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Figura 1: Reprodução capa. Fonte: DELFOS.

MAR ABERTO | A Enchente de 1941 vista (e mostrada) pela Revista do Globo

por Boca Migotto

Fazia tempo que não conseguia escrever para a Rede Sina. O ano começou e foi me levando junto, quase como numa enxurrada, quando na incapacidade de tomar as rédeas da situação, apenas nos resta tentar manter o nariz fora d’água, respirar, e torcer para que a correnteza nos entregue a salvo em alguma margem seca. A analogia com a enxurrada não é para menos. Enquanto escrevo esse texto introdutório, na TV, ligada desde cedo, imagens dramáticas ilustram um Rio Grande do Sul se desfragmentando frente nossos olhos. Mais um vez, a sensação é de impotência.

A barragem da Usina Hidrelétrica 14 de Julho acabou de romper parcialmente e ninguém tem a menor ideia do que esteja acontecendo lá para os lados do Rio das Antas. Isso porque estamos todos ilhados. Quem está onde estou – Bento Gonçalves – não consegue chegar lá. Quem está lá não consegue sair. Toda a Serra Gaúcha está retalhada por pontes destruídas, estradas bloqueadas, asfaltos rachados. Nada diferente de como está praticamente todo o Estado. O cenário é de guerra e lembra, muito, o que ocorreu em Mariana ou Brumadinho. É nesse contexto que lembrei de um artigo que escrevi para a disciplina de História em Fontes Visuais, do Curso de História da PUCRS. Nesse artigo faço uma análise sobre a cobertura da lendária enchente de 1941, realizada através das páginas de uma edição extra da não menos lendária, Revista do Globo.

Era outra época, as cidades eram menores e, portanto, os prejuízos também. Mesmo assim, essa se manteve como a pior enchente do Rio Grande do Sul ao longo de décadas, muito em função de ter avançado Porto Alegre adentro, inundando as ruas do Centro da capital. Ainda não sabemos se a enchente de maio de 2024, que está acontecendo nesse exato momento, renderá imagens tão fortes e marcantes, da capital do Estado tomada por águas e barcos, como ocorreu na primeira metade do século passado. Mas, infelizmente, nesse momento já sabemos que o recorde de 1941 foi batido, com folga, pelas águas contemporâneas.

Também ainda não sabemos o que virá pela frente. O quanto as águas da barragem rompida acrescentarão à tragédia que já é a maior jamais vivida pelo Estado, se outras barragens colapsarão e o quanto tudo isso, junto, afetará a capital num futuro bem próximo. E o que tudo isso poderá significar depois que tudo isso passar e as águas baixarem. Por enquanto, então, resolvi compartilhar o artigo sobre a enchente de 1941 para quem quiser compreender melhor aquele momento. Uma coisa é certa, se lá atrás tínhamos apenas revistas, jornais e rádios para cobrir o evento, hoje, além das câmeras profissionais, os celulares fazem chegar até nossos olhos imagens surreais.

Que ao menos possamos sair dessa tragédia mais conscientes sobre nosso papel, e responsabilidades, nesse planeta. Boa leitura.

A Enchente de 1941 vista (e mostrada) pela Revista do Globo

As enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul, em agosto e setembro de 2023, chamaram a atenção por seu poder de destruição. Cidades inteiras do Vale do rio Taquari foram devastadas pela cheia do rio, caracterizando este, segundo a imprensa, como o maior desastre ambiental da história do Rio Grande do Sul. Que o diga a pequena Roca Salles, praticamente devastada pelas águas revoltosas do Taquari. Em Porto Alegre, onde o Guaíba recebe as águas de cinco grandes afluentes, inclusive do próprio rio Taquari, no final do mês de setembro as comportas do famigerado Muro da Mauá tiveram de ser fechadas. Isso tudo provocou o imaginário da população, ainda traumatizada pela enchente de 1941, e me fez lembrar das entrevistas que realizei, como roteiristas e diretor, para o documentário Rio das Antas – Vale da Fé, em 2008, para a RBS-TV. Naquela ocasião, diversos personagens comentaram sobre a enchente de 1941, quando as águas dos rios Antas-Taquari levaram casas na região enquanto, na capital, as águas do Guaíba deixaram o centro da cidade completamente inundado. Quer dizer, assim como se repete agora, em 2023, também em 1941 a enchente se deu através da mesma dinâmica. O Guaíba é passagem obrigatória das águas de, ao menos, quatro importantes rios gaúchos – Gravataí, Sinos, Caí e Jacuí, sendo que o Jacuí recebe as águas do, já grandioso, Antas-Taquari – antes que elas corram para a Lagoa dos Patos e, de lá, para o oceano. Portanto, as mesmas águas que atingem as cidades margeadas por estes rios que desaguam no Guaíba, a priori, anunciam o que estará por ocorrer na capital, alguns dias depois.

Na época da grande enchente de 1941, o mundo estava em guerra (1939-1945) e, em abril, portanto, um mês antes de Porto Alegre ser engolida pelas águas do Guaíba, Adolf Hitler comemorava 52 anos de idade tendo praticamente toda a Europa sob seus pés. Faltava, contudo, tomar a Inglaterra. Nesse momento, o Brasil ainda se dizia neutro e seguia longe do conflito, mas os Estados Unidos viviam um dilema, uma vez que eram pressionados, pelos aliados europeus, a enviarem tropas para o velho continente a fim de contribuírem com a resistência inglesa. Se o Reino Unidos caísse, toda a Europa estaria nas mãos do nazismo. Já em Porto Alegre – essa província longe demais das capitais – os cinemas localizados na rua da Praia, apelidada de “Pequena Broadway”, atraiam os habitantes para o centro da cidade. Por aqui, ao contrário da Europa, naqueles dias o clima era de Festa. O Brasil era governado pelo gaúcho Getúlio Vargas, que acabara de completar 61 anos em 19 de março. Fato que mereceu uma comemoração oficial no Teatro São Pedro. A população de Porto Alegre, naquele ano, segundo o Censo de 1940 realizado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, era de apenas 272 mil habitantes e a vida intelectual da pequena capital do Rio Grande do Sul girava em torno da Revisa do Globo, na época, uma das maiores editoras do Brasil.

Foi mais ou menos nesse contexto que teve início a maior tragédia da história de Porto Alegre. Segundo o jornalista e escritor, Rafael Guimaraens (2023), em seu livro A enchente de 41:

[…] as chuvas chegaram com a Páscoa de 1941. A partir da quinta-feira santa, 10 de abril, uma sequencia de dias chuvosos afetou vários municípios do interior do Rio Grande do Sul, alagou lavouras, mas não chegou a perturbar a tranquila e festiva Porto Alegre. (2023, p. 13).

Claro, assim como está ocorrendo este ano, por receber as águas dos seus quatro afluentes, a região metropolitana é quase a última região a sentir os efeitos das chuvas. Importante ressaltar, ainda, que o fenômeno climático conta com o vento Sul, responsável por represar a Lagoa dos Patos e não permitir que todo o volume de água escoe para o oceano. Naquela época, ambos fenômenos se encontraram mas, diferentemente de hoje, havia bem menos casas e pessoas para as águas levarem consigo. Na região do Vale do Taquari, algumas das cidades de hoje, ribeirinhas ao rio e que sofreram com as cheias, ainda nem existiam. Outras, como Lajeado, Estrela e Encantado ainda eram pequenas vilas. E mesmo Porto Alegre, como vimos, a população ainda não chegava a 300 mil habitantes. A Porto Alegre de 2023, entretanto, mais que quadruplicou sua população. Hoje, são 1.332.570 pessoas, segundo o Censo de 2022. Por isso, da mesma forma como ocorreu na região do Vale do Taquari, uma enchente como aquela de 1941 seria ainda mais dramática, caso atingisse a capital. Não por acaso a mídia oficial e as redes sociais repercutiram freneticamente imagens do acumulo de água no Rio Guaíba. A população ficou apreensiva e as comportas do Muro da Mauá foram fechadas pela prefeitura.

Nesse sentido, envolvido pela apreensão popular de uma nova cheia atingir a capital, em um momento quando a cobertura do evento é praticamente ao vivo, surgiu a ideia de tentar compreender como se deu a cobertura fotojornalística na década de 1940. Afinal, diferentemente de hoje, sabemos, naqueles anos quarenta ainda não havia televisão – esta chegou ao Rio Grande do Sul apenas no final da década de 1950 –, internet e, muito menos, redes sociais. No entanto, os veículos impressos – principalmente através do registro fotográfico – e as rádios locais, cumpriram seu papel jornalístico de cobrir a tragédia. A Revista do Globo, por sua vez, após cobrir a enchente na sua edição regular de 17 de maio de 1941, aproveitou para lançar uma edição extra, amplamente ilustrada por fotografias de diversos profissionais e amadores, cobrindo o evento nos seus mínimos detalhes. Não apenas na grande Porto Alegre, mas abordando seus efeitos, também, em Pelotas e Rio Grande sem, no entanto, se referir ao Vale do Taquari ou qualquer outra região do Estado. Algumas dessas fotografias da enchente de 1941 são bastante conhecidas. Já fazem parte do imaginário gaúcho, uma vez que são amplamente divulgadas nas redes sociais. Com a tragédia deste ano (2023), estas fotografias ícones passaram a circular com ainda mais assiduidade pela internet. Também Rafael Guimaraes, talvez por conta do apelo momentâneo, aproveitou o momento e relançou seu livro sobre a enchente o qual, inclusive, conta com uma ampla compilação de fotografias da época. Muitas destas publicadas pela própria Revista do Globo na sua já mencionada edição extra daquele ano. Portanto, para compreender o período, a fotografia, como fonte histórica, é crucial.

Para Rouillé (2009), lido através de Monteiro (2016), a fotografia não mostra simplesmente ou adere às coisas, mas designa (corpos, coisas, estado de coisas) e exprime (eventos, sentidos). “É devido à enorme capacidade de designar e exprimir que a fotografia e as mídias conseguem criar o evento a partir do que acontece de mais banal” (ROILLÉ, 2009 in MONTEIRO, 2016, p. 67). Isso apenas é possível, no entanto, se houver um diálogo entre o fotógrafo e o observador – no caso de uma revista, o leitor –, que ocorre através da fotografia, mas que leva em conta todo um amplo repertório de ambas as partes. Ainda segundo Monteiro:

[…] tanto o fotógrafo quanto o observador das fotografias lançam mão de suas iconotecas – estoque próprio de imagens dentro do conjunto de imagens socialmente partilhadas em uma determinada época – para produzir sentido e interpretar uma imagem respectivamente. (MONTEIRO, 2016, p. 67).

Nesse sentido, obviamente, também é preciso perceber o distanciamento temporal da imagem, bem como do editorial – levando em conta o caso da Revista do Globo – o qual, certamente, trará inúmeras outras percepções sobre a imagem oriunda do passado. Proença e Monteiro (2015) ajudam a explicar, ainda, que o fotojornalismo não se constrói apenas a partir do fotógrafo e seu olhar sobre a realidade mas, sim, envolve inúmeros outros atores até que a reportagem completa chegue as mãos – e olhos – dos leitores. Nesse sentido, segundo os pesquisadores, o fotojornalismo é:

[…] um conceito que abarca diversos atores e práticas fotográfica, realizado não apenas pelo fotógrafo que está na cena do acontecimento mas por um conjunto de profissionais em uam instituição vinculada ao campo da comunicação: diretores de redação, chefes de reportagem, editores de fotografia, redatores, [ou próprios] fotógrafos, diagramadores, secretários, arquivistas. O fotojornalismo pode ser compreendido como um produto do trabalho dessa equipe de profissionais mas, também, da ação de outros sujeitos sociais que tencionam este campo da comunicação, como empresários, anunciantes, políticos, censores, etc. (PROENÇA e MONTEIRO, 2015, p. 191).

Justamente por isso, é importante que o método de análise sobre essas imagens leve em conta uma contextualização histórica que deve ir além da imagem em si. Afinal, para além da fotografia, que, por sua vez, já foi construída a partir do recorte intencional de um operador-artista, através de uma aparelho – Flusser o chama de “caixa preta”– há todo um sistema voltado para o aproveitamento dessa imagem a partir de conceitos que rompem com o “simples” objetivo de “dar a ver”. Ou melhor, o “dar a ver”, na sua essência, se refere muito mais a tudo aquilo que está fora-de-quadro, ou seja, aquilo que o recorte do fotógrafo excluiu da própria imagem e, portanto, o receptor não visualiza, que aquilo que foi selecionado, clicado, revelado, editado e publicado. Por isso, para darmos conta de tal contextualização externa à imagem, será necessário, também, uma contextualização do seu tempo de produção, do artista que a realizou, de quem pagou por ela e para quem ela foi produzida. É dessa forma, inclusive, que a História está percebendo e se utilizando da fotografia como fonte visual. Possamai (2008) nos ajuda a compreender esse movimento da historiografia, primeiro ao expor que estamos ainda atrasados em relação às demais Ciências Sociais:

História como disciplina não tem apresentado o mesmo progresso que as demais ciências sociais no que se refere ao uso das fontes visuais e à problemática da visualidade. Para o historiador, lidar com fontes visuais ainda apresenta inúmeras dificuldades por este não estar equipado teórica e metodologicamente para tal. (POSSAMAI, 2008, p. 253-254)

E, num segundo momento, ao afirmar que a História tem muito a ganhar com tal aproximação dos campos tradicionais da imagem.

A sociedade das imagens, que na atualidade impõe sobremaneira o imagético sobre o escrito, faz pensar, porém, se é possível para a história abdicar desses documentos. Mais que isso, a investigação das imagens, sejam estas obras de arte ou fotografias, pode abrir para o historiador um universo a ser explorado, principalmente no campo da memória e do imaginário. (IDEM, p. 254)

Foi refletindo sobre todos esses aspectos até aqui mencionados, portanto, que surgiu o interesse em compreender a enchente de 1941 a partir do recorte apresentado pela referida edição extra da Revista do Globo. Na época, vale ressaltar, o principal veículo impresso do Rio Grande do Sul e um dos principais do Brasil. No entanto, para realizar tal estudo, levo em conta, ainda, o alerta de Meneses (2003) sobre a forma como os historiadores passaram a trabalhar com a fotografia mais recentemente. Segundo o autor:

[…] muitos historiadores têm-se preocupado com examinar as relações entre sua disciplina e as imagens. Muitos apontam a importância das fontes visuais a partir dos anos 1960, e mesmo antes, fundamentando-se na ampliação da noção já agora consolidada de documento, em História e, portanto, na abertura de novos horizontes documentais. Também se processa a assimilação de novas técnicas quantitativas e qualitativas de análise. Os exemplos que estes autores mencionam são pertinentes e as abordagens, em quase todos os casos, satisfatórias. […] No entanto, vale notar que é preciso evitar ilusões: a História, como disciplina, continua à margem dos esforços realizados no campo das demais ciências humanas e sociais, no que se refere não só a fontes visuais, como à problemática básica da visualidade [pois] o objetivo prioritário que os autores propõem é iluminar as imagens com informação histórica externa a elas, e não produzir conhecimento histórico novo a partir dessas mesmas fontes visuais (MENESES, 2003, p. 20)

Ou seja, se bem compreendi a preocupação do autor, não se trata, apenas, de utilizarmos as imagens para, a partir delas, estabelecermos relações contextuais com o externo mas, complementarmente, também mergulharmos na própria imagem, para buscarmos perceber o que esta tem a nos dizer sobre o seu próprio tempo. Assim, é necessário levar em conta que há, sim, um fora-de-quadro que complementa tudo aquilo que foi selecionado pelo fotografo e que, após todo o processo, chegou até nós. No entanto, a própria imagem em si, fala com voz própria. E vai falar muito mais se percebida em si, afinal, por que o fotografo, dentre tantas possibilidades, realizou aquele específico recorte? Dessa forma, uma vez lida em todas as suas possibilidades, ai sim, esta imagem vai estabelecer o diálogo necessário com o fora-de-quadro.

Assim, seria uma forma de revalorizar o óbvio – aquilo que vemos, ou que nos é “dado a ver” – para enxergarmos o anômalo, o atípico, o extraordinário. Para isso ocorrer satisfatoriamente, no entanto, é necessário que o historiador também se aproxime dos mecanismos técnicos e estéticos que envolvem a construção imagética, seja ela pictórica, fotográfica ou fílmica. Afinal, aquilo que media os aspectos internos e externos da imagem passa, sobretudo, pela técnica por trás dos mecanismos e pela estética construída pelo olhar artístico que, por sua vez, desta técnica, se utilizará. Quer dizer, a tarefa é simples e complexa. Sabemos o caminho para que possamos, a partir do ponto de vista histórico, nos aproveitarmos das fontes visuais, mas transita-lo demandará sofrimento, afinal, a tarefa exige um esforço redobrado. A boa notícia, me parece, uma vez referenciado pelos autores aqui utilizados, são as inúmeras possibilidades que este casamento da História com as artes visuais nos proporciona para melhor compreendermos nosso passado.

Realizada tal digressão, voltemos à Revista do Globo. Concebida em 1928 para circular, pela primeira vez, em 5 de janeiro de 1929, a publicação esbanjou vivacidade editorial até fevereiro de 1967. Segundo Ramos, “[…] em 38 anos de existência, foram 941 fascículos” (2016, p. 116) que atendiam homens, mulheres e até crianças, através dos mais variados temas abordados em suas páginas, desde a política, esportes e vida social, passando por romances, cinema, moda e artes no geral. Era uma espécie de leitura da família e, certamente, principal vitrine para os autores locais. Além disso, a Revista do Globo pode ser considerada uma das pioneiras do fotojornalismo brasileiro. Ela não foi a primeira, é bem verdade. Segundo Ramos (2016), a primeira revista brasileira a trabalhar com fotografias no sentido de construir uma narrativa visual sobre os fatos foi a Revista da Semana, que circulou no Rio de Janeiro desde 1900 até 1959. No entanto, esta época era marcada, ainda, por fotografias feitas em estúdio, limitadas às características técnicas daquele início de século XX. Já a revista O Cruzeiro, que circulou entre 1928 até 1975 – um período quando a tecnologia fotográfica já permitia sair dos estúdios e documentar o mundo através de registros instantâneos – é considerada o berço do fotojornalismo no país.

Todavia, a publicação de Assis Chateaubriand (1892-1968) não foi a única a investir em fotorreportagens. Em Porto Alegre, a Revista do Globo também o fazia, e de modo arrojado. Para ambas, os parâmetros estavam nas norte-americana Live (1936) e Look (1937). (RAMOS, 2016, p. 118).

Presença afetiva na memória cultural de Porto Alegre, a Revista do Globo, editada pela Livraria do Globo, agregou a nata dos escritores, artistas e personalidades culturais do Rio Grande do Sul, atingindo, com certa abrangência, as principais cidades brasileiras – e até estrangeiras – na época. Nos anos 1930, a Livraria do Globo era a segunda maior editora do país e, ao menos até o final da década de 1940, influenciou o universo cultural brasileiro. Assim, conforme já introduzido anteriormente, ao realizar uma pesquisa junto ao DELFOS – Espaço de Documentação e Memória Cultural da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, descobri que a enchente não apenas foi objeto de uma longa matéria na edição número 295, de 17-5-1941 – edição está que já documenta o trágico evento –, mas também foi publicada, apenas algumas semanas depois, uma edição especial (295 A) sobre a enchente. É essa edição, portanto, que me servirá de objeto para este estudo.

Figura 1: Reprodução capa. Fonte: DELFOS.

A citada edição especial da Revista do Globo conta com 121 fotografias em diversos tamanhos e formatos. Conforme reproduzida acima, a imagem escolhida para a capa, em tom sépia, ilustra o centro da cidade com a água na altura dos joelhos das pessoas que, de pé, disputam a rua com barcos de pequeno e médio porte. O título da revista, escrito em letras garrafais no topo da página, é “A grande enchente de 1941”. Abaixo, no pé da capa, complementando a chamada principal, está escrito “Narrativa e registro fotográfico do espantoso flagelo que assolou o Rio Grande do Sul”. O editorial da revista, já na página seguinte, após a capa, assinado por “Barcellos, Bertaso & Cia”, diz o seguinte:

Apresentando ao público este álbum “A GRANDE ENCHENTE DE 1941”, tivemos em mente oferecer-lhe uma visão geral do que foi o horrível flagelo que sacrificou o Rio Grande do Sul em todos os campos de sua atividade. Para isso, reunimos e coordenamos algumas reportagens fotográficas e descritivas das mais fiéis que apareceram nesta capital, acrescentando, ainda, novos aspectos desconhecidos. Outrossim, sendo este álbum, por um lado, uma lembrança da enchente de maio de 1941, para preencher plenamente a sua finalidade, oferecendo a real impressão causada pelo flagelo, resolvemos conservar a redação das reportagens, bem como das legendas, mais ou menos na forma original em que foram escritas. O leitor encontrará aqui os lindos aspectos de Porto Alegre inundada, até os campos de arroz sacrificados, desde a indústria paralisada até os quadros patéticos e quase-trágicos dos postos de flagelo.

Figura 2: Reprodução editorial. Fonte: DELFOS.

Como é possível observar na reprodução, na parte de baixo da página está listado o nome dos fotógrafos que registraram as imagens utilizadas na edição da revista. Alguns nomes são anônimos, mas outros, como Sioma Breitman, contemporaneamente já mereceram, inclusive, exposições do seu trabalho. Para além de Breitman, no entanto, podemos ler nomes como C. Conturcci e M. Kroeff, bem como um inusitado “Studio os 2”, créditos ao 3º Regimento de Aviação, um fotógrafo definido como ”anônimo”, sobre o qual recai o crédito de apenas uma única imagem, da página 9, e o nome das cidades de Cachoeira, um tal Gerson de Rio Grande, Pelotas e A. Nacional, São Paulo. Esta última fotografia não diz respeito à enchente mas à doação realizada pelo governador do Estado de São Paulo, Adhemar de Barros, que enviou o seu salário daquele mês para o povo do Rio Grande do Sul.

Passadas as devidas apresentações e creditadas as imagens aos seus devidos fotógrafos, a página 2 da Revista do Globo abre com uma imagem de página inteira na qual se vê a provinciana Porto Alegre captada de cima de um edifício, provavelmente, através da qual se pode perceber o centro da cidade, onde hoje está o Largo Glênio Peres, com o canto do Mercado Público incluído no recorte, tendo, ao fundo o Rio Guaíba. Na verdade, percebe-se que rio e cidade é uma coisa só. A água avança para dentro da mesma fazendo com que não percebamos onde começa um e termina a outra. Inusitadamente, em meio a toda essa água, vemos fumaça de um incêndio no prédio da firma Secco & Cia. Esta imagem, em preto e branco, é seguida de um pequeno texto que serve como legenda e nos informa:

[…] havia cinco dias que o Guaíba invadira Porto Alegre […] durante vinte dias e vinte noites, a chuva ininterrupta foi transformando a maior parte do Rio Grande do Sul num vasto lago, sacrificando as suas lavouras, as suas cidades, os seus campos, o seu povo. (Revista do Globo, 1941, p. 2).

Figura 3: Reprodução página 2. Fonte: DELFOS

Como numa montagem de fotonovela, essa página abre uma sequencia de outras dezenove páginas recheadas de imagens – também todas elas em preto e branco – que recortam os mais variados ângulos da cidade ajoelhada frente à força do rio. A prioridade é para as imagens, mas todas as páginas contam com legendas, ora localizando o leitor sobre a geografia da cidade, ora destacando algum fato inusitado, quase sempre reforçando e, obviamente, direcionando o olhar do leitor sobre a imagem em questão. Zita Rosane Possamai (2006) destaca o recurso estético da fotomontagem como algo bastante divulgado na década de 1920. Segundo a autora, isso:

[…] demonstra a atualização da fotografia e das revistas ilustradas em Porto Alegre com os recursos técnicos presentes em outras partes do mundo […] esse artifício foi amplamente utilizado pelos fotógrafos, como forma de representar as cidades a partir de uma nova concepção visual suscitada pelos novos meios tecnológicos recém inventados. A cidade de feições colossais e múltiplas e o ritmo imposto à vida das pessoas pelas inúmeras máquinas e procedimentos mecânicos (como os automóveis, os trens, o telefone, e mesmo a câmera fotográfica) tornaram a imagem fotográfica um modo de apreender e representar visualmente esta nova e complexa realidade. (POSSAMAI, 2006, p. 284)

Talvez por isso, mas também para destacar a enchente que atingiu a capital dos gaúchos, a maior parte das imagens são em Plano Aberto. Há um claro intuito em mostrar como a enchente foi grandiosa frente à concretude imóvel dos prédios da capital. Apesar disso, ainda há algumas poucas fotografias que denotam uma preocupação artística do fotografo. E, para uma destas imagens em específico, a legenda inclusive chama a atenção do leitor para o “detalhe artístico da enchente [quando] a objetiva apanhou um lindo panorama da Praça da Alfândega, tendo, em primeiro plano, o escuro contraste dos arabescos de ferro de uma das portas dos Correios e Telégrafos” (Revista do Globo, 1941, p. 4). A impressão que fica, inclusive, é que a legenda é utilizada quase como uma desculpa pelo fato de o fotografo ter se preocupado mais com a estética da imagem do que em, simplesmente, registrar o evento. É preciso levar em conta que essa dinâmica construída a partir da reportagem da Revista do Globo está em sintonia com o fotojornalismo, um gênero jornalístico que visa construir a reportagem a partir da força da imagem captada pela tecnologia fotográfica.

Alguns pequenos títulos são utilizados para chamar a atenção do leitor sobre as imagens. Na mesma página 4 onde vemos a fotografia artística realizada de dentro dos Correios e Telégrafos, o título é “Três recantos inundados”. Já a página seguinte, que conta com imagens aéreas do centro da idade, o título é “A enchente vista dos ares”. As imagens feitas pelo Regimento de Aviação seguem nas duas páginas seguintes, tendo os títulos “Zonas populosas atingidas pelas águas” e “Os que perderam tudo” como elemento gráfico para direcionar o olhar do leitor. Então, por mais quatorze páginas os registros seguem, inaugurados pelo título “Outros aspectos da enchente”.

Figura 4: Reprodução página 4. Fonte: DELFOS

 

Figura 5: Reprodução página 5. Fonte: DELFOS

Ao longo dessas páginas vemos, então, recortes inusitados de uma cidade que, ironicamente, reflete sua beleza nas águas paradas. Uma versão singular para a “Estética da Guerra”. Então, um homem conduz seu barco em meio à Rua da Praia como se estivesse em um canal de Veneza. Um remador corta uma praça com seu barco de competição. Dentro das lojas e empresas, trabalhadores com água pela cintura tentam salvar seus produtos e mercadorias. E as luzes da cidade, bem como os letreiros luminosos dos cinemas, bares e restaurantes, refletidos na água, tornam quase impossível discernirmos se a foto não está de ponta-cabeça. “Como se fosse Veneza” é o título da página 12 que vêm com duas grandes imagens. Acima vemos o Mercado Público também refletido nas águas paradas e abaixo vemos uma ambulância abandonada no meio da rua que se transformou em um lago de águas paradas. É “a trágica beleza da cidade inundada”, confirma a redação da página 13, seguido de imagens menores que mostram uma criança brincando de barco dentro de um galão aberto pelo meio, ou de dois homens mostrando os peixes que acabaram de pescar em meio à rua, no centro da cidade. Afinal, trata-se de “Um espetáculo inédito em dois séculos de vida”, quando Porto Alegre substituiu caminhões, carros e ônibus por barcos e teve que construir passarelas para poder se deslocar.

Figura 6: Reprodução página 9. Fonte: DELFOS

 

Figura 7: Reprodução página 12. Fonte: DELFOS

Berger diz que “A invenção da câmera mudou a maneira como o homem via. [A partir de então] o visível passou a significar algo diferente para ele.” (1999, p. 20). Creio que esta afirmação aplica-se perfeitamente bem a forma como a Revista do Globo cobriu a enchente de 1941, que é completamente diferente de como as cheias deste ano de 2023 estão sendo documentadas, tanto pela imprensa como por pessoas aleatórias, anônimas ou não, as quais, hoje, contam com suas câmeras digitais e, sobretudo, seus celulares. Da mesma forma, seria totalmente diferente de como a mesma enchente de 1941 teria sido documentada caso tivesse ocorrida vinte ou trinta anos antes. O que há – ou haveria – de diferente entre uma hipotética enchente de 1911 ou 1921, a grande enchente de 1941 e o que está ocorrendo agora, em 2023?

Dizem que nunca atravessamos o mesmo rio duas vezes, portanto, se nem as águas são as mesmas, o que falar sobre a urbanização das cidades, as tecnologias de captação de imagens, as represas construídas ao longo de alguns destes rios, a poluição que atinge essas águas e a forma como as matas ciliares foram devastadas nas últimas décadas? Mas, sobretudo, o que dizer sobre a forma como o ser humano passou a “ver” o ambiente que o circunda? Nesse sentido, é impossível analisar a cobertura da Revista do Globo, em 1941, sem levar tudo isso, e muito mais, em conta. Por isso, também, algumas passagens da revista, na forma como a mesma documentou o evento na década de 1940, certamente não seriam bem recebidas em tempos de redes sociais. A sociedade de 1941 era mais “ingênua” em relação a como a imprensa construía suas coberturas jornalísticas. Poucos dominavam uma câmera fotográfica em um período quando até a leitura era algo para privilegiados. Assim, se para o olhar de um leitor mediano do século XXI, pode causar estranheza a forma como a Revista do Globo estabeleceu algumas relações e analogias, para o porto-alegrense daquele período histórico, se ver reproduzido nas páginas de uma revista já era, por si só, algo extraordinário.

É verdade que a revista não deixa de destacar que a inusitada beleza veneziana da capital esconde, também, os flagelados. Crianças comem sentadas no chão, em um acampamento improvisado. Uma mulher protege o pouco da mobília e pertences que conseguiu resgatar antes da água invadir sua casa. A febre tifoide se mostrava uma das preocupações das autoridades. E, a reportagem destaca que as crianças deveriam “estar em primeiro lugar”. No entanto, todo esse “realismo” apresentado ao longo de algumas poucas páginas parece variar desde algo “obrigatório” para uma reportagem que pretende documentar uma catástrofe climática, até uma espécie de “justificativa” para, logo mais, chamar a atenção dos leitores para a benevolência populista da elite porto-alegrense mediante o drama dos mais pobres. Não por acaso, percebo, após uma nova sequencia de fotografias recortando o centro da cidade tomado pelas águas, surge a imagem da primeira dama do Estado. Então, antes de chegarmos a uma sequencia de páginas que abordarão os flagelados e aqueles que mais sofreram com a enchente, quatro páginas seguintes nos lembram da dedicação e preocupação, não apenas da primeira dama, mas também das mulheres da sociedade porto-alegrense, que demonstram “o carinho típico da mulher rio-grandense” ao visitarem os alojamentos onde estão aqueles que foram deslocados de suas casas. Isso tudo, claro, na companhia do Exército Brasileiro, que presta toda a solidariedade e ajuda aos mais necessitados. Por último, ainda dá tempo de lembrar que o Palácio do Governo foi transformado no Quartel General dos Serviços de Salvamento e que, em meio à tragédia, a vida continua. “Nasceu um flagelado”, que foi batizado com o nome do Interventor Federal, Osvaldo Cordeiro de Farias, anuncia a página 25.

Figura 8: Reprodução página 13. Fonte: DELFOS

 

Figura 9: Reprodução página 14. Fonte: DELFOS

 

Figura 10: Reprodução página 16. Fonte: DELFOS

 

Figura 11: Reprodução página 17. Fonte: DELFOS

De forma semelhante, a abordagem de um jornalista soa desproposital se realizada hoje. “Eu fui um flagelado” é o título da página 26, que abre uma sequencia de dez páginas dedicadas a retratar o lado mais triste da tragédia. Esta primeira página exibe uma fotografia de pessoas – homens, mulheres e sobretudo, crianças – sentadas no chão de um “posto de socorro” que foi visitado pelo repórter Justino Martins. Abaixo do título, o subtítulo é explicativo: “o que vi, ouvi e comi num posto de socorro a flagelados, durante apenas uma noite, quando a enchente estava no auge”. O texto inicial, de meia página, fala sobre a experiência do jornalista ao lado de pessoas que precisaram deixar suas casas e recorrer a um espaço comum para se protegerem da chuva e da própria enchente. Embora a intensão possa ser boa, e para a época possa ter funcionado, lendo-a hoje, a mesma carrega nuances sensacionalistas. Isso sem levar em conta que um jornalista se colocar na condição de um “flagelado”, situação esta dramática e vivida por inúmeras pessoas que, por ele, serão expostas em sua fragilidade através da matéria, é, no mínimo, falta de bom senso. Portanto, seja um jornalista em busca de uma boa matéria, seja a primeira dama praticando assistencialismo, percebemos que o oportunismo já estava presente da Revista do Globo e, este, compunha a narrativa construída pelos editores.

Figura 12: Reprodução página 22. Fonte: DELFOS

 

Figura 13: Reprodução página 24. Fonte: DELFOS

Ao longo das páginas seguintes, então, uma montagem de pequenas fotografias, seguidas das suas respectivas legendas, levantam o cotidiano dessas pessoas. E aqui há espaço para tudo. As recomendações médicas, a espera angustiante para que as águas baixem, a moça que mesmo nessa situação se preocupa em manter-se bela, a União dos Estudantes que auxilia no cuidado com as crianças, o senhor morador da Ilha da Pintada que perdeu todas suas dezessete vacas, as crianças que se distraem com jogos de mesa, as senhoras que tomam mate enquanto conversam sobre a tragédia, a adolescente eleita “Rainha dos Flagelados”, que é fotografada lendo a Revista do Globo, o casal que perdeu sua casa recém construída e o casal que desfruta sua lua de mel após casarem, aos cem anos de idade. Essa última história, por conta da sua carga dramática, merece uma página inteira. Trata-se de Vitória Domingues, escravizada que “fugiu, comprou sua liberdade e durante a enchente, aos cem anos de idade, casou com seu homem”, José Antônio.

Figura 14: Reprodução página 26. Fonte: DELFOS

 

Figura 15: Reprodução página 31. Fonte: DELFOS

Então, nas próximas páginas o repórter Abdias Silva relata os efeitos do Guaíba sobre a Ilha da Pintada. A fotografia que inaugura essa sequencia é de uma casa destruída e sob a água. Apenas o seu telhado, ou o que restou dele, é visível. Mais uma vez, uma sequencia de pequenas fotografias, seguidas por legendas, numa diagramação que novamente lembra uma fotonovela, exibe casas destruídas pela força da enchente, bem como os prejuízos causados pela cheia do rio Jacuí sobre as lavouras de arroz. A última fotografia dessa sequencia mostra um menino comendo um pedaço de pão e mirando o horizonte. A legenda estabelece uma relação direta entre o olhar pensativo do garoto e a tragédia que atingiu sua casa. Chamando a atenção para a sua “fisionomia abatida e ausente que admira, na distância em que tudo é água […] a residência dos seus pais. Mas isso é impossível, pois o seu lar desceu com as águas. FIM” (Revista do Globo, 1941, p. 35).

Figura 16: Reprodução pág. 35. Fonte: DELFOS

Um dramático “FIM”, em caixa alta, que muito pode estar referindo-se ao drama daquele menino que, ainda tão jovem, viu seu lar desaparecer nas águas, ou que pode ser lido, também, “apenas” como o encaminhamento final da reportagem sobre a enchente em Porto Alegre. Isso porque, a partir de agora, encerra-se a cobertura sobre Porto Alegre e as próximas quatro páginas reportam os efeitos da enchente no interior do Estado. Fotografias mostram que o drama porto-alegrense teve paralelo também nas cidades de Rio Grande e Pelotas. Aliás, a exemplo de 2023, quando a quantidade de água da chuva, associada ao vento Sul, provocou inundações também nessas duas importantes cidades do Estado. A reportagem da Revista do Globo reproduz imagens que muito lembram os recortes inusitados feitos na capital. A Lagoa dos Patos invade as ruas destas cidades que, por sua vez, tornam-se leitos de um rio de águas calmas, agora, transitado por pessoas em seus barcos. Para fechar a reportagem, “O senhor Ademar de Barros [então Interventor do Estado de São Paulo] ofereceu os seus vencimentos de um mês às vitimas da enchente.” (Revista do Globo, 1941, p. 36).

Com exceção à capa da revista, não há uma única fotografia colorida ao longo de toda a revista. Embora a primeira experiência com a fotografia colorida tenha ocorrido no longínquo ano de 1861, quando o físico escocês, James Clerk Maxwell, obteve uma imagem a cores ao sobrepor à ela três filtros nas cores vermelho, verde e azul, a técnica demandou décadas para que fosse assimilada pelo mercado fotográfico. Mesmo após a chegada dos filmes coloridos, muitos fotógrafos insistiram em seguir registando suas imagens em preto e branco, pois estavam acostumados à estética, linguagem e técnica da fotografia em preto e branco. Esta, inclusive, muito mais barata e acessível que a foto colorida. No caso da fotografia direcionada às publicações como revistas e jornais, é preciso levar em conta, ainda, o necessário desenvolvimento de uma tecnologia satisfatória para a impressão em papel. Por isso, segundo Tássia Caroline Zanini (2014), mesmo nos Estados Unidos isso veio a ocorrer, com mais assiduidade, apenas a partir da década de 1940.

Com a chegada do filme colorido moderno, as fotografias ganharam mais riqueza de detalhes e a possibilidade de retratar a cores com mais fidedignidade e brilho. Um dos destaques dos primeiros anos desse período é a série produzida por Alfred T. Palmer, que em 1942 retratou os trabalhadores que construíram a usina hidrelétrica de Douglas Dam, no Vale do Tennesse, Estados Unidos. Um importante registro em cores, supersaturadas, característica do filme Kodachrome e representativas da estética da época. (ZANINI, 2014, p. 4)

No Rio Grande do Sul de 1941, portanto, a fotografia colorida ainda não era uma realidade financeiramente e tecnologicamente acessível. O que ajuda a explicar que apenas a capa da Revista do Globo se utilize da cor – e mesmo assim, de forma ainda primária – para destacar-se em meio a tantas outras publicações nas bancas de revistas. Nessa capa, portanto, conforme descrito acima e reproduzido no início deste artigo, temos a imagem do centro da cidade, reproduzida em tons sépia, emoldurada por duas barras, em azul, sobre as quais foram aplicados os textos.

É preciso lembrar que a fotografia foi uma aliada na construção de um imaginário moderno sobre a cidade. Porto Alegre sempre desejou ser percebida como uma cidade contemporânea às demais grandes metrópoles do país e, até, do mundo e, nesse sentido, Possamai (2006), afirma que já desde as primeiras décadas do século XX, a capital dos gaúchos foi recortada, pelos fotógrafos, como uma cidade pujante e em pleno desenvolvimento. Esta é uma demanda histórica – e talvez, de certa forma, inconsciente – da população porto-alegrense. Isso fica claro ao longo das imagens publicadas pela Revista do Globo, conforme podemos observar nas páginas reproduzidas aqui. É preciso lembrar, ainda, que, nessa época a Revista do Globo tentava contemplar as aspirações dos gaúchos quanto à importância da sua capital e o registro das transformações arquitetônicas, destacando a construção de prédios contemporâneos à época. Não é por acaso que este foi um tema recorrente para os fotógrafos do período e a Revista do Globo, por ser uma das principais publicações do Rio Grande do Sul, seguia esses parâmetros e contribuiu, dessa forma, para a construção desse imaginário moderno sobre a cidade. Algo que, podemos observar, também acompanha a maioria dos registros sobre a enchente de 1941. Conforme Possamai, desde a década de 1920:

[…] as vistas da cidade ganharam, nas revistas, um espaço de circulação que potencializou o poder de difusão das representações ligadas à modernidade urbana, através das imagens das reformas levadas a efeito e das novas sociabilidades citadinas. (POSSAMAI, 2006, p. 283)

Portanto, tal preocupação imagética, em sintonia com uma cidade moderna que se abria ao mundo, é facilmente percebida ao longo das fotomontagens presentes na edição extra da Revista do Globo. Mesmo que esta esteja, a priori, documentando a tragédia que se abateu sobre a capital em 1941. É perceptível que há um destaque para a magnitude da enchente, obviamente, mas também está evidente que há, ao mesmo tempo, uma intensão, dos fotógrafos, em compor a tragédia em sintonia com uma cidade emoldurada por prédios imponentes. Burke (2001), lido por Possamai, diz que:

Mesmo estando de forma inexorável ligada à cena registrada, a fotografia não pode ser concebida como mimese do real. Este equívoco muitas vezes toma de assalto o historiador desavisado. Nesse sentido, é importante pensar que as fotografias não são nunca testemunhos da história, pois são, elas mesmas, históricas (BURKE in POSSAMAI, 2008, p. 255)

Quer dizer, a percepção de que há um “algo a mais” por trás do registro da referida enchente, ocorrida na primeira metade do século XX, é em si a História, uma vez que sabemos o quanto a Porto Alegre deste período buscava se consolidar como uma grande cidade no cenário nacional e, por isso, era preciso evidenciar tal estética em todas as oportunidades. Por outro lado, a cobertura fotográfica não seria satisfatória se não registrasse, também, a periferia da capital e, nesse sentido, destaca-se o contraste entre o centro e os bairros mais afastados – e mesmo a Ilha da Pintada – onde o que chama a atenção não é a grandiosidade da cidade mas, sim, a precariedade das habitações. Muitas em madeira, destruídas pela fúria das águas. De certa forma, se reproduz, já, o contraste entre as áreas mais centrais das cidades brasileiras e suas periferias, quase sempre, atingidas com maior ferocidade por eventos climáticos como este. No entanto, não deixa de ser sintomático perceber que, mesmo hoje, em 2023, devido a ameaça de uma nova enchente atingir a capital, as imagens que mais circularam pelas redes sociais foram, justamente, aquelas que ilustram o centro da cidade. Muitas vezes, a exemplo do que ocorreu com a própria matéria da Revista do Globo de 1941, associando a capital dos gaúchos à requintada e turística Veneza.

Chama a atenção, também, a forma como a revista aborda o cotidiano dos flagelados que, expulsos de suas casas, precisaram buscar refúgio nas precárias instalações que a prefeitura disponibilizou para esse fim. Os textos que complementam o registro fotográfico, percebe-se, se preocupam em contemplar as consequências da enchente. No entanto, é o poder imagético que se sobrepõe à palavra. De forma semelhante, também chama a atenção a preocupação da revista em destacar, inclusive em contraste às ações efetivas do poder público, a preocupação e o trabalho das autoridades em prol dos mais atingidos, num tom quase assistencialista e, até, populista, o qual foca mais nas personalidades – o Interventor do Rio Grande do Sul, a primeira dama e, inclusive, o Interventor do Estado de São Paulo – do que nas ações institucionais executadas pelo poder público para mitigar as consequências das enchentes.

Sobre isso, parece, muito pouco mudou. Ainda mais se levarmos em conta que, nesse momento, quando estou encerrando este texto, em 23 de novembro de 2023, mais uma vez o Guaíba avançou sobre a cidade. As comportas, novamente, foram fechadas mas, desta vez, ao contrário do que ocorreu em agosto e setembro, algumas bombas não deram conta e a água invadiu as ruas do Distrito Industrial a partir da rede de esgotos. Mais uma vez, parece, os administradores municipais não levaram em conta a advertência das agências meteorológicas e foram pegos de surpresa com o avanço das águas. Ainda mais trágico foi o que ocorreu na região do Vale do Taquari onde, mais uma vez, as pessoas tiveram suas casas invadidas pela água. Muitas destas casas, inclusive, que haviam acabado de ser restauradas após o evento ocorrido em setembro. Por último, segundo o jornal Matinal de 21 de novembro de 2023, as doações da comunidade gaúcha à região foram perdidas por conta da nova enchente. O que demonstra que as ditas autoridades locais não se deram ao trabalho de estocar alimentos, roupas e remédios que foram enviadas para a região desde setembro e, agora, foram inutilizados por conta da nova enchente. Dessa forma, se muita coisa mudou desde 1941, também é fato que algumas coisas mudaram para pior. E percebam que nem falamos sobre as transformações climáticas que estão ocorrendo em todo o planeta por conta do aquecimento global. Os desafios para o futuro são enormes. Justamente por isso, o olhar historiográfico sobre o passado é, cada vez mais, fundamental. Afinal, a História sempre se repete, seja como farsa ou tragédia.

Bibliografia

BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: ROCCO, 1999

BURKE, Peter. Testemunha ocular – história e imagem. EDUSC, 2005.

GUIMARAES, Rafael. A enchente de 41. Porto Alegre : Libretos, 2023. 4 Edição.

MAUD, Ana Maria. Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas ilustradas cariocas, na primeira metade do século XX. Anais do Museu Paulista – São Paulo, 2005

MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Fontes visuais, cultura visual, História visual – balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v 23 nº 45 pp 11-36, 2003.

MONTEIRO, Charles. História e Fotojornalismo: reflexões sobre o conceito e a pesquisa na área. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 8, n. 17, p. 64 89. jan./abr. 2016.

POSSAMAI, Zita Rosane. O circuito social da fotografia em Porto Alegre (1922-1935). Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.14. n. 1. p. 263-289. Jan-jun, 2006.

POSSAMAI, Zita Rosane. Fotografia, História e vistas urbanas. HISTÓRIA – São Paulo, 2008.

PROENÇA, Caio de Carvalho e MONTEIRO, Charles. O fotojornalismo em revista: o trabalho do fotógrafo e do editor de fotografias em Veja (1977). Revista Maracanan, vol 12, nº 14, p. 190-209, 2016.

RAMOS, Paula. A modernidade impressa: artistas ilustradores da Livraria do Globo – Porto Alegre / Paula Ramos. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2016.

REVISTA DO GLOBO: A enchente de 1941. Edição 285 A, Maio de 1941.

ZANINI, Tássia Caroline. História da fotografia colorida: cores presentes de um passado cinzento. Universidade de São Paulo, SP. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR, 2014

2 FLUSSER, Vilem. Filosofia da Caixa Preta : ensaio para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2002.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Neste ano de 2023 está lançando seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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