom Fim, para irmos para Pelotas. Quem dirigia a van era um espanhol – ou melhor, um galego – que falava português razoavelmente bem e que fazia piadas o tempo todo. Curiosos sobre aquela figura, perguntamos de onde ele tinha saído e como tinha acabado em Porto Alegre. Juan nos contou que era casado com uma gaúcha de Pelotas – a Dani – com quem vivia na Galícia, mas que com a crise espanhola, por fim, acabaram decidindo vir morar no Brasil. Num primeiro momento tentaram Florianópolis mas, por conta da dificuldade de trabalhar com audiovisual – Juan era formado em cinema em Coruña – na ilha, acabaram optando pela capital gaúcha.
E foi assim que iniciamos uma relação de trabalho e, de certa forma, já naquele momento, de amizade. No entanto, esta, a amizade, apenas deslanchou muito tempo depois.
E por insistência do próprio Juan que, um dia, do nada, bateu na minha casa com um sacola de batatas numa mão e uma de ovos na outra, se oferecendo para fazer uma tortilla para a janta. Sem poder escapar daquela investida, abri a porta e liberei a cozinha para ele enquanto, da minha parte, abria a primeira garrafa, de muitas, de vinho. O receio inicial em recebe-lo – afinal, era uma noite de sexta-feira, estava jogado no sofá, em frente à TV, de pijama, devorando uma série e, portanto, sem a menor intenção de socializar – deu lugar a uma agradável e interminável noite de conversa, risadas e muito vinho. Aquela história, “uma vez na chuva é para se molhar”.
Depois dessa noite, então, acabei chamando-o para outros trabalhos e um, em especial, permitiu que a gente aprofundasse, ainda mais, nossa amizade. Sem grana para filmar, o chamei para minha cidade, para realizarmos o curta-metragem Às Margens, sobre um artista local, o Elson Tieppo. Sem poder pagá-lo em dinheiro, combinei que em troca da parceria por fazer o som direto do curta, eu o levaria para jantar nos melhores lugares da região. Obviamente, toda a orgia alimentar seria por minha conta. E foi assim que, novamente numa segunda-feira de muito frio, iniciamos as filmagens que duraram toda aquela semana de termômetros marcando zero grau. Foi quando, acho, pela primeira vez, também falamos sobre nossas vidas.
Desde então a amizade, e as jantas, foram aumentando. Aos poucos, não lembro bem como, foi-se fechando um grupo também com os amigos – e atores – Nelson Diniz, Marcos Verza e o saudoso Leonardo Machado. Foi uma época maravilhosa quando nós, artistas, podíamos comprar picanha para nossos churrascos, o Leo ainda estava entre nós, Bolsonaro era um deputado desconhecido e a palavra pandemia não fazia parte do nosso vocabulário cotidiano. Escrevendo essa sequência de acontecimentos, agora, me dou conta de como tanta coisa mudou tão rapidamente nas nossas vidas. A morte do Leo foi um golpe inesperado para todos nós. Lembro que o velório dele ocorreu no mesmo dia da manifestação pelo #EleNão. Triste ironia do destino. Estávamos arrasados e nem podíamos imaginar que o destino ainda nos reservava muitos outros motivos para chorarmos.
Tenho certeza que gerações de historiadores e sociólogos se debruçarão, por décadas, a estudar as causas e consequência da eleição de 2018 enquanto, ao escrever isso, agora, nem ao menos posso garantir que os próximos meses e anos não serão ainda piores.
Bolsonaro fez emergir a maldade que os brasileiros sempre tentaram esconder debaixo do tapete mas, nesse processo de revelação nacional, ao menos no meu caso, muitas amizades se perderam. Passei a não admitir mais conviver com as pessoas, mesmo amigos de infância, que apoiavam esse cidadão. Por isso, optei por romper amizades. Não por causa da política, como eles mesmo tentavam argumentar, na vã tentativa de imputar sobre mim a responsabilidade por tal rompimento, mas por uma questão de visão de mundo. Bolsonaro representa o contrário de tudo aquilo que a minha mãe me ensinou. Apoiá-lo – e seguir amigo de alguém que o apoia – seria o mesmo que negar a educação que recebi em casa. Nesse caso, melhor só do que mal acompanhado. Já a minha amizade com o Juan, por outro lado, foi se consolidando cada vez mais. Nesse momento já tínhamos um convívio de muitos anos. Ele, a Dani e o Pedrinho – filho deles – de certa forma, se tornaram a minha família. Nesse momento, tal qual irmãos, também já tínhamos brigado – e sobrevivido às brigas – algumas vezes.
De 2019 para 2020, quando estava morando em Paris, fui passar as festas de final de ano na Galícia, onde já havia estado anteriormente. A família do Juan, lá, de certa forma, também se tornou um pouco a minha família. Quando vi, já estava até sendo xingado pela “madrecita”. Então veio a pandemia e, quando voltei para o Brasil, salvo por duas raras oportunidades antes do isolamento ser decretado, nos afastamos por meses. Cada qual na sua casa. Acabaram os churrascos, os vinhos, as tortillas, os encontros. Para mim foi bem difícil, pois já vinha de um período de um ano longe de todos amigos brasileiros. O importante, no entanto, é que sobrevivemos. E de todas as maneiras. Afinal, foram mais de 650 mil mortos no Brasil. Uma tragédia.
Então, ao olhar para trás, me dou conta que essa sobrevivência diz respeito a muitas situações e condições. As complexidades que envolvem as relações humanas são tantas que, percebo por mim, aos poucos, prefiro até ir me fechando em mim mesmo em vez de apostar em novos encontros. Já me decepcionei tanto, com tanta gente, que prefiro conviver apenas com algumas pessoas mais próximas, a sair por ai socializando como político em época de campanha. Certamente, a maturidade potencializou a introspecção. Nesse processo, a idade vai avançando e as exigências de quem merece compartilhar do meu tempo, cada vez mais valioso, e da minha companhia, também vai aumentando. O meu pequeno universo é exigente. E a mesa da minha cozinha, embora grande e sempre disposta a receber os amigos, é cada vez mais seletiva. Nesse meu tempo e espaço, o Juan, assim como a Dani e o Pedro, tem acento garantido. A não ser, claro, que ele faça questão de assar a carne.
Por isso, o dia de hoje não é pouca coisa. Nessa segunda-feira, além do aniversario desse irmão que a vida me deu, acima de tudo, comemoro a certeza de que, em algumas pessoas, ainda vale a pena apostar. Valeu, irmão, feliz aniversário.
I. BOCA MIGOTTO