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MAR ABERTO | Um longo modernismo

por Boca Migotto.

O debate em torno dos conceitos que envolvem o “novo”, como algo moderno, atual e contemporâneo, em oposição ao “antigo”, como algo a ser superado por representar o passado e, portanto, aquilo que já é velho e deve ser superado, é, também ele, antigo no Brasil.

É preciso lembrar, contudo, que, apesar das nossas características coloniais, que sempre nos levam a mirar as novidades que surgem no eixo Europa-Estados Unidos, tal discussão não é uma particularidade brasileira. É característica de países colonizados seguir os preceitos oriundos das metrópoles, em busca de espelhar aquilo que é considerado central nesta relação entre colônia e capital. Dessa forma, é factual a tendência que nos leva, constantemente, a substituir o antigo pelo moderno em busca de um reconhecimento auto-afirmativo acerca da nossa própria realidade. Por outro lado, a substituição do velho pela novo é uma tendência, também, geracional e ocorre sistematicamente ao longo da própria história da humanidade. De certa forma, é até saudável, uma vez que questionar velhas tradições, e o conservadorismo, em si, permite rupturas que nos fazem avançar rumo a novos horizonte. Trata-se, portanto, de um tema complexo que necessita ser percebido em sua inúmeras nuances. Algo que não cabe nesse espaço, obviamente, mas que eu utilizo como introdução para falar um pouco sobre a influência da Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrida há pouco mais de cem anos, com a construção de Brasília e de um Brasil que, naquele momento, ansiava por se vender ao mundo como um país contemporâneo ao seu tempo. Moderno, no sentido geral da palavra.

Uma das áreas onde esse tensionamento entre o velho e o novo ocorre com muita força é nas artes. Este se faz presente, na Europa, a partir do surgimento do movimento modernista o qual, por sua vez, também influenciará o Brasil. É o “novo” europeu influenciando o “novo” latino-americano. Mesmo assim, por aqui, a novidade já chega com uma roupagem datada embora, é preciso admitir, represente, a exemplo do que ocorreu na Europa, uma ruptura conceitual em relação à arte praticada no Brasil até então. Nesse sentido, o modernismo que nasceu na Europa em fins do século XIX, afirmando o artista como um agente autônomo, que por se apresentar como vanguarda das tendências culturais, está intimamente atrelado ao caráter militante, repercute com força no Brasil da década de 20. Este artista europeu que propõem a inovação e experimentação nas artes, em especial na pintura e na literatura, que se apresenta como libertário e antiacadêmico, nacionalista e em sintonia com as questões sociais do período, praticando uma arte fragmentada, é percebido como um ser revolucionário e utópico por excelência, um outsider que bate de frente com as estruturas estabelecidas e acaba por apresentar novas tendências. Nas artes, desde o século XIX, então, o artista europeu de vanguarda contesta as linguagens artísticas anteriores em busca da ruptura com as mesmas. Não será diferente no Brasil.

Por aqui, portanto, tais elementos estão ligados às propostas emanadas da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Um movimento localizado, num primeiro momento, que teve como palco o Teatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 1922, onde e quando apresentou um programa de conferencias, recitais poéticos, concertos e exposições de artes plásticas que tomaram como modelo a programação dos festivais de artes futurista e dadaísta europeus. Dessa forma, a Semana de Arte Moderna apresentou uma arte em sintonia com esse mesmo movimento de ruptura que já havia corrido na Europa e acabou por influenciar, decisivamente, muito daquilo que acabou por pautar a construção de uma nova identidade do que é o Brasil. Uma influencia oriunda das artes que, por sua vez, espalhou-se também sobre a política nacional.

Liderados por Mario e Oswald de Andrade, artistas como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e outros, propunham a construção de uma arte genuinamente brasileira em consonância às propostas da vanguarda europeia, em especial, francesa. Ironicamente, no entanto, as propostas dos artistas paulistanos não eram muito diferentes daquilo que defendiam, também, os militares. Afinal, para os militares que capitanearam o levante do Forte de Copacabana, também em 1922, e a própria Revolução de 1924 em São Paulo, o nacionalismo era uma questão a ser trazida para a pauta das discussões em torno da identidade brasileiras. Dessa forma, enquanto os artistas propunham a construção de uma arte fragmentada e genuinamente brasileira, os tenentes pensavam um governo centralizador e nacionalista. Há, nessa afirmação, portanto, a essência contraditória e complementar que pautou as relações entre uns e outros.

Apesar de algumas incongruências, como se há de imaginar, entre o pensamento artístico oriundo do grupo de São Paulo com o militares, o caráter nacionalista os aproximava significativamente. Mais do que isso. Nesse sentido, provavelmente, está justamente implícita a íntima relação da vanguarda cultural paulistana com certos setores do Exército e do próprio Estado Novo, que inclusive acabará por cooptar alguns destes artistas para colaborar com a construção de uma identidade nacional. Nessa relação, também, se sustenta, provavelmente, o sucesso e a influencia da Semana de Arte Moderna sobre toda a cultura nacional. Não somente para aquele futuro próximo, como veremos logo a seguir, mas, ainda, uma influencia que, de certa forma, ecoou por décadas na cultura brasileira e que respinga em nós até hoje.

Para justificar isso, basta lembrar que na sua primeira fase, nos anos de 1950 até meados da década seguinte, na cultura brasileira temos o enunciado de um novo Brasil emergindo através da Bossa Nova, da Poesia Concreta, do Cinema Novo e, em especial, na chamada Nova Arquitetura ou Arquitetura Moderna. Nesse sentido, é possível afirmar que nos ecos da Semana de Arte Moderna, e sua relação ambígua com o Estado Novo, está presente um diálogo hegemônico, e até institucional, entre a vanguarda artística e o governo Vargas. Algo que, de certa forma, questiona o próprio conceito de vanguarda, num primeiro momento, mas que mudará seu tom quando da sua segunda fase. Assim, se durante o Estado Novo alguns desses nomes ligados à Semana de Arte Moderna contribuíram com o governo na construção de uma identidade nacional calcada na educação e na valorização dos símbolos nacionais, isso mudaria a partir da Ditadura Militar, quando a influencia dos artistas paulistanos se dará sobre novos movimentos como o Tropicalismo, a Poesia Marginal, o Teatro Oficina e o Cinema Marginal, os quais, notoriamente, contestaram o regime autoritário implantado em 1964.

Nesse segundo momento, então, diferentemente dos tempos de Vargas, os artistas se distanciam do Estado para critica-lo. Mesmo assim, justamente por conta da sua complexa ambiguidade, é ainda possível perceber que a relação entre aquilo que defendiam os artistas da Semana Moderna de 1922 e os militares que vieram a implantar a Ditadura Militar encontrava pontos de convergência. Em especial, na defesa de um sentimento nacionalista. Dessa forma, é possível afirmar que o nacionalismo e a valorização “das coisas da terra”, essa questão central para uns e para outros, vai perdurar ao longo das décadas e inclusive atravessar pensamentos e propostas de setores tão divergentes como o das artes e da política, independente do regime.

Fechado este flashfoward e retornando ao período do Estado Novo, é perceptível, também, que essa “nova arte” estava diretamente ligada à industrialização do país em um período de promessa num futuro pautado pelo “progresso”. Ordem e progresso. Não é por acaso que ocorre justamente em São Paulo, e visava encontrar uma expressão artística contemporânea e em sintonia aos desafios do emergente século XX. Nesse sentido, a cooptação dos artistas ligados ao movimento, pelo governo Vargas, soa perfeitamente plausível. Dessa forma, de um lado teremos artistas que visam romper com a arte parnasiana, europeia, em nome de um projeto artístico nacionalista, embora, ironicamente, e ainda assim, inspirados pelos mesmos europeus, e, de outro lado, um governo que necessita construir uma identidade nacional, de valorização dos símbolos e signos nacionais, em nome de um projeto de país que pretende se industrializar e ser percebido como tal. Seja pelos próprios brasileiros ou no exterior.

Assim, a construção do prédio do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro – hoje conhecido apenas como Edifício Capanema –, então Capital Federal, é apontada como um ícone desse período. O projeto foi orientado pelo arquiteto francês Le Corbusier e desenvolvido por nomes que não apenas integrarão o panteão modernista brasileiro como, também, estarão presentes, anos depois, na construção de Brasília. Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Burle Marx, Cândido Portinari, entre outros tantos nomes, emprestarão seu talento e ideias para que Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde, consiga erguer, em pleno Estado Novo, aquilo que será percebido como o embrião modernista da futura nova capital. Naquele momento, inclusive, ainda nem mesmo imaginada. Não pelos políticos do Estado Novo, certamente. No entanto, talvez, por um jovem futuro prefeito de Minas Gerais.

Jucelino Kubitschek parece ser o homem certo, no lugar certo, na hora marcada. É Kubitschek que irá conciliar o passado histórico, que precisava ser resgatado e valorizado, representado pelo período colonial nas Minas Gerais, onde foram erguidas cidades como Ouro Preto, Diamantina e Tiradentes, com a modernidade artístico-cultural que pautará o desenvolvimento brasileiro nas décadas seguintes.

Nesse sentido, o personagem Kubitschek constitui-se como uma espécie de ponte entre o passado e o futuro, sendo que esta ligará o Rio de Janeiro ao Cerrado brasileiro, onde será erguida Brasília. Pode-se afirmar, dessa forma, que há, sim, uma relação direta entre a Semana de Arte Moderna de 1922, que após contestar o ambiente artístico brasileiro a partir do Teatro Municipal de São Paulo, e servir ao Estado Novo, na Cidade Maravilhosa, será decisiva, como pensamento e ação, na concepção da nova capital federal. E que entre um evento e outro, há, antes, uma passagem por Belo Horizonte, percebida como uma espécie de caldeirão onde tudo isso será cozido em fogo baixo. O conceito de nacionalismo, a pretensão modernista em definir a identidade do Brasil a ser construído, o debate entre o antigo e o moderno, a linguagem arquitetônica e paisagista que estará presente na nova capital federal, os profissionais e artistas envolvidos nessa aventura e até o futuro Presidente da República, que irá propor e executar esse projeto, estavam ou passavam por Belo Horizonte.

É nesse sentido que Jucelino Kubitschek, quando prefeito da capital mineira, promoverá o desenvolvimento artístico afiliado aos preceitos da Semana de Arte Moderna de 1922 através de inúmeras iniciativas, todas elas concatenadas e estruturadas em nome de um projeto maior. É como se, ainda prefeito de Belo Horizonte, Kubitschek já estivesse mirando o projeto a ser executado no Cerrado brasileiro. Assim, ainda em 1924, em sintonia com o que viria a fomentar o futuro prefeito de Belo Horizonte, uma caravana formada por artistas como Oswald e Mario de Andrade, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrais visitará não apenas Belo Horizonte mas, também, as cidades históricas de Minas Gerais. Essa excursão também foi fundamental para que os intelectuais paulistas, e também mineiros, redescobrissem o Barroco mineiro, aprofundando, assim, a discussão sobre o papel e a importância em conjugar os conceitos de antigo e moderno na constituição do país do futuro. Ainda nessa mesma toada modernista, em 1930 realizou-se, no Salão do Bar Brasil, a primeira exposição de vanguarda modernista em Belo Horizonte que tinha por objetivo transformar a capital mineira em um fórum de debates em torno das tendências mais atuais da cultura.

Após a posse de Kubitschek essa tendência já presente em Belo Horizonte irá se intensificar. O agora prefeito, então, irá fundar a Escola de Belas Artes, patrocinará mais exposições e executará obras arquitetônicas modernistas como o complexo da Pampulha, incluindo a Igreja de São Francisco de Assis, o Cassino, o Iate Clube e a Casa do Baile. Mais uma vez, a exemplo do que havia ocorrido no Rio de Janeiro, estavam presentes no projeto Oscar Niemeyer, Burle Marx e, dessa vez, o pintor Candido Portinari. A Pampulha é bastante significativa nesse contexto pois, em sintonia com outras transformações sobre a arquitetura urbana de Belo Horizonte, irá marcar, decisivamente, a implantação do modernismo em Minas Gerais. Ao mesmo tempo, a construção do Museu Histórico de Belo Horizonte, em 1943, simbolizará a perfeita harmonia entre o Brasil do futuro com os preceitos do Estado Novo, valorizando a história colonial mas colocando-a na perspectiva do futuro. É nesse sentido que a capital mineira, nascida do planejamento urbano e construída sob influencia positivista e inspiração haussmaniana, mas também pautada pela modernidade, no final do século XIX, parecia ser o cenário ideal para encampar tal discussão.

Jucelino Kubitschek foi prefeito de Belo Horizonte entre 1940 e 1945, governador entre 1951 e 1955 e presidente entre 1956 e 1961. Um ascensão rápida que ainda contou com um mandato como deputado federal, em 1934, quando foi cassado pelo Estado Novo, e outro exercido entre 1946 e 1951. Após deixar a presidência, também elegeu-se senador por Goiás, de 1961 até o ano do Golpe Militar, em 1964. Ao longo de parte dessa trajetória, pelo menos desde quando assumiu a capital mineira, Kubitschek incentivou um projeto artístico-cultural que o acompanhou até a Presidência da República quando, então, conseguiu aplicar as ideias que fervilharam em Belo Horizonte, naquele caldeirão modernista, na construção de Brasília. Dessa forma, mesmo que, talvez, involuntariamente, o simples fato de o político vir da capital de um Estado marcado profundamente pelo Brasil colonial mas, ao mesmo tempo, de uma cidade construída a partir do modelo aplicado em Paris e Washington, como sinônimo da modernidade do século XIX, aproxima o velho e o novo, o antigo e o moderno. Tanto sob o ponto de vista concreto, da construção de uma cidade – em cimento, ferro e vidro –, como também ideológico, conjugando e aproximando, dessa forma, o Brasil getulista dos novos tempos que pautariam o futuro do país. Dessa forma, talvez seja possível afirmar que JK foi a ponte entre o Brasil do passado com o novo Brasil que emergia para o mundo através da sua arquitetura, cinema, música e prosperidade. Os “50 anos em 5”, na verdade, apenas foram possíveis de acontecer pois houve uma longa maturação que, em última instância, remonta à Semana de Arte Moderna de 1922.

Assim, me parece, é possível afirmar que há uma relação, seja ela direta ou indireta – também estes dois conceitos poderiam ser tensionados – entre os reflexos estéticos e culturais oriundo da Semana de Arte Moderna sobre a política brasileira. Não apenas em JK e na construção de Brasília mas, também, antes, ao longo do Estado Novo, e depois de 1964, mesmo durante a Ditadura Militar. Percebe-se, portanto, que mesmo com a democracia fragilizada pelo governo autoritário dos militares, os conceitos de modernidade e progresso seguem pautando as políticas de Estado. Mesmo que para isso fosse necessário aliar-se aqueles percebidos pelos militares como inimigos. Não por acaso, foi justamente ao longo das décadas de 1960 e 1970, após o sucesso que emanou a construção de Brasília, o período de ouro da arquitetura brasileira. Ironicamente, nosso principal nome na área, Oscar Niemeyer, que emerge como uma unanimidade nacional – e internacional – após inaugurada a nova capital, era um comunista de carteirinha. Apenas mais uma das tantas ironias que temperam essa feijoada tropicalista chamada Brasil.

Essa ironia tipicamente brasileira, então, me faz pensar que um presidente como Jair Bolsonaro, que tanto odeia e persegue os comunistas, artistas e professores, por quatro anos caminhou, dormiu, pouco trabalhou mas, sabemos agora, muito planejou um novo Golpe de Estado, sob o teto de cimento armado projetado por Niemeyer, um dos mais longevos comunistas da história do Brasil. Por outro lado, também é impossível não refletir – e se entristecer – sobre as transformações desse país que já foi, em outros momentos, melhor cuidado e imaginado. Até pelos militares golpistas de 1964. De fato, em vez de progredirmos como país, a exemplo do que tanto projetaram artistas, políticos e militares do nosso passado, regredimos a um período histórico quando a burrice e a ignorância pauta nosso presente e define o futuro do nosso eterno e inalcançável amanhã. Parafraseando outro golpista contemporâneo, “que deus tenha piedade dessa nação”.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Em 2023 lançou seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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