por Boca Migotto
No próximo ano, 2024, a primeira Constituição do Brasil, como Estado independente, completará 200 anos. A Constituição de 1824, outorgada pelo imperador dom Pedro I, não é apenas a primeira, mas também a mais longeva Carta Magna com a qual o Brasil já foi regido. Vigorou por 67 anos e durou até depois da Proclamação da República, quando foi substituída pela Constituição de 1891. Além destas, o Brasil teve, ao longo da sua História, outras cinco constituições: a terceira foi outorgada por Getúlio Vargas, junto à formação do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937 e, depois, ainda vieram as constituições de 1946, 1967 antes de, finalmente, chegarmos à Constituição Cidadã. A primeira realmente outorgada em um Estado democrático, apenas em 1988, e que vigora até os dias atuais.
A Constituição de 1824, imposta por dom Pedro I, é bastante contraditória e fruto de um processo arbitrário que envolveu, inclusive, a dissolução da assembleia constituída a partir de maio de 1823. Segundo o historiador Boris Fausto – falecido em abril deste ano – em seu livro História do Brasil, dom Pedro, inspirado pelo rei Luís XVIII da França, jurou que defenderia a futura Constituição se esta “fosse digna do Brasil e dele próprio”. Ou seja, o monarca não aceitava perder um milímetro do seu poder.
Os membros da constituinte, no entanto, nem de longe eram políticos radicais. A assembleia era formada, basicamente, por expoentes da elite brasileira, que defendiam, na sua essência, os seus próprios interesses. Ao mesmo tempo, é verdade que o país estava em ebulição desde a independência. Portanto, muitas questões estavam em jogo e isso, naturalmente, provocava discussões acaloradas entre os mais diversos setores aristocráticos. A historiadora Lilia M. Schwarcz, no livro escrito em parceria com Heloisa M. Starling, Brasil – uma biografia, explica que o país, naquele momento, se dividia entre os grupos “coimbrão”, composto, basicamente, por portugueses e os “brasilienses”, formado por brasileiros natos. Segundo a historiadora, “(…) não havia, por exemplo, acordo acerca das estruturas básicas sobre as quais o Estado iria se organizar. E não por acaso, nos dois primeiros anos de país independente – entre 1822 e 1824 – os debates centraram-se na primeira Constituição brasileira”.
Em meio a tudo isso, em maio de 1823 ocorreu a primeira reunião da Assembleia Constituinte. Havia, entre a maioria dos seus membros, a certeza de que o melhor caminho era defender uma monarquia constitucional que garantisse os direitos institucionais dos cidadãos, limitasse o poder do imperador, regrasse o país após este ter se separado de Portugal, mas que não significasse necessariamente uma ruptura completa ao modelo praticado.
Em verdade, a busca era por manter tudo que interessava às elites e apenas diminuir o poder de dom Pedro sobre as questões políticas do país. Basicamente, três grupos se formaram: 1) os liberais moderados defendiam uma monarquia constitucional, sujeita a clássica divisão de Montesquieu, constituída por três poderes, mas sem comprometer a ordem social e status quo vigente; 2) os liberais exaltados que eram os mais audazes na sua luta por transformações estruturais, não apenas sociais, como também políticas. Nesse sentido, eles defendiam um sistema federalista, separação da Igreja do Estado, sufrágio universal, implantação de uma República e gradual emancipação dos escravos. Por fim, os conservadores, chamados também de “partido português”, embora não fosse formado apenas por estrangeiros, que reivindicavam o poder absoluto da monarquia. Foi, portanto, nesse ambiente que iniciaram os trabalhos da Constituinte de 1824, apelidada de “Mandioca” pois esta determinava que apenas teria direito ao voto, ou concorrer ao cargo de deputado, aqueles cidadãos brasileiros “(…) que tivessem renda anual equivalente a 150 alqueires de farinha de mandioca.” Mais do que tudo, uma clara demonstração de força da elite agrária brasileira.
Mal iniciaram as discussões e já estava claro a todos que havia uma articulação para retirar poderes de dom Pedro I, bem como, proibir estrangeiros – no caso, essencialmente os portugueses – de se candidatarem a cargos públicos. Isso chamou a atenção de dom Pedro que, naturalmente, se aproximou do grupo dos portugueses e, em 12 de novembro de 1823, com apoio militar, cercou o prédio e ameaçou os deputados. Estes resistiram, passaram a noite legislando, declararam o monarca um fora-da-lei e enfrentaram o poder do imperador naquela que foi conhecida como “a noite da agonia”.
Em resposta a tão insolente provocação, entretanto, dom Pedro dissolveu a Assembleia Constituinte e os ameaçou com prisão. Ao raiar do dia, diferente do prometido, quase todos deputados voltaram para casa – com exceção de seis, que foram deportados para a França – mas, a partir de então, dom Pedro coordenou os trabalhos até o dia 25 de março de 1824, quando acabou por outorgar, finalmente, a primeira Constituição do Brasil. Esta, no entanto, novamente segundo Boris Fausto, “(…) nascia de cima para baixo, imposta pelo rei ao ‘povo’, embora devamos entender por ‘povo’ a minoria de brancos e mestiços que votava e que, de algum modo, tinha participação na vida política”.
Não é estranho, no entanto, perceber que a Constituição carregava, em si, uma série de contradições que espelhavam o próprio imperador. Dom Pedro gostaria de ser visto como um monarca esclarecido, ilustrado e liberal, embora agisse para garantir seus poderes autocráticos. A Carta Magda não deixa de ser o reflexo desse homem e líder confuso. Por uma lado, trata-se de uma constituição bastante moderna para a época mas, ao mesmo tempo imposta, ampliou os poderes do monarca com a adoção do mecanismo do “Poder Moderador”. Schwarcz explica que o documento “(…) seguia o modelo liberal francês, prevendo um sistema representativo baseado na teoria da soberania nacional. A forma de governo era monárquica, hereditária, constitucional e representativa, dividindo-se o país em províncias. A novidade ficava por conta da introdução não de três poderes, mas de quatro, seguindo-se e adaptando-se a proposta de Benjamin Constant, que defendia a existência de cinco poderes: o real, o executivo, o representativo da continuidade, representativo da opinião e o poder de julgar, estando este acima dos demais”
Praticado exclusivamente pelo imperador, o Poder Moderador, conforme o Artigo 98 do Capítulo I da Constituição, estava acima dos demais e poderia ser aplicado sempre que houvesse necessidade de definir uma questão em disputa. Mais do que um poder de veto, garantido ao imperador ainda no projeto de 1823, o Poder Moderador, conforme aparece na Constituição de 1824, “(…) é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante”. Dessa forma, o poder de dom Pedro lhe concedia o direito de demitir ministros de Estado, membros vitalícios do Conselho de Estado, presidentes de províncias, autoridades eclesiásticas, senadores vitalícios e magistrados do Poder Judiciário. Por fim, o imperador era inimputável e não poderia responder judicialmente por seu atos. Assim, se, esta Constituição representava um avanço ao organizar os poderes, definir atribuições e garantir direitos individuais, por outro lado, sobretudo no campo dos direitos, sua aplicação seria relativa e insuficiente.
Falamos de um país, naquele momento, essencialmente agrário e extrativista, onde praticamente não havia indústrias e o comércio dependia, sobretudo, das importações.
Nesse sistema ainda beirando o feudalismo, a elite, detentora das terras – e o país, consequentemente –, dependia exclusivamente do trabalho escravo para se viabilizar economicamente. Por isso, não espanta o fato de nenhum dos grupos acima mencionados, inclusive os liberais exaltados, tocarem no tema da escravidão. Dom Pedro, por sua vez, também não o fez. Mesmo amparado pelos militares e tendo garantido um poder quase absoluto, não seria ele a enfrentar toda a classe dominante do país e propor a abolição naquele momento crucial, quando o Brasil atravessava uma séria ameaça de se desfragmentar em diversas repúblicas, a exemplo do que já havia ocorrido com a América hispânica. Como bem sabemos, levou sessenta e quatro anos para que o Brasil, finalmente, conseguisse romper com a escravidão. E quando o fez, logo em seguida o império ruiu. Portanto, até o presente momento tudo já havia mudado o suficiente para que mais nada mudasse e, assim, os diversos setores da aristocracia brasileira, bem como o próprio imperador, haviam preservado seu status quo. Não por acaso, os demais pontos da Constituição eram mera formalidade e não geraram discórdia.
Embora a religião oficial do Império fosse a Católica Romana, e esta submetia-se ao Estado, abriu-se espaço para as mais diversas manifestações religiosas, uma vez que estas ocorressem dentro dos seus respectivos templos. A Assembleia Geral era constituída por duas casas, sendo a primeira, dos deputados, temporária e a segunda, dos senadores, vitalícia. As eleições mantiveram-se censitárias indiretas, em dois turnos e, conforme Artigo 90, Capítulo VI das Eleições, as nomeações seriam feitas “(…) por eleições indiretas, elegendo a massa dos cidadãos ativos em Assembleias Paroquiais, os eleitores de províncias, e estes os representantes da nação e da província”. O direito político era restrito, conforme explicitado já no Artigo 92 do mesmo Capítulo. Não votavam escravos, indígenas, mulheres, menores de 25 anos e solteiros, religiosos de claustro, criados a servir, além de todos que tivessem uma renda anual inferior a 100 mil réis. Mas, ao mesmo tempo que a Constituição outorgou poderes absolutistas ao imperador, não rompeu com a escravidão, manteve a Igreja atrelada ao Estado e limitou o direito ao voto, ao longo de todo o Artigo 179 do Título 8°, também garantiu a liberdade de imprensa, o direito à propriedade, o direito do cidadão de ir e vir, exercer e expressar o pensamento livre, e, aos escravos, de não sofrerem tortura ou castigos físicos.
Ao mesmo tempo, além de, fundamentalmente, organizar as leis de um país que estava nascendo para o mundo, a Carta de 1824 passou a considerar como cidadãos brasileiros aqueles nascidos no Brasil e aqueles que, embora nascidos em Portugal, residiam no país por ocasião da Independência. De certa forma, e de uma forma um tanto quanto torta, a Carta de 1824 tentava formar um império liberal, submetido ao controle dos cidadãos e afastado da herança colonial absolutista. Nem tudo saiu como os mais liberais desejavam, mas foi onde se pode chegar em meio a um país ainda em convulsão social, algo, aliás, que levaria mais de uma décadas para ser pacificado, e governado por um imperador de tendência absolutista.
Em meio a tudo isso, então, em 1826 se formou a primeira Assembleia Geral brasileira, com 50 senadores e 102 deputados. A Assembleia se tornou, como não poderia deixar de ser, a casa da discussão política, no entanto, graças ao poder que a Constituição outorgou ao imperador, toda discussão poderia ser facilmente esvaziada por uma canetada aleatória. Ainda havia muito o que transformar nesse país recém nascido e isso, a História nos conta, demandou séculos para ocorrer. As consequências, portanto, estão presentes no Brasil até os dias de hoje.
I. BOCA MIGOTTO