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JURAMENTO DE JANUÁRIO por Mauro Alvim

Um conto de Mauro Alvim

            A família estava sentada à mesa almoçando, quando todos escutaram o trotar apressado de um cavalo que chegava à fazenda, trazendo um dos tropeiros de Nhozinho Simões, gritando para seu patrão:

_Nhôzinho, Pegaram Januário!

Tal grito fez quebrar a rotina da fazenda Roça Grande. Nos últimos anos, a família andou de cabeça quente com a ameaça daquele homem que havia feito promessa de pés juntos em dizimar todos os filhos do Coronel Olivério Simões. O tropeiro desmontou e, ao chegar na varanda, todos deixaram a mesa de refeição para saber mais detalhes do que acontecido. Ele tirou seu chapéu, passou a mão pelo rosto queimado de sol, o suor descia testa abaixo. Nhôzinho Simões, que não era muito de crer sem ver, perguntou-lhe:

_Isso daí não será mais outro alarme falso?

_Não é não, senhor. Encontraram o corpo lá na beira do açude.

_Que garantia me dão que é ele?

_A barba e mais o cabelo…

_Outra vez vocês vão querer reconhecer morto por causa de barba e cabelo?

_Não é só isso, Coronel, tem mais o chapéu, a medalhinha de São Damião e mais a foto da mulher dele. Sabe quem sangrou o excomungado? Foi Antero Brás!

As mulheres fizeram o sinal da cruz, deram graças a Deus que, a partir daquela data em diante não mais iriam precisar temer a morte de outro membro da família, e lá foram para frente do oratório, elevar suas preces a Deus em forma de agradecimento. Nhôzinho coçou a barba e murmurou:

_Antero Brás!? Até que enfim ele fez uma coisa que presta. Mas, a troco de quê o cachorro matou o demônio?

_Daí não sei. Foi um tiro só no meio do peito. O corpo está lá na vila, tá até branco de tanto sangue que perdeu.

_Então deve de ser outro, porque aquilo dali não tinha sangue.

_Vai lá na vila pro senhor ver que eu não tou brincando, Nhôzinho.

_Nós vamos juntos! Mandem selar os animais, quero ver isso de perto!

Dali a alguns minutos, acompanhado de quatro jagunços, todos a cavalo. Nhôzinho caminhava pela estrada poeirenta, sol de meio dia, rumo ao povoado de Iguatama. Fazia planos para si de, por vingança, decepar o cadáver e guardar a sua cabeça como peça de troféu, ainda que não tivesse sido ele quem fez o serviço. O resto do corpo, iria jogar no matagal, servir de comida para os urubus pois, prá ele, indivíduo como Januário Garcia, que já havia tirado a vida de seus outros irmãos, não merecia nem ser sepultado. Apesar da sua rivalidade política com Antero Brás, seria capaz de oferecer-lhe alguma recompensa, afinal, sua vida estava poupada. Sabia que estava condenado a morrer do mal de chagas mas, jamais deixaria para seus herdeiros a lembrança vergonhosa de ter sido morto juramentado.

Meio dia e meio, sol ardendo, os cavalos bufando, dali a pouco chegariam à beira do rio São Francisco onde poderiam matar a sede e, depois, seguir caminho até o povoado. Mas, próximo ao barranco, uma imensa mangueira caída ao solo, impedia a passagem. Antes do patrão ordenar, seus homens desmontaram e, de facões em punho, foram desbloquear o caminho. Um deles, observando a base do tronco, notou marcas de machado e chamou seus companheiros. Irritado, Nhôzinho berrou:

_Queria saber quem foi o cachorro que andou cortando árvore em minha terra!

_Fui eu, desgramado! – Logo veio a resposta, seguida do estampido de um rifle que assustou os cavalos. Dentre as folhagens surgiu a figura de um homem que mais parecia assombração, com os cabelos grandes e encaracolados, totalmente em desalinho, uma barba que batia no peito. Os olhos arregalados e vermelhos não escondiam o ódio e o desejo de vingar alguém, mais as roupas e botinas surradas, marrons de tanta poeira, lhe davam um ar mais sinistro. Sua chegada meteu medo nos jagunços. Sabiam que corriam perigo de vida, se descuidaram do patrão e, único jeito de escapar da morte era se atirar pelo barranco abaixo, rolando pelas pedras. Era tudo ou nada.

_Por que não foge também, coronelzinho de araque? Se tiver mãe, pegue esse trabuco e me estoure o peito! Faça comigo a mesma coisa que fiz com seus irmãos e vou fazer mais!

Atônito, Nhôzinho arregalou os olhos prá aquela coisa que parecia ter vindo do inferno. Era chegada a sua hora, não ia lhe dar as costas pois sabia que iria levar um tiro e deixar a impressão para os que ficariam que, morreu como um covarde. Só lhe restou ouvir as maldições que Januário lhe lançava:

_Me enfrente! Pegue a sua arma, vamos! Faça comigo o mesmo que o cachorro do seu pai fez com o meu filho! – silêncio total. Até as cigarras e os pássaros se calaram enquanto ele vociferava. – Não, você não é capaz de fazer isso porque é um covarde! Só tem valentia quando seus homens estão perto, desgraçado! Eu não sou de mandar outro  fazer o serviço prá mim.

Envergonhado por ouvir tantos desatinos, tentou ser rápido para puxar a sua arma. Segundos após, lá embaixo do barranco, enquanto gemiam de dor por causa da queda, seus jagunços puderam ouvir três tiros de rifle e não tiveram dúvidas.

_Nhôzinho está morto! – disse um deles!

Esta foi uma das mortes juradas e cumpridas por Januário Garcia. Quem conheceu aquele moço franzino na infância, não seria capaz de pensar que depois de adulto iria virar o homem mais temido no sertão do centro-oeste de Minas, justiceiro ou assassino. Ele que desde a infância nasceu para trabalhar na roça ajudando a família, antes de aprender a ler já sabia muito bem domar um potro xucro, aos quinze anos herdou do pai dois alqueires de terra, mais umas cabeças de gado e foi daí que começou. Bom de catíria, com vinte anos já tinha cinco alqueires mais outro tanto de gado leiteiro e era daí que levava a vidinha, pobre mas feliz. Nos domingos era coroinha na única igreja do povoado de Garças, e foi nos encontros da pastoral que conheceu a Sinhazinha da Maria e do Afonso com quem se casou. Moça prendada, de família humilde como a dele, mas que iria realizar seu grande sonho de ter um varão para continuar seus negócios na roça. Cinco anos de casamento, o filho não vinha, o casal era só tristeza. Numa certa tarde, em visita à prima Jacinta, Sinhazinha ganhou dela uma novena de Santa Edwiges que dizem ser a santa das causas impossíveis.

_Reze toda noite, você vai ver que, não demora, o neném começa a te chutar a barriga.

E não deu outra, nove meses depois nascia Januário Garcia Filho. O pai não cabia em si de alegria, falava para quem quisesse ouvir que o produto veio melhor que a encomenda! Para o garoto tinha feito uma promessa, se precisasse, ia carregar água no balaio prá que ele fosse muito feliz. Confiava que ele tinha tudo para ser um grande homem. E não é que o menino tinha tudo para dar certo? Com cinco anos, ainda sem já frequentar escola, sabia ler e escrever. Naquela época, Januário tinha era vinte alqueires de terra, mais uma boa quantidade de gado leiteiro, além de uma granja no fundo da roça.

Alegria que durou pouco até o dia em que foi procurado pelo Coronel Olivério Simões. Sua fama de homem mau era coisa que já vinha de família. Dizem que o povo sempre aumenta mas nunca inventa, mas o que é verdade e se tem certeza é a de que os avós daquele homem ganharam uma sesmaria dos reis de Portugal, depois de exterminarem os índios da região. Sesmaria que, num cálculo de cabeça, diziam que levava a maior parte do triângulo mineiro. Mania dos Simões era cobiça de terra e aumentar seu poderio político. Falavam para quem quisesse ouvir que ainda iriam ser donos do Estado de Minas Gerais. Quando algum dos Simões queria comprar uma terra, pagava o dobro do preço mas, não admitiam escutar um não. Quem recebia a proposta só tinha duas coisas a fazer, vender ou morrer.

Januário foi desses que disse não ao coronel e mais ainda:

_Até por todo ouro do mundo, Coronel. Sair daqui prá fazer o quê? A vida toda num fiz outra coisa sem ser cuidar dessa minha terrinha e ver o gado pastar. Largar disso aqui a modo de quê?

_Ora, que pergunta, Januário! Com o dinheiro que vou lhe pagar por essas terras, dá prá você montar seu negócio lá na cidade, uma vendinha, um bar ou, até quem sabe, ir de vez prá capital e dar uma vida melhor prá sua família.

Mas era não, não e não. Januário dizia-lhe que “já sou burro velho prá trocar de carroça, dessas terrinhas que herdei do meu pai, não mudo nunca!”

Olivério Simões tentou o que pôde e não conseguiu fazer negócio com o roceiro. Saiu de cara feia, resmungando e dizendo para Januário que ele ainda iria se arrepender de não ter aceitado sua proposta.

_Mas, arrepender de quê, meu Deus? Terra é minha, faço dela o que eu quiser, saio daqui só para o cemitério.

A resposta veio uma semana depois. Estava Sinhazinha estendo as roupas no varal, de longe viu seu filho, brincando em cima de um cavalo. Um estampido de fuzil e o corpinho do garoto caiu do animal, tal qual uma fruta cai do pé. Sem acreditar no que estava vendo, correu até lá e, no caminho, encontrou um jagunço que lhe disse:

_Manda seu marido vender as terras para o coronel ou, da próxima vez, vai ser a senhora ou ele quem vai tombar.

No dia do enterro do garotinho, o caixão branco foi levado para o cemitério carregado por outras crianças vestidas de anjo. Os adultos pediam vingança contra a família dos Simões, mesmo sabendo que nada iria acontecer pois, o coronel era homem que tinha a polícia nas mãos. Os gritos do povo não eram capazes de consolar o casal que perdeu seu único filho. Inconsolada, Saninha foi para a casa dos pais. Januário ainda foi na roça, chegou em casa e, se vendo no espelho, viu que a sua dor naqueles dias o fez esquecer da barba e pentear dos cabelos. Pegou o pente, uma tesoura, mais um espelhinho e a navalha, não fez a barba e nem o cabelo e sim um juramento: “só volto a usar isso depois que eu ver todos os filhos do Olivério debaixo da terra!” Já não tinha mais nenhuma vontade de voltar a cuidar da sua horta e da sua criação, a partir daquele dia seu desejo era um só, mostrar para o todo poderoso Coronel Simões o que é a dor de um filho perdido. Ele tinha sete, Antônio, Silvério, Nhôzinho, Josué, Afonso, Gercílio e Samuel, além das filhas Mariana e Carmita. As mulheres ele iria poupar, pois mulher não se mete em confusão, ao contrário dos varões que seguiam o mesmo caminho do pai, cobiça e mais nada. Januário trancou a casa, selou seu melhor alazão e, antes de partir pelo mundo afora para a vingança prometida, foi até a roça do seu vizinho e vendeu toda sua criação. Ia precisar de dinheiro para enfrentar a estrada. Antes, passou pela cidade, foi na casa da sogra despedir da sua amada, ainda inconsolável, sentada no banco da varanda, com os olhos vermelhos de tanto chorar a fitar o vazio.

_Isso não vai ficar assim não, Saninha. Deixa quieto que eu vou mostrar prá esse povo rico que, com sentimento dos outros não se brinca. Se é guerra que eles querem, pois eles vão ter!

Muitos dos amigos tentaram desencorajar Januário daquela louca vingança, mas o homem não mudou de idéia, esporeou o seu cavalo deixando seu recado “só faço a barba e o cabelo depois de vingar a morte do meu filho!”

Todos duvidavam que ele pudesse querer enfrentar aquela família poderosa e se perguntavam se Januário tinha ficado louco e havia desaparecido pelo mundo afora. Mas a resposta veio uma semana depois, quando a cidade acordou em polvorosa com a notícia de que Tonho Simões tinha sido o primeiro. Talvez porque aquele dali era o mais fácil para ser pego de tocaia. Filho caçula do Coronel Simões, era desses arruaceiros, beberrão, mulherengo. Passava o dia inteiro cuidando dos seus negócios na sua fazenda e, quase toda noite, deixava a mulher e os filhos em casa, para ir se divertir na Pensão da Rute. Tonho era desses que já chegava muito engomadinho, as garotas largavam de qualquer um e disputavam entre si quem ia ficar com ele, porque sabiam que o garoto pagava bem, gostava de esbanjar dinheiro e, em épocas de vaca gorda, costumava levar três delas de uma vez para o quarto. Isto, quando não decidia pagar a conta para os amigos, bebia até as tantas, a ponto de, na maioria das vezes, ser levado carregado para casa. Na sua última noite, estava com uma garota que a Rute havia lhe reservado. Com o peito ainda desabrochando, mais parecia uma garotinha fugida do lar, estreando naquela casa de mulher dama. Naquela noite, Tonho estava escornado de tal maneira, mal conseguia encontrar o chão. Por aquela garota havia pago quase que o preço de um campolina. Entrou no quarto, fechou a porta, cantarolava como um bobo alegre. A garota, seminua, sentada na cama, esperava o seu freguês tomar alguma atitude. Ele tirou os sapatos, a calça, o paletó e, de terno e gravata, ficou a cantar uma ária da ópera Rigoleto. Quando percebeu que a janela do quarto se abriu, sua última visão foi a de Januário lhe apontando a arma e, daí, o que ele viu depois, só Deus sabe.

No dia seguinte, apesar do protesto da esposa, todas as garotas da Pensão da Rute estavam no seu velório. Sua mãe, as irmãs e as cunhadas choravam, ao passo que o Coronel Simões era o que menos parecia demonstrar tristeza. Talvez por ser homem que durante a vida conviveu com as mortes juramentadas de entes próximos, uma vez que a história da sua família foi escrita com sangue e pólvora. Mas não conseguia esconder a raiva e o desejo de por fim a Januário Garcia, um homem que ousou desafiá-lo e cumpriu a promessa, entretanto, ainda não havia conseguido sensibilizá-lo da perda de um filho. Mais preocupado com a situação da sua nora viúva e dos netos, órfãos de pai, Olivério queria vingança e colocou sua cabeça a prêmio. O equivalente a dez novilhos para quem lhe trouxesse Januário vivo ou morto. No mesmo dia, a procura pelo vingador começou. Era a grande quantidade de barbudos, confundidos com Januário que eram pegos e levados no laço para o Coronel, ninguém recebeu o prêmio e, passados dois meses, ele ainda não havia sido encontrado porque foi se esconder no Estado de Mato Grosso, na tapera de um índio velho que, diziam, era o último descendente da tribo dizimada pelo exército do coronel. Três meses e nenhuma notícia, Olivério Simões se sentiu ofendido, não havia conseguido vingar a morte do filho, o assassino tinha que aparecer e, não se sabe como, num certo dia apareceu e foi vingado, apesar de gritar que era inocente. “Januário estava morto”, era o que mais se dizia nas rodas de conversa dos povoados, a família Simões estava poupada. Mas Olivério Simões viu que havia executado o homem errado quando, dois meses depois foi a vez de Silvério, atocaiado pelo mesmo vingador.

O coronel entrou em pânico, redobrou a recompensa para quem encontrasse vivo ou morto aquele louco que estava cumprindo a promessa de dar um fim nos seus filhos, chegando até mesmo a oferecer uma fazenda de duzentos alqueires, o que não foi o bastante pois, seis meses depois foi a vez de Gercílio. A partir de então, o destemido coronel nunca se sentiu tão diminuído. Ele que veio de uma estirpe de homens tido e havido como durões podia perceber seu próprio fracasso e não teve como voltar atrás. Seu sonho de ser dono de mais da metade das terras do triângulo mineiro foi embora e, querendo evitar mal maior, decidiu devolver as terras que havia comprado aos seus antigos donos e retirou todo e qualquer membro de sua família da região. Não era dono de mais nada por ali, não tinha nenhum poderio político, havia se retirado como um gato que foge à luta com um cão.

Januário, por sua vez, se tornou lenda na região. Apesar de ser citado como um indivíduo que tinha partes com o diabo, para a maioria era visto como um herói, alguém que, sozinho, espantou da região um valentão que queria dominá-la. Para aquela gente humilde que vivia da lavoura, Januário foi-lhes o santo vivo que não permitiu que a família Simões tomasse o que era deles. Apesar de toda a violência com a qual agia, Januário levou paz ao povo da região. Porém, com a saída em massa da família Simões do oeste mineiro para o interior goiano e mato-grossense, Januário passou a ter maior trabalho em localizá-los, mas nem por isso desistiu da sua vingança. Durante anos e anos perambulou pela mata como um leão que procura sua caça, sem pressa alguma para realizar seu juramento.

Oito anos após ter mandado executar cruelmente Januário Filho, o coronel era um homem decadente. Durante todo este período, viu seus cabelos ralearem e, daqueles que sobraram em sua cabeça, ficaram grisalhos antes do tempo. Restou-lhe apenas o filho Samuel que, devido à tragédia que abateu sobre sua família, não se tornou nenhum discípulo do pai para fazer negócios, mas um homem covarde, medroso, vivendo sempre a ameaça de ser o próximo. Samuel preferiu viver apenas dos lucros da sua fazenda, jamais se meteu em política, era um homem medroso e taciturno que falava em se mudar para o Rio de Janeiro e montar uma venda por lá. Num fim de tarde, na varanda da sua fazenda, observando o sol que se punha, disse ao seu pai da sua intenção, ao que Olivério lhe disse:

_Faz isso não, meu filho. Você é o único que me resta. Pelo menos, tem que sobrar um para continuar os negócios de família que herdamos desde o nosso bisavô.

_Pai, mas eu ainda posso ser o próximo! Quero viver muito e chegar a criar meus filhos. Januário é um demônio, uma assombração, como é que eu posso fugir dessa maldição? Antes que ele me pegue…

_ O último foi Josué e isso já lá vai prá dois anos. Se tivesse que fazer mal prá mais algum de vocês, já tinha feito. Dali já deve até ter morrido, tanto que a mulher dele, lá em Garças, até já casou com outro.

_Será que o demônio tá mesmo morto, pai?

_Ora, indivíduo feito aquele, depois que mata um, vira assassino que acha que pode matar qualquer outro. No mínimo, alguém já deve feito justiça por nós. – Samuel não quis dizer nem que sim e nem que não ao seu pai. Não queria contrariá-lo pois tinha pena do velho toda vez que notava sua feição de tristeza. – Eu já não duro mais muito tempo nessa vida, quero deixar, pelo menos alguém prá cuidar de tudo isso aí que é meu, não demora e Deus tá me chamando.

O sol se pondo, um mendigo apareceu frente à fazenda, trajando um velho e imundo sobretudo para se proteger do frio e, com voz rouca, implorou a Olivério.

_Hô, meu senhor. Tem um prato de comida prá mim? Tou vindo de muito longe, faz essa caridade.

Aqueles anos todos de sofrimento pela perda dos filhos, também fizeram com que Olivério Simões se tornasse uma pessoa mais piedosa pelos desafortunados. Convidou o pobre mendigo para entrar e mandou que uma empregada o servisse uma refeição. Notou o quanto o recém-chegado comia como um desarvorado e não se furtou a perguntá-lo:

_Está vindo de onde?

_De muito longe, disse-lhe o mendigo, minha vida é só caminhar pelo mundo afora mas, agora estou cansado, querendo voltar prá casa. E os senhores? São daqui?

_Não, sou mineiro – respondeu Olivério.

_Minas Gerais? Terra boa. Senhor deve ter muita saudade de lá, não é?

_Foi lá que eu nasci mas, infelizmente, não podemos mais voltar. – Disse Samuel – Principalmente eu que estou jurado de morte.

_Santa mãe, mas quem e por quê há de querer matar gente tão boa?

Olivério Simões quem lhe respondeu:

_Um louco jurou de morte todos os meus filhos!

_Um louco?, indagou o mendigo. Mas, a modo de quê?

_Foi uma confusão que me meti com um sujeito aí, só que eu não sabia que estava mexendo era com um louco que decidiu vingar em cima dos meus filhos e só Deus sabe o quanto tenho penado.

_Que louco é esse?

_Um tal de Januário Garcia, já ouviu falar?

O mendigo interrompeu sua refeição, arregalou os olhos e perguntou:

_Por acauso, senhor é Coronel Olivério Simões?

_Como é que você sabe? – indagou Olivério, perplexo.

O mendigo jogou o prato de comida para o lado, tirou seu chapéu, deixando à mostra sua volumosa cabeleira e vociferou:

_Porque o louco tá aqui na sua frente, Coronel!

Pai e filho ficaram estarrecidos, mais ainda quando Januário retirou de dentro da sua capa uma carabina e apontou-lhes, dizendo:

_Até que enfim, assassino! Tinha até desistido de te encontrar! Nunca que eu iria te conhecer com essa cabeça toda pelada! – Olivério viu o quanto estava enganado, o vingador estava mais vivo do que nunca e, pela primeira vez pôde vê-lo frente a frente. – Tou louco sim, Coronel! Desde que vosmicê mandou sangrar meu cabloclinho!

Pai e filho se quedaram estarrecidos, ambos mudos, ouvindo os impropérios do vingador:

_Nesses anos todos, será que vosmicê também já deve ter sentido na pele a dor do que é perder filho!

Januário armou a carabina, Olivério Simões ajoelhou-se aos seus pés e, de mãos postas, lhe implorou:

_Por tudo quanto é mais sagrado, Januário! Beijo os seus pés e te peço perdão e até me esconjuro pela desgraça que eu te fiz mas, não me bota mais essa ruga de tristeza em me fazer enterrar o meu único filho que sobrou. Te dou minha fazenda, meus gados, fica com tudo isso aí que tá vendo, é minha forma de arreparar o mal que eu te fiz.

Para seu alívio, Januário baixou a arma, deu uma cuspida e murmurou:

_Poupo a vida dele só com uma condição.

_A que você quiser, diga!

_ Eu quero te ver levantar daí do chão, ir lá para fora e correr! Pela primeira vez na minha vida eu quero ver um coronel correr de mim!

Atendendo-lhe o pedido, Simões se levantou, deixou a varanda e, com suas pernas pesadas, tentou correr em meio àquele terreno acidentado de terra batida. Não satisfeito, Januário berrou:

_Eu mandei foi correr! Daí é passinho de quem vai pegar boi no curral!

Simões procurou acelerar o passo mas não foi muito adiante. Bastou um tiro de Januário para que este tombasse ao chão. Trêmulo, e sem reação, Samuel pôde ver aquela estranha figura escrever o nome do seu pai no cabo da espingarda, ao lado do nome dos irmãos falecidos.

_Cumpri a promessa que fiz com seu pai e você pode continuar vivo. E leva de lembrança essa espingarda que me serviu prá cumprir a promessa de vingar a morte do seu filho.

A seguir, Januário subiu no primeiro cavalo que viu ali em frente a fazenda e desapareceu num galope pela noite afora, levantando poeira.

A notícia de que Simões havia sido vingado chegou dois dias depois ao vilarejo de Garças. Para aquele povo simples, o autor da façanha deveria ter sido outro, Januário já deveria ter morrido e abriu caminho para que os inimigos do antigamente temido coronel Olivério Simões fizessem o resto do serviço. Mas viram que estavam enganados quando, uma semana depois, a estranha figura apareceu no centro da cidade. A passo lento sobre o cavalo que pegou na fazenda, a princípio, sua presença causou medo. Porém, em toda sua humildade, ele passou pelas ruelas cumprimentando cortesmente a todos. Seus olhos ficaram marejados ao rever a cidade onde nasceu e cresceu, a praça onde brincava com seu filho e a igreja onde se casou com a amada Saninha de quem estava louco de saudades. Ao parar em frente ao bar do Tião, desmontou e mirou ao redor. Observou o silêncio fúnebre que se fazia na praça, as pessoas ali com os olhos voltados para ele que, antes de entrar no bar, retirou de sua sacola o espelhinho e a tesoura que há anos o acompanharam naquela sua longa jornada de vingança. Estarrecido, o povo admirava ao ver aquele indivíduo que ia cortando mexa por mexa dos seus cabelos e da barba, aos poucos mostrando a sua verdadeira face, ou seja, os traços de um indivíduo humilde e sereno que um dia chorou a morte do filho. Ao cabo de meia hora, todos os presentes ali na praça puderam rever a face do companheiro que deixou aquela feição demoníaca. Todos ainda silenciosos, perderam o medo daquela lenda viva quando Januário entrou no bar e pediu:

_Bota uma pinga aí prá mim, Tião! Quero comemorar que, finalmente, cumpri minha promessa de acabar com a raça daquele coronel que judiou de minha família!

E o que se seguiu foram vivas e aplausos, finalmente o herói estava de volta, recebendo abraços e mais abraços de amigos saudosos que também se viram livres do poderio dos Simões. Nem quando perdeu seu filho, chorou com tanta emoção diante da homenagem dos amigos. Passada a emoção, ele perguntou:

_E Saninha, como é que tá?

Novamente o outro silêncio. Por mais que Januário tivesse insistido, ninguém disse nada, tentou mudar de assunto, ele logo entendeu, pensou que certamente Saninha deveria ter sido outra vítima da vingança dos Simões contra ele. Decidiu montar no cavalo e voltar à sua casinha para matar a saudade, pensando não encontrá-la mais ali. Ao sair, alguém comentou se perguntou:

_E agora? Que é que ele não deve fazer na hora que ver a Saninha casada?

_Que Deus proteja a vida e a família do Antônio! – exclamou o dono do bar.

Ao chegar em frente sua rocinha, viu tudo como estava. A mesma casa, muito bem conservada e com a chaminé fumegando. O curral no mesmo lugar, o mesmo jardim muito bem cuidado e as samambaias choronas penduradas na varanda. No quintal, um garoto de cinco anos brincava com seu irmãozinho caçula, tudo muito quieto, muito silencioso, ele perguntou a ambos:

_Papai e mamãe estão em casa?

Quem apareceu para recebê-lo foi seu velho amigo Antônio, companheiro de bar e catiras. Ele apenas encarou-o com um certo olhar de medo, ao que Januário saudou-o dizendo:

_Estou de volta, Antônio. Só estou aqui de passagem para ter notícias de Saninha. Coitadinha, por minha causa, o cachorro do Simões deve ter feito das dele com ela, não foi? Saí daqui feito um cachorro bravo, não arrependi do que fiz, mas devia ter me preocupado com Saninha. Me diz prá onde ela foi ela, ou se tá viva.

_Saninha está aqui, Januário.

O vingador sentiu uma pontada no coração. Seus olhos lacrimejaram, finalmente, depois de cinco anos poderia vê-la. Perguntou:

_Aqui, onde?

O garoto mais velho chamou: “manhêêêê…!”, eis que Saninha apareceu na porta, arregalou os olhos e não se conteve:

_Januário, de Deus! É você?

_Mãe? Eu vingando a morte do nosso filho e volto prá te encontrar casada?

Saninha perdeu a fala, pensou que iria desmaiar mas tentou se conter, respirou fundo para, então, respondê-lo:

_E como é que você queria me achar, Januário? Aqui assentada, te esperando com cafezinho quente e a cama pronta? Homem, de Deus! Oito anos que cê tá fora sem dar notícia, eu só aqui ouvindo dizer das mortes que cê fez! Num sabe como é que foi difícil prá mim ficar aqui aturando ameaça daquele povo do Simões me chamando de mulher de assassino! Passei quase que um ano escondida daquela gente e o povo daqui tentando me proteger de tanta ameaça! E num foi só isso, era notícia aos montes de que cê andou matando mais gente por esse sertão afora!

_Isso daí é mentira! Por essa luz que me alumeia minha promessa de vingança cumprida foi só mesmo com os filhos daquele cachorro que, a uma hora dessa deve de tá no inferno!

_E eu sabia lá o que era mentira e o que era verdade, Januário? Também, quantas vezes me chegou notícia aqui de que cê já tinha sido morto e eu, também sem saber se era mentira ou verdade, ia lá na igreja acender uma vela prá sua alma. Prá mim cê já tinha morrido, não voltava mais. Queria que eu ficasse aqui desamparada, esperando o que ia acontecer? Se eu tou viva e não fiz uma bobagem de acabar comigo, é graças ao Antônio que soube me ajudar na hora que eu precisei. E esses meninos que cê tá vendo aí é filho meu e dele e eu tou em paz com Deus porque quando fiz isso já nem sabia mais se tinha marido. Desse modo é que eu consegui esquecer o inferno que virou minha vida depois que vosmicê sumiu de vista e nunca mais deu notícia. E agora que voltou, vai fazer o quê? Querer me matar?

Ele apenas abaixou a cabeça, enxugou uma lágrima que iria rolar do seu rosto e balbuciou “tenho que compreender”. Mas nem por tudo aquilo chegou a se arrepender de ter feito o que fez. Não tivesse tomado a atitude de sair pelo mundo afora para vingar a morte do seu filho, certamente a família Simões reinaria soberana na região, seria capaz de nem mais ter aquela casinha, poderia estar abandonado pelo mundo carregando nas costas o peso da humilhação. Não tinha mais a esposa, não havia mais lugar para ele naquela casa e tampouco naquela cidade, para onde ir? Numa decisão relâmpago, tal qual a que tomou no dia em que saiu de casa, pensou consigo, tantos anos vivendo como um eremita andarilho, havia se acostumado, a mata havia se tornado o seu lar, era para lá onde deveria voltar. Ele apenas se sentou no cavalo, e se embrenhou de novo pelo sertão, retornando à vida solitária. Nunca mais voltou e tampouco deram notícia dele, nem mesmo sabem se já morreu.

MAURO ALVIM, como todo bom mineiro, adora ouvir e contar causos do interior, principalmente na pequena Iguatama, à beira do Véio Chico, que tomou como sua cidade de coração. Desde garoto, ouvindo histórias das suas tias, decidiu também criar as suas histórias em forma de contos, mas como dramaturgo estreou em 1988 com o teatro de revista “Com Jeito Vai” e a partir daí não parou mais, tendo levado aos palcos peças no estivo vaudeville que fizeram muito sucesso de público. Mas descobriu seu estilo ouvindo os causos dos moradores nas barrancas do Rio São Francisco, tendo escrito O diabo também faz milagre (publicada pela revista SBAT), A mulher das sete saias, A volta do que não foi, Até o santo perdeu a cabeça, Rabo Preso, muitos destes textos foram adaptados para o cinema em curta metragem. Min eir&iacu te;ssimo foi seu livro de estreia na literatura, onde este conto está publicado. Bacharel em direito, atualmente vive com sua família em Belo Horizonte, onde, aposentado, tem-lhe sobrado tempo para se dedicar não apenas à literatura, mas também à música e às artes plásticas como pintor.
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