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Olhos Abertos por Ronaldo Lippold

Um conto de Ronaldo Lippold

Aquela tarde de sol quente, beirando os trinta graus, talvez tivesse passado de forma despercebida para a maioria dos transeuntes do calçadão de Santa Maria.

Muitos estudantes em suas coloridas vestimentas de bixo. Senhores com olhares cansados que surgiam pela movimentada e tradicional artéria da cidade Universitária na ânsia de ainda encontrar um último grupo de amigos vivos. Vendedores de jogo do bicho, músicos mambembes, artesões guaranis, ilusionistas argentinos na busca por “una plata” desaparecida e uma série de combalidos pela sorte faziam uma Babel de sons e imagens naquela cosmopolita cidade situada no centro do Rio Grande.
Estevan flanava em sua indumentária completa de linho branco, com pequenos riscos azuis turquesa, complementados com um elegante chapéu Panamá bege e sapatos esportivos na mesma cor. Era um garboso jovem da alta sociedade e que destoava dos demais, tanto no vestir como no andar. Ereto e de nariz empinado, ele parecia ter saído de um quadro renascentista. Diriase mais tarde que ele flanava e os outros moviam-se.
Quando passou à esquerda da Praça Saldanha Marinho, perto do memorial da Kiss, sentiu a presença quase invisível de uma mulher sentada em frente a uma pequena mesinha. Uma mulher velha, porém com alguns últimos traços de uma beleza ainda não corrompida pelo tempo. Morena, mas com uma tez diferente das encontradas por estas bandas, com um frondoso dente de ouro que ressaltava a cada sorriso que transcendia de seu rosto grande e bem delineado. Uma cabeleira que inundava as costas e um pescoço repleto de colares e missangas multicoloridos davam um visual enigmático àquela velha senhora. Estevan estaqueou, surpreso pela forma como a mulher lhe dirigia um olhar de súplica, ou talvez, de misericórdia.

Uma cigana! Ele balbuciou quase para si. Lembrou-se da última vez que teve contato com uma: Em Paris, no inverno passado.

Após, ficou dias pensando nas clarividências despejadas de imediato numa miscelânea de romeno com francês, logo que ele colocou vários francos em suas ágeis mãos. Não deu muita atenção, mesmo que a princípio tivesse ficado bastante excitado com aquele manancial de informações e clarividências sobre seu passado e futuro. Posteriormente, com o desenrolar dos dias, seu pensamento refluiu para o cômodo da vida e esqueceu de tudo que lhe fora antecipado. Mas lembra de um adágio que ficou durante um tempo retumbando em seu eu mais profundo: uma cigana, num futuro próximo, num confim da América, iria lhe dizer verdades inauditas e aterradoras. Aquela lembrança lhe gelou as têmporas enquanto um calafrio percorreu a espinha em toda sua extensão. De uma forma quase autômata, Estevan aproximou-se, esgueirando-se entre alguns cachorros que cochilavam modorrentos ao sol. Assim que se recompôs, a cigana apontou uma cadeira à frente da rústica mesinha, soltou um sorriso de brancos dentes, encimados por um par de olhos verdes que contrastavam com sua pele enrugada e ressequida pelo sol. Estevan, com um arrepio que lhe erigiu os cabelos da nuca, abriu a carteira e deixou uma nota de bom valor ao lado de uma cabaça de cobre com algumas poucas moedas. Aquelas palavras ressoaram de sua boca como se não lhe pertencessem, tivessem sido retiradas ao acaso, talvez como um ventríloquo sem o criador:

– Mostre-me a verdade, cigana!

A mulher balbuciou uma série de rugidos em uma língua secular com uma voz baixa e gutural que terminava em pequenos sibilos chorosos.
– Durante os próximos três dias e noites, a contar a partir da lua cheia, seus sonhos estarão trazendo a sinopse de suas vidas passadas e a partir deste momento sua vida mudará. Para o paraíso ou um dos círculos do inferno! O caminho assim como os dados estão lançados.

Uma mão levantada de forma suave e melódica se abriu e dela rodopiaram três dados que balançaram e caíram todos com o número seis à mostra. Estevan olhou aqueles números cabalísticos e mirou a figura mística impassível da cigana. O verde de seus olhos havia passado para um branco fosco que tomava conta de seu globo ocular. Aquela visão mística fez com que ele entrasse em uma espécie de transe: mundos pregressos começaram a surgir como num turbilhão voraz e vozes esquecidas ressoaram em seus ouvidos como num filme antigo. Após alguns segundos, talvez minutos ou horas nesse frenesi, ele sentiu uma frouxidão em todo o corpo, uma sensação de esgotamento mental e psíquico e um torpor nunca dantes percebido. Quando retornou a si, não havia mais ninguém em sua frente e o movimento de pedestres reduzira bastante. Ele de imediato colocou a mão no bolso do paletó e sentiu agradecido o volume de sua carteira. Seguiu a passos largos, desconfiado, para sua residência na Alameda Carlos Kruel. Tomou um relaxado banho, um manjar apropriado ao verão, acompanhado de um restaurador vinho verde português e, após olhar pela janela, constatou que seria uma noite de lua cheia. Teve um sono tranquilo até às duas da manhã quando acordou com a sensação de que alguém lhe chamara:
– Estevan, Estevan…
Olhou ao redor e nada viu. Viu apenas uma réstia da lua que invadia mansamente seu quarto. Após tapar o corpo com o lençol decaído, voltou a dormir. De repente, como se entrasse num túnel de vento, um transporte para outra dimensão se tornou mais forte e arrebatador. Era um homem diverso. Voava num apertado e diminuto avião. Quando olhou para o lado, visualizou uma pequena bandeira em uma das asas. Era a bandeira japonesa! Sentia como se estivesse em uma película antiga e o ator principal, o piloto, era ele. Embora com uma aparência completamente diferente, com traços puramente nipônicos, ele sabia que era ele. Tinha uma certeza perturbadora. Leu no macacão escuro, acima do bolso superior direito: Akiro Nakajima – tenente aviador.
Apesar de toda a confusão, sabia o que tinha que fazer. Voava em grande altitude, ladeado por mais cinco aeronaves com a bandeira do sol nascente. Abaixo, um mar revolto azul turquesa de uma beleza singular e que todos os pilotos observavam de forma atenta com poderosos binóculos.

A presença dos imponentes navios singrando ondas que se enfumaçam contra suas quilhas eram dignas de um pintor holandês. Três porta aviões com a famigerada bandeira americana lideravam a frota.

Seu avião era o segundo na formação que seguia muito acima daquelas gigantescas embarcações. Quando o líder fez um sinal com a mão esquerda e desceu numa manobra imediata, todos o seguiram o seu rastro. Aquelas pequenas aeronaves atulhadas de explosivos pareciam que soltariam sua frágil fuselagem, mas não, como uns bólidos se arremessaram de forma suicida ao maior dos porta-aviões. O tremor que sentia pelo atrito com o vento marítimo contrastava com o sangue que palpitava em suas veias quase estourando-as. Seus olhos pareciam que iriam saltar das órbitas. Nesses segundos aterradores, pensou em sua filha de seis meses e que mal pôde ver em função da guerra, nos seus pais trabalhando a terra em uma pequena plantação de arroz na ilha de Honshu, e na sua amada mulher, motivo maior daquele último gesto. Um revival que durou milésimos de segundo e que foi logo precedido do imediatismo da hora. Quando a formação foi avistada, cerca de duzentos metros acima dos destroieres, porta-aviões e pesados navios-tanques americanos, uma constelação de fogos surgiu em sua direção.
Os japoneses lançaram seus caças em direção ao alvo e foram surpreendidos por aquela chuva de balas e mísseis que fizeram explodir o avião a seu lado. Conseguiu ver o rosto agonizante de seu compatriota em um Mitsubishi repleto de chamas espatifar-se no oceano Pacífico acerca de cinquenta metros do comboio. Um outro avião teve o mesmo destino e explodiu em pleno voo. Era a aeronave de seu primo, o jovem Narita, no alto de seus vinte anos, segundo sargento da esquadrilha japonesa em seu primeiro voo após a tão sonhada promoção. Uma velocidade impressionante em queda livre! Ele era um kamicase. Um suicida voador. Com gritos venerando o imperador Hiroito mergulhou em queda livre. Lembra somente da bola de fogo e dos urros de centenas de vozes consumidas pela decomposição de combustível, sangue e aço retorcido. Estevan acordou com um grito descomunal. Um banho de suor frio tomava conta de seu corpo. Seu coração batia descompassado, num atropelo que lhe engasgava a garganta. Naquele dia, mal conseguiu arredar o corpo para longe de casa. Ficou ensimesmado, pensando na mensagem embutida naquele pesadelo aterrorizante.
Na noite seguinte, foi dormir tarde com medo de cerrar os olhos. Lutou contra o sono durante horas. Quando pressentiu, estava em outra época, talvez em meados do século VIII. Ele corria a cavalo, seguido de um séquito de cavalheiros com pesadas armaduras e estandartes coloridos. Parecia uma região campesina da Espanha, cultivada com verdes olivais. Logo se aproximaram de um mosteiro antigo e enorme, coberto com um volumoso teto de palha.

Uma turba de homens rudes, morenos e nervosos, gritando palavras de ordem cercou um grande casarão fechado coberto com capim Santa Fé e uma tocha incendiária logo foi jogada.

Em minutos, a fumaça preta começou a subir, ao mesmo tempo em que urros misericordiosos e golpes secos nas paredes de madeira irrompiam de forma assustadora.
Uma menina desgrenhada de uns dez anos, uma das únicas ao lado de fora do celeiro, agarrou-se ao cavalo do líder, justa – mente ele, e começou a gritar pedindo clemência: – Senhor, solte-os, são apenas mensageiros da fé! O mouro jogou seu corcel em direção à criança e num átimo sua cimitarra seccionou o pescoço da escabelada criatura. Um jorro impressionante de sangue escuro esguichou de seu pescoço infantil. Em minutos, estava tudo acabado. Um monte de madeiras escuras e retorcidas e um acre cheiro de carne queimada dominavam aquela planície. Tudo em nome da fé, gritavam os mais excitados. Alá esteja convosco, ressoavam num monocórdico mantra. Mais uma vez, Estevan acordou atônito, dilacerado pelos acontecimentos extraordinários daquela noitada aterradora. Dessa noite em diante, Estevan teve uma série de crises nervosas e não conseguiu mais fechar os olhos. Suas olheiras profundas demonstram o medo que sente em pegar no sono. Um calendário rabiscado na parede do hospício indica que ele não dorme já transcorre seis anos.

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