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A HORA MORTA – Por Roger Baigorra Machado

Abril de 1923. No campo iluminado pela lua cheia, a sombra do imenso umbu estocava lentamente a ponta da coxilha. Como se fossem lanças, as negras pinturas dos galhos da árvore deslizavam pelo chão, escorrendo incólumes por sobre rosetas e guanxumas, cravando-se na elevação que iniciava trinta metros adiante.

Do umbu, facilmente dava para ver o vilarejo e os seus casebres. Habitações feitas de madeira dos matos e com torrões de barro preto das sangas ao redor. Os ranchos, em sua maioria, eram de apenas um cômodo, divido por um lençol ou couro de boi, de um lado, a cozinha, e de outro, o quarto. Eles ficavam espaçados como bois no pasto, do umbu, via-se também,  o rancho de Eulália e Bernardo. O casal morava na primeira habitação da entrada da vila.

Uma pequena construção feita de pranchões de madeira, recortes de cedro e canjerana, sustentado em paredes sem pintura, onde, pelas frestas das tábuas, via-se de longe o desenho dos riscos iluminados pela luz do candeeiro da cozinha. Sobre o telhado, feito de capim santa fé, partia lento no tempo um rastro da fumaça do fogão a lenha, serpenteado no escuro, deixando a vida, economia interna da família, verticalmente aparente do lado de fora.

A vida dentro da casa eram as sombras nos riscos de luz do vão escuro das madeiras.

Bernardo, o marido de Eulália, retirou do bolso um relógio. Ainda faltavam 15 minutos para as quatro da madrugada. E num ritual involuntário, lavou o rosto numa bacia de louça e depois abriu a porta da cozinha num puxão forte, fazendo um barulho que podia ser ouvido nas casas vizinhas. Era uma porta de madeira de angico, pesada, que raspava no chão de cupim batido toda vez que era aberta. Da entrada do rancho, parado na porta, Bernardo ficou olhando o campo cinza de lua cheia e a silhueta do umbu no horizonte. Ao lado da porta, bem deitado num pedaço de pelego, estava o cusco, um mestiço de ovelheiro com cimarrón.

O cão, que era um companheiro de muitas das andanças de seu dono, dormia quieto, enrolado num fedor de zorrilho.

Dentro do rancho, Eulália se movia numa dança pela casa, remoendo a sua angústia nos barulhos domésticos do início do dia. Tão logo Bernardo retornou para o interior do rancho, sua esposa veio e lhe alcançou a cuia do mate, ele se sentou ao lado do velho fogão. Sem dizer nada, ficou mateando os pensamentos no calor da cuia feita de porongo escuro.

Ao fundo, ouvia-se os cantos de uns quero-queros dando o alarme de que alguém ou algum animal estava cruzando por perto dos seus ninhos. O 3° Distrito de Uruguaiana era um lugar calmo e distante de tudo, no centro da vila, um amontoado de pequenos ranchos e casebres construídos numa parte lisa e levemente elevada de um extenso prado verde.

Chamavam o lugar de Plano Alto. Era uma vila sem linha de trem, sem hospital ou estradas.

A maioria dos moradores eram peões que trabalhavam nas estâncias ao redor, havia também os changadores, homens para todo o serviço, e os mascates, vendedores que abasteciam  a vila e as redondezas com as miudezas produzidas localmente ou buscadas na cidade. Para as bandas do cemitério, apartados, moravam os idosos e os adoentados, homens e mulheres do campo, já sem forças para o trabalho bruto da campanha.

Bernardo era Capitão da Brigada Militar e, há pouco tempo, também o Intendente do 3° Distrito de Uruguaiana. Filho de colonos alemães, nasceu em Viamão e ingressou na Brigada Militar em 1913, na época com 20 anos. Em 1918, foi enviado pelo Coronel Affonso Emílio Massot para a fronteira com a Argentina, veio junto a outros seis brigadianos, tinha o objetivo de dar suporte aos fiscais da alfândega que estavam sofrendo ataques de toda ordem.

Em Uruguaiana, Bernardo perdeu as contas de quantas vezes trocou tiros com os contrabandistas que subiam e desciam o rio Uruguai.

Ficou famoso na cidade pela boa pontaria, especialmente, depois que ele prendeu sete contrabandistas correntinos e os colocou amarrados na Praça Paysandu, bem na frente da Capela do Porto, feito que virou uma manchete de jornal e fez o jovem brigadiano ganhar notoriedade com a população local.

Após  três anos de serviço e de diversas demonstrações de coragem, Bernardo foi indicado por Flores da Cunha, o Intendente de Uruguaiana, para a missão de ser um intendente distrital. Iria morar no interior e guarnecer a vila do Plano Alto, lugar por onde passavam muitos contrabandistas e ladrões de gado, bandoleiros e castelhanos, quase sempre vindos do Alegrete e de Quaraí. Chegou no Plano em janeiro de 1921.

Depois do som do ronco da bomba, a cuia não recebeu novamente a água quente, no entanto, Bernardo permaneceu sentado num mocho à beira do fogão à lenha, ele parecia distante. Eulália veio e num repente retirou do rosto do marido o olhar perdido, com uma indagação que ensaiou a noite inteira.

– O que tu vais fazer? – Perguntou, pegando da mão do homem a cuia do mate e lhe alcançando um prato com pão caseiro e duas tripas de morcilla de sangue.

– Vamos ter que partir.  Não podemos ficar aqui. – Disse Bernardo, dando uma mordida num naco de pão.

– E iremos para onde? Uruguaiana?

– Não. É muito longe, creio que  o melhor seja irmos para o Ibirocaí. Podemos ficar na estância do Epaminondas, tua mãe está lá, assim ela já te ajuda com o piá. Te ajeita cedo que nós vamos antes do almoço, acho que todos irão meio que nesse horário.

– Está bem. Então vou juntar umas roupas e nossas coisas de valor. Levo num baú? Que tu achas?

– Não. Guarda as nossas coisas num saco de farinha, destes de pano, além de ser mais fácil de carregar, também vai chamar menos a atenção.

Eulália pegou um saco de farinha de dentro da tuia e saiu para coletar os pertences que iriam na jornada. Na frente da porta do rancho, o sol já despontava no horizonte e as galinhas já esgravatavam os estercos secos que adornavam toda a vila.

Antes do almoço, dúzias de carroças já se moviam na direção do Ibirocaí e das fazendas vizinhas. Como num cortejo, muitas pessoas iam atrás, à pé, umas andavam de mãos vazias, outras carregando os poucos pertences em lençóis amarrados e sustentados por sobre as cabeças, as crianças, sorrindo, corriam pelo campo e as mulheres, com as peles douradas pelo sol, caminhavam pálidas e em silêncio.

Uma tropilha humana de pessoas humildes, fugindo, amedrontadas e deixando tudo que possuíam para trás.

De longe, Eulália viu seu marido. Ele andava com pressa, revisando todas as casas da vila. Ele ia de casebre em casebre, batia palmas, entrava em umas casas, em alguns ranchos demorava um pouco, noutros ele nem chegava. Foi até o último casebre perto do portão do cemitério. Minutos depois, Bernardo retornou até sua esposa, ele chegou com o semblante fechado.

– Estão prontos? Sim. –  Respondeu Eulália, segurando o filho num dos braços e, no outro, o saco de farinha cheio de roupas.

– Pois subam na carroça do Aymone, ele também vai lá para o Epaminondas.

– Mas e tu?

– Eu não vou.

– O quê? Estás louco? Bernardo! Como assim? Como é que tu não vai? – Questionou Eulália, demonstrando nervosismo com a postura do marido.

– Não, meu amor. Eu não posso ir. Andei pelas casas. Falei com as pessoas. Ainda tem muita gente aqui. Eu contei, há mais de vinte pessoas, todos homens e mulheres adoentados, gente velha, sem parentes e sem ninguém para ajudar. Dona Maria está acamada, o Seu Firmino também, tem muita gente que nem consegue andar direito.

– Mas e eu? E o teu filho?

– Eulália, meu amor, se vocês dois estiverem bem, eu ficarei também. – Respondeu Bernardo, com um leve sorriso nos lábios.

– Bernardo, por favor. Vem! – Suplicou com os olhos cheios de lágrimas.

– Eu não posso ir e deixar estas pessoas aqui. Sou o intendente do Plano Alto, sou capitão da brigada. Eu tenho que proteger essa vila, dei minha palavra ao Doutor Flores da Cunha.

– Mas se tu ficar, vai fazer o quê? Vai lutar? Solito contra uma tropa! Tu vais morrer, homem!

– Chega, já me decidi! Prefiro ficar e morrer peleando, do que viver por ter fugido, deixando pessoas para trás. Não sou homem de fugir, nem de assombro e nem de uma briga, nunca fui! E eu não serei uma vergonha para ti e nosso filho. Farei o que é certo, e o certo nunca é fácil.

– Meu amor, por favor. Tu vais morrer aqui!

– Que seja. Se tantos antes de mim já caíram nesse chão, cairei também, por qual motivo haveria de ser diferente? Mas já te disse, chega dessa conversa. Sobe na carroça e te vai duma vez, não podemos perder tempo aqui, cada hora que passa é uma hora a menos que temos.

Eulália, mesmo contrariada, consentiu em silêncio. Afinal, tinha sido educada assim, para obedecer seu marido. Além disso, ela estava cansada, tinha passado a noite em claro, revirando-se de um lado ao outro do catre, pois não havia lado em que o seu corpo se acomodasse tendo um coração tão apertado.

Foi no dia anterior, no meio da tarde, que a tranquilidade do Plano Alto foi destruída pelas notícias de que uma grande coluna de soldados maragatos, comandados pelo temido Honório Lemes, “O Leão do Caverá”, vinha de Quaraí. Nico Changador, sempre assuntador das notícias, foi quem andava nas bandas dos Olhos D’Àgua tosquiando ovelhas, que afirmou que a coluna de soldados cruzaria bem pela vila do Plano Alto. E os relatos que chegavam de todos os lados eram assustadores. A coluna maragata vinha pilhando as propriedades dos chimangos, deixando para trás incêndios, roubos, degolados e estupros.

Falava-se que eram uns três mil maragatos, cegos de raiva, vindo diretamente na direção da vila do Plano Alto.

“Se for como em 1893”, pensava Eulália, “não pode ser, de novo não!”. Olhou para o filho que dormia sereno numa caixa de pelego, tapado com um acolchoado de lã. –  Ah, meu pequeno filho, o mundo dos adultos não é um lugar para uma alma de criança como a tua – E assim, entristecia-se ainda mais a pobre Eulália. Ela não acreditava que sua família, formada há tão pouco tempo, já estava assim, separando-se.

Lembrou-se que conheceu Bernardo numa quermesse na capela da vila em junho de 1921, apaixonaram-se e se casaram em pouco mais de um ano. Agora, tudo estava se despedaçando. Ela sabia dos horrores de uma guerra, especialmente como aquela de 1893, onde perdeu os dois irmãos e o pai. Quando ela nasceu, naquele mesmo fatídico ano, seis meses depois, sua mãe recebeu a notícia de que os dois filhos e o marido tinham morrido perto de Bagé.

De Júlio de Castilhos ela nunca recebeu os corpos, nem medalhas, tão pouco pêsames ou agradecimentos, ficou apenas com a solidão.

E viúva, com uma filha de colo, sua mãe acabou como cozinheira na estância do Epaminondas, um amigo da família, trabalhando por comida e abrigo. Na estância, Eulália cresceu ouvindo as histórias sobre 1893 e, por isso, ela tinha muito medo do que os maragatos fariam com os opositores que encontrassem no caminho, especialmente, ela temia por seu marido, que além de um Capitão da Brigada era também um chimango convicto.

O bebê chorava sem parar no colo da mãe, sob um céu sem nuvens, num clima de tristeza, a carroça partiu em tranco acelerado.

Bernardo viu sua amada partindo com o filho nos braços e carregando num saco o que lhes restava da vida. Tudo foi rápido, quase não houve tempo para um último beijo, um toque lento nos lábios trêmulos e molhados pelas lágrimas de Eulália. Mais da metade da vila partiu num rastro de carroças e carros de boi. Restaram algumas casas vazias e vários ranchos com homens e mulheres envelhecidos pelo tempo e pela lida. Incapazes de se defender, sem parentes para onde fugir, na triste sina dos velhos em tempos de guerra.

O Capitão foi para casa, vestiu sua melhor farda, juntou as armas que pôde, pediu munição aos que tinham e carregou tudo na direção da entrada da vila. Enquanto caminhava, o som do vento nos galhos do umbu chamou sua atenção, ele viu as enormes raízes da centenária árvore, o grande tronco que parecia uma trincheira e a posição diante da coxilha. Estava decidido, ali seria seu posto de guarda.

Já estava escurecendo e nenhum movimento de maragatos no horizonte. Bernardo estava sentado ao lado do umbu, tinha dois rifles Mausers carregados, um saco com um pouco de munição, uma pistola e uma espada. Ele tinha feito ali uma espécie de forte, as raízes da árvore serviam como uma barricada frontal e o tronco o protegia como um escudo lateral.

Veio a noite e o capitão foi até sua casa, pegou pão e um pedaço de morcilla, comeu, bebeu um pouco de água e retornou para a entrada da vila. Ele iria pernoitar ali, deitado sobre uns pelegos, junto das raízes do umbu, pois se durante a madrugada algum maragato aparecesse, não o pegaria desprevenido dentro de casa. O resto dos moradores da vila, todos trancados em seus casebres, angustiados, aguardavam pelo primeiro tiro.

Bernardo acordou num sobressalto, seu cachorro estava rosnando sem parar, ele rapidamente pegou um dos fuzis e começou a mirar em direção à coxilha. Tinha algo se movendo rente ao chão.

– Olha cusco! Lá vem um maragato de merda! Este bosta vem rastejando como cobra. Vou meter um baletaço neste filho da puta e deixar ele quieto. O cano do Mauser foi acompanhando o andar lento do vulto, mirou dois dedos na frente da direção para onde ele andava, mas para a surpresa do brigadiano, o sombreado não era gente, a lua descortinou um sorro, uma fêmea que cruzava com os filhotes na direção oposta à vila. Alívio. Nisso, o capitão retirou do bolso o relógio e, no reflexo da lua cheia, conseguiu ver os ponteiros dourados indicando três horas da madrugada. Como diria o Padre lá da Igreja Matriz, era o início da “hora morta”. Ao menos, foi assim que Bernardo cresceu ouvindo falar sobre aquele momento da madrugada, a hora que vai das três até às quatro. A hora em que o diabo anda pelo campo e todas as almas e assombros se deixam ver pelos vivos. “Que besteira”, pensou o brigadiano, na “hora morta eu só tenho medo é de quem tá vivo”.

De repente, o cusco começou a rosnar novamente, agora não era na direção da coxilha, o animal mostrava os dentes para outro lado, na direção do rancho em que Bernardo morava. As frestas das paredes de madeira da casa estavam iluminadas, como se dúzias de candeeiros estivessem acesos lá dentro.

– Mas que merda é essa? Quem é que tá lá no rancho? – Falou com o cão em voz baixa. E como se o estivesse compreendendo, o cusco saiu andando na frente, na direção da casa, com o corpo abaixado, pelos eriçados e dentes ainda mais à mostra.

Bernardo, maniático, abriu o ferrolho do rifle, verificou novamente se tinha cartucho, engatilhou o fuzil e se levantou lentamente. Olhou para a coxilha que ficava na entrada da vila, tudo estava calmo. Em seguida, o Capitão também começou a ir na direção do rancho, no mesmo trilho que partira o cusco. – Seria Eulália que tinha voltado? Seriam soldados maragatos que entraram na vila pela lateral ou cruzaram e não o viram nas raízes do umbu? – Quando o Capitão estava a cinco metros da porta, ele ouviu uma voz em sussurro: “Eu estou aqui”. Imóvel, Bernardo viu um vulto andando dentro da casa, como se fosse alguém se movimentando em longos círculos: “Eu estou aqui”. “Aqui”. “Eu vim te buscar”, o sussurro parecia surgir de todos os lados. “Eu vim te buscar”.

– Tu vais buscar é um tiro na cara, filho da puta. Vamos, saia daí! Vamos! Saia, seu bosta! – Gritou com raiva o Capitão.

Imóvel, o brigadiano mirou no vulto que estava caminhando dentro da casa, um tiro seco na madeira, certamente acertaria na pessoa que estava lá dentro. Tão logo começou a fazer a mira, de repente, tudo se escureceu. Restou apenas a luz da lua e o silêncio da vila abandonada. Ele já não ouvia mais o rosnar do cusco e nem a voz sussurrada. Bernardo seguiu andando lentamente em direção ao rancho, parou diante da porta da cozinha, um frio invernal tomou conta de tudo. Sua respiração deixava um rastro de fumaça no ar. Num movimento rápido, o brigadiano deu um violento chute na porta, que mesmo pesada, escancarou-se para trás, trancando-se contra a parede e o chão batido.

Depois de revisar o interior da casa e não encontrar nada, o Capitão parou na porta da cozinha. Ele tentava compreender o que tinha acontecido, foi quando ele olhou para na direção do umbu. E, para seu espanto, Bernardo viu um homem, parado ao lado da árvore, exatamente onde ele estava antes. “Eu vim te buscar”, disse o sussurro veio novamente. “Pois eu duvido tu me levar, demônio de merda!”, pensou Bernardo, enquanto levantava o Mauser. Ele ergueu o cano e enquadrou no escuro a alça de mira com firmeza, mirou na cabeça, pois queria acertar no peito. Em seguida, prendeu a respiração, firmou no ombro a coronha e apertou o gatilho rapidamente.

Foi um disparo de quase setenta metros, o vulto deu um salto para trás e caiu no chão. Num movimento mecânico, o brigadiano puxou o ferrolho, o cartucho vazio saltou longe, caindo sobre o chão batido, depois, pegou outro cartucho que tinha no bolso da calça e carregou novamente o fuzil. Andou em passo acelerado na direção da árvore.

Quando Bernardo chegou no local, o corpo estava imóvel, caído de bruços. O curioso é que ele não usava um lenço vermelho. Ao virar o corpo usando o cano da arma, teve certeza de que não era um maragato, o que estava no chão lhe deixou atônito. O morto usava roupas da brigada militar. Bernardo viu o seu próprio corpo, sem vida, caído sobre as raízes do umbu. “Eu já disse, estou aqui e vim te buscar”, insistiu o sussurro novamente, “não adianta tentar lutar”. O brigadiano não teve tempo de mais nada. Como uma fraqueza, sentiu um peso nas pernas e uma sonolência insuportável, tudo foi se escurecendo. Acordou no dia seguinte. O sol já estava alto. Eram nove horas da manhã. A vila do Plano Alto seguia silenciosa e no campo os quero-queros voavam nervosos.

Bernardo esfregou os olhos e olhou para o lado, não viu o cadáver, nem ouviu mais a voz, olhou para o horizonte, enquanto seus olhos se acostumavam com clarão do sol, foi então que viu cerca de trinta homens armados e montados em cavalos, com lenços vermelhos nos pescoços. Olhavam na direção do Plano Alto, conversavam tranquilos e faziam gestos.

Os cavaleiros começaram a descer a coxilha, andavam sem pressa, como se estivessem num passeio.

Eram eles, os maragatos. Tinham vindo numa vanguarda ligeira. “Honório Lemes mandou um grupo na frente para ver se a vila teria defesa”, pensou Bernardo. E ela tinha. Os soldados de Honório Lemes começaram a andar na direção da vila. Nos três primeiros disparos de Mauser, três corpos de maragatos se estenderam no chão. A vanguarda demorou para perceber de onde vinham os tiros e abriu a formação, cavalgando campo a fora e, desorganizados, fugiram centenas de metros. Na vila, os moradores, nas portas dos ranchos, assistiam aquela cena insólita, um homem apenas, enfrentando um exército em defesa de toda uma vila. Os tiros se multiplicaram rapidamente, nuvens de fumaça na coxilha antecederam o cheiro de pólvora queimada que entrou na vila. Bernardo não deixou os maragatos entrarem no Plano, escondendo-se nas raízes do umbu, ele manteve a posição por mais de uma hora. Os maragatos tentavam cercar o Capitão, mas eram seguidamente atingidos. Até que o Mauser bateu seco, o ferrolho jogou longe o cartucho, mas, infelizmente, não havia mais nada. Bernardo viu os maragatos rondando cada vez mais perto da árvore. Até que, de repente, ele sentiu uma queimação no peito, uma ardência, e a sensação de roupa molhada grudando na pele, caiu contra o tronco do umbu.  Ferido pelos maragatos, o brigadiano não teve forças para levantar a espada. Viu três homens apeando dos cavalos, em seguida, sentiu dois dedos sendo enfiados no seu nariz, sua cabeça foi puxada para trás, ele viu o céu azul do Plano Alto. Foi degolado e abandonado ali mesmo, por sobre as raízes da árvore.

Naquele dia, a vanguarda ligeira de Honório Lemes não invadiu o Plano Alto. O maragato que estava no comando, Coronel Padão, reconheceu a coragem do chimango e deu ordem para que os demais soldados recolhessem os corpos caídos no campo. Ao todo, foram treze homens mortos pelos tiros do fuzil Mauser de Bernardo. Os homens e mulheres que restaram no Plano Alto foram até a entrada da vila com facões e pedaços de madeiras, estavam prontos para defender suas casas. Não temiam a vida, tão pouco a morte. No entanto, não houve luta. O que viram foi a imagem fosca dos cavaleiros vermelhos indo embora, partindo ao encontro da coluna de Honório Lemes para invadir Uruguaiana. Do alto da coxilha o Coronel Padão ficou alguns minutos olhando para o velho umbu e para o brigadiano morto. Talvez, tentando compreender o que tinha acontecido ali. Depois, em silêncio respeitoso, desapareceu no horizonte da pampa verde.

Em 03 de abril de 1923, a vanguarda ligeira do Coronel Padão, junto com as tropas de Honório Lemes, cercou a cidade de Uruguaiana. Por dias tentaram invadir, mas foram repelidas constantemente por Flores da Cunha e seus homens. Vendo ser impossível entrar na cidade, quando de sua retirada para as coxilhas do Caverá, os maragatos e os chimangos de Uruguaiana deram início à uma das maiores perseguições que já se viu no Rio Grande do Sul. Flores da Cunha e seus soldados cruzaram o Estado, por meses sem trégua, atrás de Honório Lemes e sua coluna.

Em suas memórias, Flores da Cunha, ao falar sobre o cerco de Uruguaiana, agradeceu ao honrado capitão da Brigada que, sozinho, fez frente ao Leão do Caverá.

No Plano Alto, tão logo os maragatos se foram, os velhos moradores recolheram o corpo do Capitão Bernardo. Colocaram-no na mesa da cozinha do rancho onde morava, trouxeram velas, rezas e ramos de alecrim, esperaram um dia, e numa manhã chuvosa o enterraram ao lado do umbu. Eulália e seu filho, que de nada sabiam, voltaram para a vila uns dias após a morte do marido. Seguiram morando no rancho por mais alguns anos. Não havia para onde ir. Até que em 1930 se mudaram para Uruguaiana, Eulália vinha todos os anos no dia dos finados, trazia flores e um saco de fumo. Ficava por horas sentada nas raízes do umbu. Conversava com o vento, contava as notícias da cidade, da alegria de quando o filho lhe deu um neto, das mazelas de ser uma mulher pobre e viúva, contava da vida sem o marido.

Com o tempo e o vento, Eulália se foi, enterraram-na na cidade. A cruz de madeira do túmulo de Bernardo se desmanchou e desapareceu.

No Plano Alto, durante muitos anos, moradores e andarilhos que cruzavam pela entrada da vila, nas madrugadas frias de lua cheia, relatavam sempre uma mesma história. Diziam que quando chegavam perto da grande árvore, enxergavam a figura de um homem uniformizado, parado ao lado do umbu. Ele ficava lá, de guarda e com o olhar  longe.

A figura do homem era imponente,  com um rifle em punho e alheio aos moradores que o observavam de longe. E o curioso é que o vulto do homem ao lado do umbu aparecia sempre depois das três da madrugada. Sempre em noite de lua cheia. Nunca ninguém teve coragem ou quis chegar perto daquele ser, apenas lhe rezavam um Pai Nosso e faziam o sinal da cruz. Todos sabiam, e também sentiam, que aquele vulto de ser humano não faria mal,  pois era o Capitão, cuja alma resistia ali, guarnecendo a vila e protegendo as almas daqueles que andavam pela hora morta do Plano Alto.

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e tem Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana, também é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia

 

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