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MAR ABERTO | Cinquenta

por Boca Migotto.

Esse é o número de textos que já publiquei no site da Rede Sina. Cinquenta. Até eu me surpreendi quando percebi. Tudo começou com um convite da Mel Inquieta, também conhecida como Melina Guterres. Escreveu-me ela, um dia, dizendo que acompanhava minhas publicações no Facebook e me considerava uma pessoa interessante para escrever para a Rede Sina. Fiquei feliz, claro. Não é sempre que alguém nos bate à porta – no caso, chama no Whatsapp – com um convite assim especial, reconhecendo nosso trabalho, nossas opiniões, nosso posicionamento frente à sociedade. Espero que a Mel não tenha se arrependido. Se isso ocorreu, ao menos até agora nada me foi informado. Por isso, sigamos com o texto de número 50.

Nessas cinquenta publicações escrevi sobre tudo. Viagens, países, política, amizades, amor, costumes, família, livros, cinema, cultura no geral, pandemia e enchentes. Até uma carta aberta à comunidade da minha cidade natal eu publiquei por aqui. Um amigo de infância me disse, outro dia, que eu carrego um alvo nas costas. Como assim, perguntei. Ele me explicou que, principalmente pelas coisas que escrevo, provoco as pessoas e estas, na incapacidade de me responderem no mesmo nível – não que eu considere o meu nível assim tão elevado – me atacam pelas redes. O medo dele é que um dia os ataques tornem-se físicos. Confesso que isso me fez pensar.

Afinal, por causa das minhas ideias já tive que abrir mão do convite para ser o patrono da feira do livro da minha cidade natal e, mais recentemente, um perfil fake divulgou meus dados pessoais em um chat onde estávamos discutindo uma determinada temática política. A vida seria tão mais tranquila se apenas ficasse na minha e fizesse de conta que não há uma extrema-direita sedenta em destruir a nossa democracia e aniquilar artistas, professores, cientistas e minorias. Mas eu acho que o convite da Mel me foi feito justamente por conta dessa minha mania em polemizar. Como professor, e aluno que fui e sigo sendo até hoje, sempre acreditei que a provocação é a mais importante contribuição que um mestre pode deixar, como legado, aos seus alunos. Fiz isso por dez anos. Provoquei meus alunos a superarem a mesmice da primeira ideia. Ao fazer isso tive sucesso algumas vezes. Certa vez, até um Kikito isso rendeu. Noutras não, fui desligado da universidade onde eu me graduei, fiz mestrado e fui professor por mais de uma década. Mas apesar dos fracassos, traumas e ameaças, sigo provocando. Como me disse um outro amigo, toda vez que ele acessa o Facebook estou lá, “tretando”.

Como evitar?

Sigamos.

Essa semana, depois de um mês longe de casa, voltei para Porto Alegre. Foi um retorno temeroso, coração saindo pela boca, peito apertado. Acompanhei a minha cidade ser engolida pelas águas através da TV e das redes sociais. Tinha medo do que encontraria agora, após as águas baixarem e revelarem sua força silenciosa. Ao longo desse mês, em algum momento, li que uma amiga escreveu que se sentia “constrangedoramente seca”. É como me sinto. Envergonhadamente seco. Sei de amigos e colegas que perderam tudo. Casa, trabalho, dinheiro, memórias. Bares que eu frequentava foram destruídos para sempre, o aeroporto fechado, os dois grandes estádios de futebol da cidade submergidos, livros molhados, o cinema que eu mais frequentava arrasado. Até o estoque de livros do escritor Rafael Guimaraes, sobre a enchente de 1941, foi atingido pela versão 2024 da mesma tragédia. Vimos a capital do nosso estado, já bastante maltratada por anos de má administração, ser tomada pela mesma natureza que, no passado, invadimos com nossos aterros gananciosos. Mas a culpa, claro, não é da natureza. Por mais que sigamos negando, lá no fundo sabemos que somos nós os responsáveis. Portanto, de nada adianta buscar explicações irreais, pois o fato está consumado e virou manchete nos jornais de todo o país. Até na ONU falaram de nós. A dita “cidade da inovação” morreu afogada por falta de manutenção.

Mas não só isso. Como se isso não fosse muito. Como se isso não fosse tudo. Sentados em frente às nossas TVs, munidos de nossos celulares, acompanhamos incrédulos o inevitável deslocamento das águas derrubar pontes e morros na Serra Gaúcha, arrastar casas, fábricas, bairros, cidades inteiras, afogar pessoas, seus sonhos, seus empregos e suas memórias. Até os mortos (e enterrados) as águas levaram no Vale do Taquari. E nós permanecemos inertes. Um apocalipse de proporções bíblicas descendo os morros em nossa direção.

Sabíamos que as águas desse dilúvio climático chegariam à capital, mas apostamos que não bateriam as nossas portas. Embora sempre soubéssemos que o caminho das águas passava, justamente, pelo nosso quintal, nada fizemos além de arrastar portões de ferro enferrujados e cobrir suas frestas com sacos de areia. Repito. Reforço. Reafirmo. A cidade da inovação não foi capaz de tapar os buracos da sua própria incompetência. Imagino que não há nenhum aplicativo para isso. Nenhuma startup especializada em isolar comportas mal cuidadas pela (des)administração municipal.

Forçando a barra, e até pedindo licença para ironizar a (in)competência do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo – e sem deixar de lembrar do seu antecessor, Nelson Marchezan Jr. – pergunto se, ao longo dos quatro ou cinco dias que separaram a capital das imagens devastadoras que as chuvas produziram na Serra Gaúcha, e sabendo de antemão, já deste setembro do ano passado, que as comportas do sistema contra enchentes falharam naquele momento, não dava tempo para conclamar os amigos da Melnick, Goldenstein, Cyrano e Majorana para, com seus caminhões betoneiras, literalmente concretar as aberturas do Muro da Mauá. Não são justamente estes os especialistas em concretar a cidade? Por menos inovador que isso possa parecer, e apesar de não ser engenheiro, deduzo que havia tempo hábil para isso. E para o concreto secar (sic). Se ao menos isso tivessem feito, imagino que a água não teria invadido as casas de bombas, estas não teriam falhado na sua função de evitar que a água levasse embora parte de Porto Alegre e, consequentemente, seca estaria a capital. Percebam que nem demando uma solução inovadora.

Claro, nada disso teria evitado a tragédia que se abateu sobre a Serra, o Vale do Taquari e, possivelmente, parte da Região Metropolitana. Mas a capital – pelo menos a capital – física e simbolicamente resistiria para, a partir dela, resgatar o que havia sobrado da dignidade gaúcha. Mas não, nessa tragicomédia que nem o mais ácido dos escritores poderia ter imaginado, até o prefeito foi expulso da sua casa e viu a própria prefeitura ser inundada. Teve que pendurar seu colete Volodymyr Zelensy em um cabide desconhecido. A quantidade de situações risíveis, infelizmente, foram sufocadas por milhares de gritos desesperados. Mudos de tão desolados. Não há nada de engraçado na dor e no sofrimento que a arrogância e o negacionismo dessa administração provocou a tantos porto-alegrenses.

Ao regressar à minha casa, essa semana, vi uma capital humilhada, psicologicamente traumatizada, que mesmo após recolher todo o resíduo descartado nas ruas, lixo que outrora foi parte da vida dos seus habitantes, ainda seguirá por décadas ruminando as consequências dessa enchente. Milhões de reais se perderam, bilhões de reais serão necessários para se reerguer a cidade e milhares de pessoas abaladas seguirão lembrando das cenas impressas em suas retinas como um pesadelo que se atualizará toda vez que o céu escuro avançar sobre o Guaíba. Nunca mais dormiremos tranquilos quando a chuva tocar nossos telhados. A Porto Alegre atingida pelas águas – sim, por que agora há a Porto Alegre dos secos e aquela dos molhados – está emoldurada por imagens de guerra. Carros abandonados, barracas montadas à beira das estradas e avenidas, pessoas que, como zumbis, caminham perdidas pelas ruas embarradas à procura de explicações. E paira no ar dessa parte da cidade, onde localiza-se o mesmo bairro que o mesmo prefeito insistia em gentrificar, um aroma de água podre. Como aquele cheiro de flores murchas e águas apodrecidas que exalam a morte quando visitamos um cemitério.

Explicações, claro, há muitas. Todas. São intermináveis. Responsabiliza-se os prefeitos que deixaram a administração da cidade há mais de quinze, vinte anos. Afinal, a culpa é sempre do PT. Do Lula e da Dilma, certamente. Culpa-se a falta de recursos financeiros. Explica-se que o projeto anti-enchente, construído nos anos 1960 e 1970, estava defasado. Muito antigo, nada inovador. Credita-se a falta de manutenção, o desmonte dos setores públicos e a destruição do meio ambiente a “outras pautas”. Obviamente havia outras pautas. A pauta da direita e da extrema-direita neoliberal, que frente aos seus olhos apenas enxerga o lucro da iniciativa privada, composta, invariavelmente, por amigos e negócios. Essa história é antiga. Concreta-se a cidade em nome de uma modernização esquizofrênica que, agora, se presta como metáfora para o nosso próprio enterro. Estamos sepultados por tanto concreto e asfalto que não apenas não respiramos mais, mas também não enxergamos, não pensamos e, sobretudo, não reivindicamos nosso direito a uma cidade mais humana.

Que ao menos consigamos votar antes de esquecermos que tudo isso tem, sim, responsáveis. E eles são políticos e empresários (não todos, obviamente, mas vários deles). Os mesmos políticos que assumiram este estado e esta capital, há anos, com apenas um objetivo: privatizar tudo. Viva a iniciativa privada, que sempre privatiza os seus lucros, mas corre para os braços do governo (o mesmo governo que eles dizem ineficiente) quando a água bate na bunda. E a água sempre bate na bunda. E aprendemos da pior forma possível, ela também alcança o pescoço. E nos cobre, nos afoga, nos tira o ar. A todos nós. Também a eles. Se não agora, se não dessa vez, um dia. Por mais bilionários que tenham ficado, a casa de todos, a nossa e a deles, ainda se chama Terra. Não uma casa, afinal, a casa a gente reconstrói. De uma casa a gente se muda. A Terra não. A Terra somos nós. E é só uma, e é única. Não tem para onde fugir. Por isso, e por tudo, não esqueçamos. Eles existem e lá estão para cuidar da Terra, e de nós, porque nós, lá, os colocamos.

Obrigado por me acompanharem por aqui ao longo desses cinquenta textos. Que sejam cinquenta anos.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Em 2023 lançou seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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