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Essências por Martha Moraes

Um conto de Martha Moraes

Havia um sensível jardineiro, em tempos de clausura, que era muito admirado pelo seu cuidado com as plantas. Esse homem cuidava das flores com tanto carinho, calor e atenção, que Camélias, Jasmins, Rosas e Margaridas se tornavam as flores mais lindas da região.

Com a sua primeira flor, ele aprendera que não bastava água e adubo. Elas eram sensíveis e, para desabrocharem, precisavam de amor. Então, era assim que ele fazia. Seu cuidado estava desde a escolha da semente até o sorriso recíproco das pétalas, com suas múltiplas flores brilhando no orvalho. Quando as flores finalmente desabrochavam, o jardineiro as admirava tanto, mas tanto, que cessava com os cuidados para somente contemplá-las. E ao ver que as flores começavam a minguar, ele sentia medo de perdê-las. Temia ainda mais quando pensava no que elas poderiam se tornar com o tempo: flores secas, murchas, feias, com espinhos. Então, ele arrancava-lhes as pétalas, quebrava suas folhas, cortava seus caules, triturava-as. Escaldava-as em uma banheira quente e imergia-se, como num ritual, em um banho de flores e cores, que, estratificadas, choravam sem que ele percebesse.

Ao final, sem enxugar-se, o jardineiro as separava em diferentes frascos, flor em flor, embevecidas em uma sagrada solução sem cor, sem brilho, mas que exalava um agradável perfume de amor e dor. Esses frascos eram espalhados pela sua casa e pelo seu jardim. Ele desejava que, assim, cada uma dessas flores perfumasse sua vida para sempre. Sabia que nenhuma era igual à outra e queria poder sentir seus aromas, lembrar-se de cada flor por onde quer que andasse. Ele amava aquelas flores.

E assim o jardineiro vivia, confinado em sua bela casa, mês a mês. Quando passava por períodos inférteis no plantio, ele se dedicava somente à contemplação dos frascos. Às vezes, ele se envolvia tanto com os perfumes que até se esquecia de plantar novas sementes. As essências viviam num tempo que se rastejava, assim como as pragas que as perseguiam em suas vidas de flor. Cada uma em seu vidrinho. Tinham a desfiguração e o sofrimento em comum, com o perfume e um destino peculiar: exalavam uma mistura imortal de decepção, revolta, solidão, raiva, tristeza e saudade.

Certa vez, após longo período sem plantio (e, consequentemente, sem colheita), apareceu uma linda flor no jardim da casa ao lado. Era uma espécie diferente de flor, que o jardineiro jamais havia visto. Parecia um girassol, mas era marrom e seus olhos a viam negra como a noite. E brilhava. O jardineiro, muito curioso, quis conhecê-la mais de perto. A flor, por sua vez, muito segura de si, simpatizou com o sujeito. Tornaram-se amigos. Passaram a se encontrar todos os dias. Sem perceber, foram se encantando um pelo outro. A amizade foi se transformando em paixão e a paixão, em amor. O jardineiro não revivia mais seus frascos e a flor brilhava como nunca. Até que um dia, ela quis abandonar suas raízes para viver aquele amor livremente.

Então, cuidadosamente, o jardineiro arrancou aquela flor especial do jardim alheio oferecendo-lhe asas, e iniciou os preparativos para mais um paradoxal ritual de despedida e permanência. Ludibriada a ser um corpo sem órgãos, a flor aceitou metamorfosear-se. Ela amava cegamente aquele jardineiro e acreditou que seria mais feliz como essência. Fechou os olhos e anestesiou-se pelos seus últimos orgasmos, enquanto seu corpo era estratificado em micropartículas de horror. Em seguida, ele a colocou num frasco com tampa e a guardou, com muito apreço, na cabeceira de sua cama, ao lado do vidrinho de Jasmim. Depois, abriu cuidadosamente o frasco de Rosas e inalou aquela essência rosa-fosca até estremecer. Enquanto isso, a flor em decomposição já estava desbotada e sem brilho, entorpecida por uma mistura de álcool, decepção, água, mágoa, soluções permanentes, agonia, solventes e tristeza. Só conseguia chorar ao perceber em que se transformara.

Com o passar dos dias, mesmo ainda sentindo uma mistura confusa de emoções, foi tentando se recompor. Por vezes, ela até parecia se alegrar com as inspirações do jardineiro em seu frasco, mas o contentamento era pela breve abertura da tampa. Se queria um corpo sem órgãos, acabou presa em um corpo sem voz. Às vezes, culpava-se. Como pôde acreditar? Olhava à sua volta e só via mentira estampada em cada cheiro, em cada frasco. Em outras vezes, sentia como se somente ela percebesse o quanto aquilo tudo era doentio. Via que algumas essências viviam dóceis em vidros sem tampa, perdendo oportunidades de fuga. Havia ainda aquelas que criavam uma expectativa pela espera de serem cheiradas por quem as condenou ao confinamento perpétuo.

Parecia não haver mais saída. O devir da liberdade fora uma ilusão.

Agora não dava nem para voltar ao seu antigo jardim, pois não possuía mais raízes – sequer tinha corpo. Ser essência a levara à inexistência. Porém, restara-lhe ainda uma micropotência de flor: lampejo de força, brilho e sensibilidade. Quase nada. “Inútil”, diriam os mais racionais. Acontece que, justamente por ela ser uma essência, essa centelha estava concentrada.

Vagando e devaneando por dentro de si, ela se deixou afetar por essa potência e percebeu possíveis desdobramentos que exalavam em estado líquido. Pelo seu desejo em loção concentrada, ela encontrou forças para desqualificar qualquer ideia de destino. Então, da cabeceira da cama, jogou seu líquido para um lado e para o outro, e para um lado e para outro, até que conseguiu cair. Seu frasco se espatifou no chão. Logo, todas as outras essências, uma a uma, fizeram o mesmo e, finalmente, conseguiram evaporar daquele pesadelo.

 

Martha Moraes é professora de Teatro, artista cênica e produtora cultural, atualmente professora formadora na EAPE – Subsecretaria de formação continuada para professores, da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Doutora em Teatro e Educação pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Arte Contemporânea e especialista em Gestão Cultural pela UnB, a autora possui diversos artigos e um livro publicado no campo da Pedagogia do Teatro. Em tempos de pandemia, dedica-se à produção artística literária, produzindo contos e dramaturgias teatrais.  Nesta ocasião, publicou o livro de literatura infantil “O Planeta Arret e o Monstro Invisível” (editora Franco, 2020).

 

 

 

 

 

 

 

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