por Boca Migotto
Sempre quis fazer História. No ensino médio, na minha época também conhecido como “segundo grau”, a matéria era uma das poucas que me seduzia. Não por acaso, também uma das matérias que melhor me saia nas avaliações. E olha que meus professores de História, no geral, nem eram uma Brastemp. Pronto, denunciei minha idade por duas vezes em um único parágrafo.
Mas voltando à História, precisei chegar aos quarenta e sete anos, fazer uma especialização, um mestrado e um doutorado para, enfim, me aventurar pelos corredores das Humanidades. Voltei à graduação a convite de um professor da PUCRS, o Charles Monteiro, que me convenceu – bem fácil, diga-se de passagem – a ingressar no curso. E lá estou, compartilhando minhas primeiras quatro disciplinas do curso com colegas que têm idade para serem meus filhos. Um deles, inclusive, ainda menor de idade.
Eu não sou um daqueles que se considera um homem adulto, maduro e bem resolvido na minha adultez. Longe disso. Na verdade, nem levo isso muito a sério. Ainda hoje custo acreditar que estou beirando os cinquenta anos. Cinquenta anos, gente! Quase meio século de vida. Este, sim, um privilégio que me permitiu viver muitas experiências de vida. Aprendi a ler, sobrevivi ao bullying do ensino médio, ingressei numa universidade, me graduei, não fui (totalmente) tragado pela porraloquice da adolescência, avancei nos estudos, morei na Inglaterra, onde aprendi inglês e estudei cinema, além de lavar muita louça, e fiz parte do meu doutorado em Paris, na Sorbonne. Não é pouca coisa para um filho de pedreiro semianalfabeto.
Meu pai, já escrevi por aqui, sempre quis estudar. Seu sonho era ser engenheiro. Meu avô não o deixou. Mal permitiu que ele se alfabetizasse. Naquela época era preciso trabalhar e a roça demandava mais braços e pernas que uma cabeça pensante. Para o meu avô, um filho mais estudado que o pai, inclusive, era percebido como um problema em casa. Os filhos tinham que ser mais “burros” que o progenitor. E talvez seja preciso dizer que meu pai era de outra época. No mínimo, umas três gerações antes de mim. Hoje, se vivo, ele estaria com cento e três anos de idade. Calculem, eu estou com quarenta e sete. Mas seu Olindo – de fato um ser humano lindo – não era de desistir fácil. Na impossibilidade de projetar prédios, ele os construiu. E fez isso em uma época quando um mestre de obras ainda podia projetar, toscamente que fosse, alguns prédios que não contavam com a assinatura de um engenheiro civil. Ainda mais na Carlos Barbosa de 1950.
Meu pai, embora nunca terá seu nome indicando alguma rua da cidade onde viveu, foi um dos responsáveis por construí-la. Como pedreiro foi responsável pelo primeiro edifício da cidade, e tantos outros depois, pelo hospital da cidade, pelo colégio, esteve envolvido na construção da igreja matriz, da Tramontina, quando esta ainda engatinhava, e mais uma pá de edificações em toda região da Serra. Ainda hoje encontro pessoas que me contam que o pai construiu suas casas e estas estão ainda lá, de pé, firmes e fortes. “Não se constrói mais com a qualidade que o teu pai construía”, me dizem.
Mas seu sonho ficou pela metade. E ao ter um filho imaginou que poderia realizá-lo através de mim. Sou filho único, portanto, era sua única chance. Por isso, embora vivêssemos uma vida bem simples – não tínhamos carro, não íamos para a praia, nossa primeira TV colorida chegou quando eu já tinha quase dez anos de idade –, dinheiro para pagar os meus estudos nunca faltou. Às vezes rolava até alguma surpresa inusitada. Ainda lembro o dia que cheguei em casa da escola e ele tinha me comprado uma máquina de datilografar. E me matriculado no curso que era dado pelas freiras do colégio onde eu estudava. Asdfg, asdfg, impossível mesmo esquecer. Tenho até diploma.
E assim papai me pagou os estudos até eu me formar publicitário. Mesmo que ele nem soubesse direito o que um publicitário fazia – quando prestei vestibular nem eu sabia –, mesmo que a minha opção não tenha sido pela engenharia. Aliás, teria sido um péssimo engenheiro. Entender que o meu caminho era outro evitou que alguma ponte caísse por ter sido mal projetada, tenho certeza absoluta disso.
Na família dos Migottos, ao contrário, e muito por responsabilidade dele, o que mais tem é construtor, engenheiro e arquiteto. Mas, quis o destino, após perceber que a publicidade não era para mim, que eu resolvesse ser cineasta. Um filho de pedreiro que quis fazer filmes. E pior que fiz. Fiz alguns filmes, programas para TV, e até escrevi alguns livros. E até estudei na Sorbonne, vejam só. Mas nunca deixei de ser o filho do pedreiro. Nem para mim, nem para aqueles que assim me conheceram. Quando fui para o primeiro encontro com a minha orientadora francesa parei em frente ao imponente prédio da Sorbonne, olhei para ele, para as pessoas que passavam por mim, lembrei de onde vinha, respirei fundo para acreditar que lá estava, e encarei aquele lugar amparado pelo meu, então, ainda macarrônico francês.
Por conta da nossa diferença abismal de idade, o conflito de gerações entre mim e ele era, também, abismal. Quase não havia diálogo entre nós. Por isso, foi minha mãe quem me explicou coisas sobre o sexo, quando a necessidade dessas conversas bateu à porta. Apesar disso, e de não ter me formado engenheiro, eu fiz questão de construir pontes com o meu pai. Estas, pontes duradouras. Ele gostava de contar histórias do passado e gostava de passear de carro pelo interior da cidade para ver as casas antigas. Depois dos meus dezoito anos ganhei um carro, que era o carro da família, e levava ele para passear. Esses passeios eram verdadeiras aulas e aproximavam um pai de setenta e poucos anos de um filho adolescente. Não é por acaso que eu curto histórias, curto a História e tenho uma queda particular por coisas antigas. Casas em especial. Quem conhece meus filmes sabe que muitos tratam da memória dos mais velhos, da memória das casas velhas e das histórias da memória.
Hoje, aos quarenta e sete anos, depois de viver tantas experiências, mas ainda mais novo que o meu pai quando me teve, volto à graduação, sento ao lado de adolescentes que me olham com certa estranheza, para finalmente cursar uma graduação de História. A história estudada pelo ponto de vista da História. E o que motivou o professor citado anteriormente a me enviar um convite para que eu pensasse seriamente em ingressar na PUCRS, foi, justamente, o meu passado como cineasta. Após ler minha tese de doutorado – ele participou da minha banca – e ver meus filmes, me disse que eu tinha – tenho – a História no sangue. Pudera, no meu sangue corre o DNA do seu Olindo.
Confesso que não é tão fácil voltar para os bancos da faculdade nessa fase da vida. E nem falo pelo etarismo, mas porque um turbilhão de memórias passam pela minha cabeça e me fazem refletir sobre o passado. Ao mesmo tempo, não sou mais um adolescente que, na sua época, tinha todo o tempo do mundo para ler e estudar. E muitas vezes nem aproveitava. Nessa altura da vida é preciso conciliar os intermináveis textos, provas, trabalhos, com a vida profissional, com a criação – até onde posso ajudar – do meu enteado, com o tempo que é preciso dedicar à minha companheira e a mim mesmo e, inclusive, dar conta das tarefas de casa. Afinal, nem a roupa, nem a louça se lavam sozinhas. Aos quarenta e sente anos tudo passa a ser mais urgente. Por mais que me sinta jovem, por mais que – espero – ainda tenha muita vida pela frente, esta torna-se cada vez mais imperativa. A contagem regressiva parece acelerar quando nos aproximamos de meio século de vida e ainda há muito o que quero fazer antes de partir.
Por isso está valendo muito a pena voltar à faculdade como estudante de graduação. Sempre gostei de estudar e, em particular, as disciplinas de Humanas sempre me seduziram. Se tivesse tempo e dinheiro faria, ainda, uma faculdade de História da Arte, paralelamente ao curso de História. Ah, a vida é tão curta para tudo que eu gostaria de estudar e viver. Mas quem sabe. Nos meus planos há espaço para outro doutorado, mais um livro, que já estou escrevendo e é sobre, justamente, o envelhecimento, e, claro, filmes. Muitos filmes.
Esses dias fiquei sabendo que uma senhora de quase noventa anos, de Bento Gonçalves, defendeu sua dissertação de mestrado. Se eu pensar em tudo que fiz em pouco mais de vinte anos – sim, porque meus primeiros vinte anos foram mais de festas e tentativas de me localizar no tempo e no espaço – imagino quantas bancas de doutorado ainda posso enfrentar até chegar aos noventa e, finalmente, me aposentar. São, pelo menos, mais quarenta anos pela frente. Por enquanto, enquanto não chego aos noventa, vou mergulhando na História. Um passo depois do outro, piano, piano. Que dádiva é viver. Mas como canta uma canção por ai, para viver “é preciso saber viver”. E isso foi o que melhor aprendi do meu pai. E da própria vida.
PS: e já que estamos falando de História, estou lançando meu terceiro livro e segundo romance. Chama-se “A última praia do Brasil” (Editora Bestiário, em parceria com a Rede Sina). Se passa na Barra do Chuí, na fronteira com o Uruguai, e conta a história de Pedro, um professor de História, aposentado, que para lá se muda junto com a esposa a fim de viverem seus últimos anos em paz e na tranquilidade do isolamento que só a última praia do Brasil pode oferecer. Esse livro fala sobre o luto, sobre o envelhecimento, sobre um pai que precisa se reaproximar do filho, e também reflete sobre nosso lugar nesse vasto continente chamado América do Sul. Quem tiver interesse em lê-lo, compartilho o link para a compra. Até o final do mês de agosto ele está saindo por apenas 54,00 reais, preço promocional da pré-venda. Muito obrigado.
I. BOCA MIGOTTO