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BAÚ NO SÓTÃO: Abundância de estrelas no céu

Por Menalton Braff

Seus duros pés fincados na plataforma cresciam dormentes de espera. Envolto pela multidão, era quase impossível mover-se do lugar.

O reflexo do Sol a meio céu borrava com esplendores, para olhos cansados de ver como eram os seus, o letreiro dos ônibus ─ o destino que prometiam. Ao lado, de mochila às costas, o menino exibia as habilidades recém-adquiridas, gritando para a mãe o nome de bairros próximos e distantes. Sem exagero de gratidão, porque era inconsciente, Noé valia-se daquela ajuda enquanto se esforçava para mudar a posição dos pés enraizados e presos dentro de botas secas.

O menino gritou Paraíso como um alívio alegre, e a mãe sorriu. Antes que o ônibus parasse, corpos suados disputaram o espaço à beira da plataforma. Entre eles, a mãe com o filho preso pela mão. Noé reparou que ela usava uma saia fina e florida, diminuindo seu peso, então resolveu sentir calor. Com os braços em cruz no peito, pegou a blusa pela borda inferior e a retirou por cima da cabeça. Agora sim, ele respirou, agora seu corpo estava muito melhor. Mas o ônibus já partia e ele começou a sentir saudade do menino que sabia ler e de sua mãe que usava uma saia fina e florida.

Com menos gente na plataforma, Noé começou a observar. Não para distrair-se na espera, que não podia medir, mas porque o mundo se abre ante olhos abertos. Notou que havia uma imensidão de sapatos, quase todos parados na extremidade de pernas ligeiramente abertas. Os mais agitados, ele concluiu surpreso, são os menores e de cores mais alegres. Alguns, como suas botas, pareciam plantados na dureza do cimento: totalmente imóveis. A maioria dos sapatos estavam ou sujos ou foscos, descoloridos. Apenas uns poucos brilhavam como estrelas.

Mais um ônibus estacionou rangendo suas ferragens, para alegria de algumas pessoas, que passaram à condição de passageiros. A plataforma ficou ainda mais aliviada, e, olhando para a direita, Noé descobriu que, ao lado da rodoviária, havia uma praça. Não muito grande, ele percebeu quase frustrado, mas dominada por imensa figueira cuja sombra cobria todos os bancos e algumas das pequenas aleias de saibro que a cruzavam. Além da praça, os prédios escondiam o horizonte; acima dela, um céu imaculado, azul como um vidro. Estar lá, à sombra, foi um pensamento que lhe ocorreu para sentir-se mais alegre. Mas como descobrir, daquela distância, o destino de cada ônibus? Resolveu então voltar àquela neutralidade entre a alegria e a tristeza, um estado cinzento com que costumava esperar suas conduções.

Envolvido com a praça e a sombra de sua figueira, muito mais atento aos fluxos internos, sutis pensamentos, Noé assustou-se ao ver estacionando mais um ônibus. Enquanto devaneava, o mundo acontecia? Teve de afastar-se rapidamente do lugar onde estava para ler o letreiro à testa do coletivo. Suspirou aliviado: não, também este não lhe servia. Com os braços da blusa cingindo-lhe a cintura, Noé voltava para a mesma posição que ocupara todo esse tempo, mas descobriu, num surto de alegria, que, em alguns dos bancos junto à parede, havia lugares vagos. Meus pés, ele pensou de imediato e sem querer, não precisam continuar crescendo. Já havia pouca gente na plataforma, e a brisa atravessou aquele espaço farejando alguma coisa como numa caçada. Noé esfregou os braços nus com as duas mãos. Esfregou com força e aspereza até sentir que o calor voltava.

Só então, com o corpo largado na tábua lisa do banco, foi que Noé lembrou-se de enfiar os dedos na barba branca. Era seu gesto preferido de meditação. Desde que chegara, muitos ônibus haviam chegado e partido. Nenhum deles, entretanto, com um destino aceitável. Tristeza, Floresta, Penha, Paraíso, Campo Grande, uma lista sem fim, mas nenhum que lhe servisse. Estava no seu direito, portanto, de sentir-se irritado. E isso, apesar de agora gozar as delícias de um assento, sem a necessidade de sentir os pés crescendo desmedidamente.

Quando apontava a soberba frontaria de um ônibus qualquer, Noé levantava-se cheio de esperança e, na beira da plataforma, ficava atento até descobrir que não era aquele o caminho que pretendia. Na segunda ou terceira vez em que isso aconteceu, Noé notou que os reflexos do sol, tão incômodos algumas horas antes, haviam-se extinguido, e ele conseguia ler com facilidade uns nomes que nada lhe diziam. Voltava para o banco coçando os braços, vítimas inocentes de sua irritação.

Da copa da figueira, toda ela uma sombra fresca, então, escorria crepitante a algazarra dos pardais, em que cada pipilo continha uma urgência de registro muito agudo. Como não se visse nem se ouvisse ônibus nenhum desde que o Sol, esbraseado, sumira num incêndio por trás de uns edifícios escuros, Noé pôde dedicar-se por inteiro à escuta do alvoroço com que os pardais ajeitavam-se para esperar a noite. Foi assim que, tendo os olhos desocupados, olhou para o céu, onde surgiam as primeiras estrelas. Naquele momento, observando bem o azul ainda claro, Noé descobriu como é o infinito. E apesar do cansaço, da irritação, ele conseguiu um sorriso satisfeito, pois era uma descoberta feita de inopino, totalmente casual.

Finalmente apareceu mais um ônibus. E esse já vinha todo iluminado. Do banco, onde há bastante tempo estava sentado, Noé pôde ler o letreiro, que indicava um lugar qualquer, de que ele nunca tivera notícia. Não foi preciso levantar-se para decidir que era mais uma decepção. O ônibus parou, abriu a porta com um gemido e iluminou a plataforma. Algumas pessoas embarcaram com seus suores no rosto e nas axilas, além da certeza de que eram esperadas em seus destinos.

Noé, sentado em seu banco, dois operários encharcando-se de cerveja e cachaça no bar da rodoviária e o balconista, eram os últimos semoventes da estação. Noé sentiu um frio que era muito parecido com uma solidão, por isso tratou de vestir a blusa. Sentindo-se um pouco mais confortável, resolveu pensar em todos os acertos que viera fazendo nos últimos tempos, o modo como se despedira dos seres e das coisas, até chegar ali, consciente de que não havia mais caminho de volta.

Os dois operários atravessaram a plataforma e sumiram noite adentro, abraçados e cantando com incongruência suas vidas ralas. Foi um vulto só, o que Noé viu, mas eram duas as vozes roucas, deterioradas. A porta do bar desceu com um estrondo e o balconista seguiu as pisadas de seus fregueses.

Com os braços cruzados no peito, Noé ainda gastou os olhos perscrutando a boca da avenida por onde poderia chegar algum ônibus. Esperou muito tempo. A plataforma era um espaço inútil, vazio, preparada para sua espera de toda a noite. Os pardais já dormiam silenciosos. Apenas de raro em raro podia-se ouvir um pipilo perdido, de quem ainda não se acomodou direito. As estrelas, bem mais nítidas agora, desenhavam navios e castelos na planura do céu.

Noé tossiu um pouco, mas apenas para se distrair. Com a mão direita tateou a extensão do banco, encolheu as pernas e deitou-se.

 

 

Menalton Braff nasceu em Taquara (RS) e radicou-se em São Paulo (Capital e interior) Formado em Letras, com pós lato sensu exerceu o magistério superior antes de mudar-se  para o interior onde se dedicou ao ensino médio. Tem 27 livros publicados, sendo nove infantojuvenis e catorze de literatura geral (contos e romances). Conquistou o Jabuti, livro do ano em 2000, com À sombra do cipreste, foi finalista da Jornada de Passo Fundo em 2003, finalista do Jabuti (contos) em 2007 e finalista do Jabuti e do Prêmio São Paulo de Literatura (romance) em 2008. Pela Editora Reformatório teve publicados Amor passageiro (coletânea de contos) e Além do rio dos Sinos (romance), livro com que conquistou o Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional.  

 

 

 

 

 

 

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