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MAR ABERTO | A BELLE ÉPOQUE ARGENTINA

por Boca Migotto

No senso comum costuma-se dizer que a história é cíclica. Tal afirmação pressupõe que algo que tenha, já, ocorrido no passado, virá a ocorrer novamente no futuro. Não necessariamente da mesma forma, afinal, nunca se atravessa o mesmo rio duas vezes.

No entanto, sim, é possível que atualizemos certos movimentos os quais, de tempos em tempos, vem e vão ao sabor da própria sociedade que os rege ou, por eles é sequestrada. Outra afirmação que ajuda a respaldar tal sensação é feita por Karl Marx na abertura do “Os dezoito Brumário de Louis Bonaparte”, de 1812, quando ele escreveu que a história sempre se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. O contexto ao qual Marx se referia era da política francesa do século XIX, que levou ao golpe de Napoleão III, em 1851. Talvez não por acaso, justamente o mesmo período quando começa a reflexão proposta neste texto. No Segundo Império, estabelecido por Napoleão III, Paris foi praticamente toda reconstruída. Esse período marca, ao mesmo tempo, uma significativa expansão econômica na França, impulsionada pela industrialização e pelo crescimento urbano que iria incentivar e permitir, por sua vez, um renascimento cultural o qual afirmará a capital francesa como principal expoente artístico-cultural da Europa.

A Belle Époque é um período quando a arte, a cultura e a tecnologia atingiram novos patamares. O termo passou a ser usado depois da Primeira Guerra Mundial para definir, com certa nostalgia, o mundo que existia antes do conflito. Assim, a Belle Époque duraria desde o fim da Guerra Franco-prussiana, em 1871, até o início da Primeira Guerra, em 1914. No entanto, em diversos países ela tem começos e fins diferentes deste instituído na França e em parte da Europa. No Brasil, por exemplo, que passou ao largo da Primeira Guerra, ela se estende até a Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922. Na Inglaterra, ela inicia em 1870 e termina em 1910, enquanto que nos Estados Unidos, onde a Belle Époque recebeu o nome de Gilded Age, o período durou apenas de 1873 até 1896. Já na Rússia ela inicia em 1881 e vai até 1917, ano da Revolução de Outubro, quando os bolcheviques chegam ao poder. No México ela iniciou em 1876 e acabou em 1911, sendo chamada, por lá, de Porfiliato, pois se estende, justamente, do primeiro ao último mandato de Porfílio Dias.

Apesar das diferenças quanto aos períodos e nomenclaturas, em todos esses países, e outros ainda nem citados acima, essas décadas entre o final do século XIX e início do século XX ficaram marcadas por caracterizarem um tempo de paz, inovação da produção artística, prosperidade econômica, progresso científico e muita, mas muita diversão. Não por acaso, em seu filme Meia-noite em Paris (2011), Woddy Allen faz referencia e presta uma homenagem ao período marcado por tantas transformações artístico-culturais ao proporcionar ao seu protagonista, vivido pelo ator Owen Wilson, o deleite de poder viajar no tempo e, assim, poder compartilhar mesas, copos, garrafas e algumas ideias com personalidades como Salvador Dalí, F. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Ernest Hemingway, Sara Bernard, Luís Buñuel, Pablo Picasso e outros tantos nomes que conviveram e viveram esses anos no principal cenário histórico que poderia existir para a Belle Époque: Paris.

Isso não se dá por acaso. Inúmeras são as cidades, no continente europeu, que receberam a bela época de braços abertos e várias são aquelas que poderiam ter se notabilizado por isso. Berlim e Londres, por exemplo, eram importantes centros econômicos e industriais, mas também havia Bruxelas, Roma, Milão, Amsterdã, Viena, Moscou e Zurique para citar apenas algumas e, talvez, as principais, na Europa. Nesse período, no entanto, o números de territórios que poderiam ser definidos como Estados, por exemplo, era ínfimo se comparado com a atualidade. Em 1875 não chegava a dezessete em toda a Europa, mesmo número de repúblicas na América Latina – com exceção do Brasil que ainda era uma monarquia. Todos juntos, somados aos Estados Unidos, alcançavam o número de dezenove Estados. Na Ásia podia-se contar mais quatro ou cinco e na África, com muito esforço, mais uns três Estados. Mas, com exceção do continente americano, quase todos os demais Estados, no resto do mundo, eram monarquias. E aqui não cabe fazer juízo de valor sobre o que vem a ser melhor, ser liderado por um rei, um presidente eleito democraticamente – e que democracia seria essa? –, um autocrata ou ditador, fosse ele um déspota esclarecido ou um perfeito idiota. O que importa, aqui, é compreendermos o contexto da época para fugirmos de um anacronismo que em nada nos ajuda a refletir sobre esse passado.

Nesse período de transição, portanto, também é importante destacar que a matriz energética estava em transformação. No entanto, no geral, as máquinas ainda eram predominantemente movidas a vapor e carvão. A eletricidade e o petróleo ainda eram matrizes secundárias, embora em franca expansão. Para o historiador bestseller Eric Hobsbawm, em seu livro, “A era dos Impérios”, o período entre os anos de 1875 e 1914 – praticamente o mesmo que define a Belle Époque, conforme os franceses – pode ser chamado, justamente, de Era dos Impérios, […] não apenas por ter criado um novo tipo de imperialismo mas [sobretudo, por caracterizar] o período da história mundial moderna em que chegou ao máximo o número de governantes que se autodenominavam ‘imperadores”. Se, nesse período, os principais países europeus já haviam perdido – ou estavam em via de perderem – suas colônias no continente americano e na Ásia, a África, por sua vez, ainda pertencia inteiramente aos impérios britânico, francês, belga, português e espanhol.

Portanto, numa contextualização rápida, esse era o mundo – essencialmente eurocêntrico – que serviu de pano de fundo para a bela época de paz, harmonia e muita diversão. Obviamente, a Belle Époque francesa, e mesmo de outras cidades importantes da Europa, e até dos Estados Unidos, não é a mesma que será reproduzida em territórios latino-americanos ou asiáticos. Ainda, embora, provavelmente, alguma brisa desse período certamente atravessara o Mediterrâneo, pouco ou nada se encontra, na historiografia eurocêntrica, a respeito de uma eventual Belle Époque africana. O que não é de se estranhar, afinal, em comparação com a Europa, poucos pesquisadores se preocuparam com a História da África até bem recentemente. Mesmo na América Latina, onde a Belle Époque ocorreu com relativa significância, principalmente em cidades como Buenos Aires, Cidade do México, Rio de Janeiro e São Paulo, o período é apenas um sopro daquilo que a história nos conta em relação à Europa e os Estados Unidos. Encontrar um livro específico sobre a Belle Époque argentina, por exemplo, que imaginei uma tarefa relativamente fácil devido à importância do período para o hermanos, surpreendentemente, mostrou-se algo impossível. Nesse sentido, o livro Historias de la Belle Époque Argentina (2022), de Daniel Balmaceda, adquirido em minha viagem à Buenos Aires no ano passado, embora não um livro de História mas, sim, de causos que se passaram no período, na capital argentina, me serviu como importante referencia para contextualizar o período na cidade portenha.

Provavelmente não há outro lugar no mundo que respire tanto a Belle Époque como Buenos Aires. Arrisco dizer que nem Paris se preste a tanto. Basta ir para a capital portenha com o mínimo conhecimento sobre as características estéticas desse período essencialmente importado da “cidade luz” para se perceber isso.

A caligrafia característica do período está presente em tudo, desde a fachada dos bares, cafés e restaurantes do período, que sobreviveram até os dias de hoje, como o Café Tortoni, por exemplo, até espaços contemporâneos que se utilizam da mesma estética como, outro exemplo, a tradicional Feira de Mataderos, criada em 1986. A força da influencia europeia, e nesse caso, sobretudo francesa, sobre a Argentina, está presente também na sua arquitetura e no traçado urbano das cidades, além de marcar o jeito de ser e agir dos portenhos. Apesar disso, mesmo após muito procurar livros que reflitam essa influencia, percebi a raridade de publicações que tratam do tema.

De certa forma, e uma vez colocada em suas devidas proporções, essa dificuldade de contar com uma bibliografia apropriada encontra paralelo, também, na relação entre exploradores e explorados que o nascente capitalismo vai, ao longo das décadas, imprimindo com ainda mais força às sociedades globais. Nesse sentido, se para haver uma Belle Époque que convergia os olhos e desejos do mundo para as mesas do Moulin Rouge, em Paris, era necessário subjugar inúmeros povos africanos, também a Buenos Aires, que será erguida no extremo sul da América Latina, dependerá do sangue e do suor dos povos originários, das comunidades afro-americanas e das levas de milhares de imigrantes miseráveis que atravessaram o oceano em busca de uma oportunidade que o nascente capitalismo europeu já lhes havia negado. Quer dizer, apoiando-se num paralelismo possível, é possível afirmar que a própria metodologia de escrita deste texto acabou por esbarrar na história por ele retratada ao explicitar que a dificuldade em encontrar estudos sobre a Belle Époque argentina, em relação à Belle Époque francesa, reflete, também, a relação de poder econômico que existe entre uma Argentina, latino-americana e periférica, e a França, eurocêntrica.

Não por acaso, talvez, justamente a região latino-americana apontada pelos historiadores como uma exceção é compreendida por Brasil – metade sul –, Uruguai, Argentina e Chile onde ocorreu um processo de “arianização” da sua população, seja através do casamento inter-racial, no Brasil, ou um verdadeiro repovoamento por europeus brancos-importados, no caso da Argentina. Assim, sob todos os aspectos que se olha – a História em si, o estudo sobre essa História, o desenvolvimento sociocultural de uma região, etc. – é necessário ter em conta que há, sempre, uma relação entre aquilo que é central versus aquilo que é periférico. Paris é central em relação à Buenos Aires e, portanto, assim o é, também, a História – e o estudo dessa História – de cada cidade. No entanto, em relação à Rosário, Santa Fé, Montevideo ou Porto Alegre, quem ocupa o papel central é a mesma Buenos Aires que se viu, anteriormente, periférica quando comparada à capital francesa. Justamente por isso, a Belle Époque argentina se revelou não apenas um estudo importante mas, sobretudo, necessário. Até porque, para nós gaúchos, de certa forma, e conforme será assinalado ao longo do texto, inclusive ajuda a compreendermos melhor a nós mesmos, visto as similaridades existentes entre a capital argentina e nossa Porto Alegre.

Mas sigamos, pois nessa tentativa de nos aproximarmos do ideal europeu, por aqui se pensou que o progresso dos países dependia do branqueamento das suas populações, reproduzindo um eurocentrismo deslocado do hemisfério norte para a terras temperadas abaixo da Linha do Equador. Isso, claro, cobrou um preço o qual, infelizmente, foi pago sem maiores preocupações ou complexos. A História nos mostra, no entanto, que tal percepção – salvo as devidas e necessárias exceções – estava errada. O que se desenhou, com o tempo, foi o mesmo cenário global onde uma pequena parte do planeta – no caso a Europa, agora acompanhada da gradativa importância exploratória estadunidense – progredia e diversificava sua economia e influencia internacional ao custo do resto do mundo, que por sua vez, nunca deixou de ser, apenas, uma espécie de depósito para suprir, com suas matérias primas ou monoculturas, o progresso dos primeiros. Nesse sentido, é importante perceber que, embora diretamente nem todos europeus e americanos tenham responsabilidade sobre a exploração que ocorria do outro lado do Atlântico, é necessário, sim, iluminar as mesas do Moulin Rouge, onde Toulouse-Lautrec desenhava suas musas do Cancan, para que compreendamos o essencial. Inevitavelmente, para que alguns usufruam das benesses do capitalismo – mesmo que seja apenas um inocente copo de Absinto acompanhado de um charuto – outros tantos têm que, necessariamente, sofrer inúmeras restrições.

É dessa forma, portanto, que a partir de então o planeta passa a ser dividido entre países industrializados ou em processo (eterno) de industrialização. Nesse esquema binário, claro, os primeiros transformaram o resto do mundo em produtores especializados de um ou dois produtos primários de exportação, conforme suas demandas e necessidades, prometendo-lhes o acesso futuro ao grupo dos privilegiados. No entanto, a regra aplicada reduz os países em industrialização em um permanente mercado monotemático o qual cada um cumpre seu singelo papel de fornecedor primário. Ainda mais importante, contudo, é destacar que mesmo para essa produção ínfima há capital europeu, seja como sócio das empresas latino-americanas por trás da exploração, produção e exportação dos seus produtos, seja como financiador da infraestrutura necessária para que ocorra o processo de comercialização. Quer dizer, nessa relação, os europeus ganham não uma, nem duas vezes, mas inúmeras vezes, de diversas formas.

É o lucro proveniente desse comércio extremamente vantajoso para os europeus, mas o qual, também, vai garantir o enriquecimento das oligarquias regionais, que viabilizará a construção e reconstrução das cidades europeias e americanas, bem como, como consequência de um período extremamente lucrativo para as elites, oportunizar e financiar a cultura. Não por acaso, nesse cenário extremamente complexo, o que nos leva a perceber Paris como ponto de convergência das principais características que definem a Belle Époque será, justamente, a arte. Conforme Woody Allen nos mostra em seu filme, era em Paris que se podia encontrar, naqueles loucos anos, os principais nomes da arte mundial. Por uma estranha razão, que talvez possa ser explicada, justamente, pela aproximação do contexto capitalista de uma burguesia com interesses artísticos em uma cidade reconstruída, também, a partir de tais referencias, a revolução urbanística proposta e executada por Georges-Eugène Haussmann, entre os anos de 1853 e 1870 – justamente o período do Segundo Império (1852-1870), quando Napoleão III estava no poder – contribuiu para que, em nenhum outro lugar do planeta naquele período fosse possível reunir, em uma mesma mesa, sobrenomes como Picasso, Monet, Manet, Renoir, Pissaro, Degas, Gauguin, Zola, Munch, Toulouse-Lautrec, entre outros tantos. E para ficarmos apenas nos pintores.

Os cafés se tornaram a marca registrada dessa nova Paris enquadrada por largas avenidas denominadas boulevards e uma arquitetura propicia ao lazer das classes mais abastadas. Vitrines iluminadas e cafés “bem frequentados” passam a fazer parte da cidade. Mas não só. Essa é a época da fotografia, que libertará os pintores da função de retratar a elite e permitirá, assim, o surgimento do Impressionismo; do cinema, que revolucionará a iminente indústria do entretenimento mundial; do relógio, que passará a pautar os tempos de trabalho e os tempos de lazer; da luz elétrica, que iluminará as ruas, praças e parques e fará com que as pessoas usufruam do espaço público até mais tarde da noite, “libertando” o ser humano da imposição temporal da natureza. É o tempo do nascente consumo em lojas de departamento, onde se podia encontrar os mais variados produtos manufaturados, dos trens, cada vez mais rápidos, que permitiam as viagens e, consequentemente, do turismo, para aqueles que podiam pagar pelos grand tours ou, ao menos, pelas vilegiaturas em busca do clima saudável dos balneários ingleses, franceses e alemães, sobretudo, ou das serras e alpes da Itália, Suíça e França. É também o tempo dos cabarés, onde ocorriam os shows artísticos; da publicidade, que transformava (alguns) artistas nas primeiras celebridades; do consumo liberado de ópio, maconha e cocaína, do sexo pelo prazer e da primeira, e ainda efêmera, liberação feminina. É o período que define uma transformação radical da sociedade que pode perfeitamente ser simbolizada, também, pelo declínio da nobreza real que virá a ser, efetivamente, substituída pela força do capital que construirá o futuro.

A transformação desse período foi tão intensa que, em 1914, quando inicia a Primeira Guerra Mundial, os socialistas eram o grupo parlamentar mais importante na Alemanha, na França e na Itália. Por outro lado, os aristocratas haviam perdido poder em todos os parlamentos europeus, em especial na conservadora Inglaterra. Muito disso, embora não deixasse de ser l’espreit du temps, também tinha relação direta com o protagonismo da imprensa que, amparada pela evolução tecnológica que fez surgir prensas rotativas, mais rápidas e baratas, permitiu que muitas das transformações do período fossem incentivadas através do jornalismo. A tecnologia e o estudo científico, aliados à alfabetização em massa, foram fundamentais para que o período fosse marcado por transformações significativas – e sobretudo, urbanas – que fizessem da vida de um cidadão assalariado das grandes cidades europeias, no ano de 1900, praticamente nada tivesse a ver com apenas 30 anos antes.

A Torre Eiffel, em Paris, certamente é a maior expressão desse período. Maior obra de engenharia da Belle Époque, a torre foi construída para ser – apenas, e apenas durante o evento – o pórtico de entrada da Exposição Universal de 1889-1900.

Estas exposições universais, que ocorriam periodicamente em países diferentes, eram importantes pois funcionavam como um espaço de promoção e publicidade para o progresso tecnológico. O fato de a Exposição de Paris daquele ano contar com a participação de repúblicas e monarquias demonstra, justamente, o período de mudança que significou a transição do século XIX para o XX. Inovações tecnológicas como a eletricidade, a projeção de filmes realizada pelos irmãos Lumières ou dos curtas-metragens de Thomas Edison, que ao contrário do caráter documental buscado pelos Lumières apresentava filmes ficcionais antecipando, inclusive, o que viria a fazer com ainda mais maestria, Georges Meliès, tudo isso fazia parte do leque de novidades apresentadas e exibidas às mais de 50 milhões de pessoas que visitaram a Exposição de Paris.

De fato, o período era de inovação e transformação tecnológica. A ponto de muitas pessoas afirmarem que nada mais havia para ser inventado. Mas havia. O motor a combustão interna e a melhora da qualidade do aço, que permitiu o avanço da malha ferroviária em diversos países, provaram isso e pavimentaram a estrada para os passos seguintes da revolução tecnológica. Quando tudo parecia ter sido criado e produzido, então, uma segunda revolução industrial surgiu no horizonte e, dessa vez, ao contrário do que havia ocorrido anteriormente, até os franceses souberam aproveitá-la. Não demorou muito para que o carro movido à combustão de petróleo abrisse espaço para pesquisas voltadas ao desenvolvimento do próprio avião.

Criado pelos Irmãos Wrigth, em 1903, ou por Santos Dumont, em 1906, o avião surgiu como consequência dos inúmeros avanços tecnológicos do período e vai, no futuro próximo, diminuir ainda mais as distâncias entre cidades e países. O desenvolvimento das telecomunicações, com os primeiros cabos submarinos, que passaram a ligar os continentes europeu e americano desde 1866, e a invenção do telefone, em 1876, ou mesmo a melhoria do sistema de telégrafo que, desde 1897, passou a ser feito sem a necessidade de fios, também contribuíram para que as distâncias fossem vencidas com mais rapidez. Isso tudo impulsionou as viagens mas, ainda mais importante, acelerou a circulação das ideias. A partir de então, um fato que ocorresse na Rússia, em poucas horas poderia atravessar a Europa e ser notícia nos Estados Unidos. A contribuição dessa fluidez das informações foi primordial para o desenvolvimento da ciência, tanto que a própria psicanálise, desenvolvida por Sigmund Freud, surgiu no período da Belle Époque, assim como a radioatividade, descoberta em 1896. Louis Pasteur, por sua vez, revolucionou a forma como passamos a perceber as doenças e isso abriu as portas para que se melhorasse as condições sanitárias nas cidades e hospitais, bem como a criação, anos depois, do antibiótico. Com isso a mortalidade infantil, nos países mais ricos, diminuiu vertiginosamente e, isso associado à industrialização da alimentação fez com que as populações passassem a crescer muito rapidamente. Mais pessoas, mais consumidores para uma indústria cada vez mais eficaz.

Por outro lado, todo esse desenvolvimento tecnológico foi aproveitado, também, pela indústria bélica. Diversos países se prepararam para uma inevitável guerra que estava por vir e que, historicamente, marcou o fim da bela época. Embora centrado na Europa, o conflito envolveu todas as grandes potências do mundo na época. De um lado, Inglaterra, França e Rússia – mais tarde também os Estados Unidos – e, de outro, Alemanha e o império Austro-húngaro, a Primeira Guerra Mundial não apenas decretou o fim da Belle Époque na Europa, mas redefiniu o papel dos países na geopolítica global, transformou a economia do planeta e abriu as portas para que outro conflito, ainda mais grave e letal – e definidor sobre o futuro que ainda hoje nos é presente – viesse a ocorrer algumas décadas depois quando Alemanha, Itália e Japão, desafiariam a hegemonia franco-inglesa na Europa. A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) envolveu, de forma ainda mais determinante, os Estados Unidos, que dela saíram como nova potência mundial, e até o Brasil.

Mas, retornando à Belle Époque, e bem longe da Europa e da Primeira Guerra, no sul de uma América Latina ainda em processo de descoberta de si mesma, temos, em Buenos Aires, talvez, o mais empolgante cenário urbano para o período fora do velho continente e dos Estados Unidos. Para falarmos sobre esse cenário, no entanto, é preciso voltarmos novamente no tempo pois, se na Europa a Belle Époque definiu um período de paz e pujança que surgiu com o fim de uma sequencia infindável de guerras e conflitos que perduraram até 1871, também o solo americano fora tingido de vermelho ao longo dos séculos XVIII e XIX. Após inúmeras batalhas pelas independências, ocorridas nas colônias inglesas e também nas colônias espanholas do continente americano, três grandes guerras marcaram o jovem continente ao longo de um mesmo período. Na América do Norte um conflito civil que ceifou milhares de vidas no recém fundado Estados Unidos da América, a Guerra de Secessão (1861-1865) e, na América do Sul, a Guerra do Paraguai (1864-1870), que envolveu quatro países, exauriu as contas públicas de todos envolvidos, arrastou o Paraguai para uma situação social da qual, ainda hoje, tenta se reerguer e, inclusive, influenciou a queda da monarquia no Brasil. Apesar da gravidade dessas duas guerras, no entanto, é preciso também lembrarmos da Guerra Franco-mexicana (1861-1867), não menos sangrenta, não menos importante para a história do continente.

Portanto, assim como ocorrera na Europa, também sobre as américas pairava um sentimento de cansaço em relação às guerras e um clima de necessária transformação social. E o modelo para essa transformação, obviamente, seria Paris.

Principalmente após a reestruturação urbana da cidade, planejada e executada pelo “artista-demolidor” – Georges-Eugène Haussmann – que reconstruiu toda parte central da capital francesa – com exceção do bairro judeu (e medieval) do Marais – mobilizando, para isso, recursos financeiros oriundos da burguesia local que, por sua vez, obviamente, sairá desse processo ainda mais rica e poderosa. Ao final da execução do projeto, como não poderia ser diferente, as classes mais pobres – trabalhadores, desempregados, imigrantes –, os mesmos que construíram essa nova Paris, foram empurrados para fora do perímetro urbano da nova cidade, para viverem em situação precária enquanto, a elite, e aqueles que poderiam pagar pelo cenário da bela época que se desenhava, viviam e deslocavam-se por largas avenidas, calçadas e parques arborizados onde estavam localizados seus apartamentos aquecidos por um moderno sistema de calefação.

De certa forma – cada processo com suas particularidades – não deixa de ser muito diferente do que ocorreu em Buenos Aires, cidade que foi erguida pela oligarquia local composta, sobretudo, por ricos estancieiros e agricultores argentinos em busca de consolidarem a capital como vitrine de um país rico, culto e, sobretudo, europeizado, bem como, claro, por europeus que, novamente, viram nesse processo uma oportunidade de investirem seu capital excedente. A ideia era construir uma capital latino-americana que espelhasse as metrópoles europeias, afinal, de nada adiantaria à elite local acumular capital se não havia – se não há – um cenário onde exibir seu dinheiro e desfilar seu poder. Por isso, embora grande parte da oligarquia portenha realizasse viagens para a Europa, e lá passasse temporadas em grand tours pelas principais cidades do velho continente, era necessário construir, em meio a la pampa, uma capital que fosse percebida como espelho do que havia de melhor na Espanha, França e Inglaterra, principais referencias latino-americanas do período. Até porque, uma vez regressados da Europa, essa elite privilegiada queria, em solo americano, reproduzir os costumes e práticas do velho mundo. Dessa forma nasce a Buenos Aires de hoje, segundo alguns, um pastiche mal resolvido – ou bem resolvido, conforme o olhar de cada um – de uma Europa civilizatória. Seja pastiche ou não, é preciso admitir, Buenos Aires é uma cidade linda que resiste a décadas de pauperização da Argentina sem perder seu charme. E convenhamos, até o pastiche pode ser original.

Assim, através do dinheiro oriundo da exportação agrária e sobretudo da pecuária, essa elite conseguiu, sim, reproduzir uma espécie de mescla parisiense, londrina e madrilena em solo americano, se utilizando, para isso, da força dos milhares de imigrantes europeus que aportaram em Buenos Aires a partir dos primeiros anos do século XX. Nem mesmo o Rio de Janeiro, sede do Império do Brasil e capital da futura república, conseguiu fazer frente ao desenho urbanístico de Buenos Aires que, por conta do clima temperado – ao contrário do tropicalismo carioca – realmente se aproximava muito mais da atmosfera europeia. Os cafés e cabarés, que como vimos acima, nesse período se tornaram uma instituição francesa e foram retratados por inúmeros pintores impressionistas, também passaram a pipocar pelas ruas centrais de Buenos Aires e se tornaram palco para toda e qualquer expressão artístico-cultural e social que pudesse aproximar a capital portenha da realidade europeia.

Não se tratava, obviamente, de uma exclusividade argentina. Toda grande cidade da época buscou, conforme sua capacidade de investimento, espelhar o projeto haussmaniano. Sandra Pesavento, historiadora porto-alegrense que nos deixou prematuramente, nos mostra isso em seu livro “O imaginário da cidade”, ao afirmar que a cidade-luz foi referencia urbanística para diversas cidades no mundo, em especial Nova Iorque, Rio de Janeiro, Buenos Aires e, por que não, também Porto Alegre. Mas esse caso de amor era ainda mais antigo que a Belle Époque. Trata-se de um namoro que remonta aos tempos de Napoleão, quando Paris e os franceses, por meio da força imposta pelo Império, tornaram-se referencia cultural em toda Europa. Portanto, ao pensar no Rio Grande do Sul, que por suas características culturais, regionais e econômicas, muito se assemelhava ao argentino, é possível afirmar que mesmo antes de Porto Alegre, quando a cidade de Pelotas era a principal referencia cultural da província de São Pedro, levada em conta as devidas proporções com a Buenos Aires dos argentinos. No entanto, por mais que Pelotas, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Santiago ou Montevideo tentassem reproduzir a atmosfera parisiense no continente sul-americano, foi Buenos Aires que melhor espelhou – e até hoje conseguiu conservar – a Paris de Haussmann. Para isso, claro, foi preciso capacidade de financiamento, um Estado interessado no projeto e uma elite disposta a investir. Como vimos, no período, esses três elementos se encontravam na Argentina. A exportação da carne rendia muito dinheiro ao país, o governo de Domingo Sarmiento desejava urbanizar as cidades, havia interesse internacional em investir na infraestrutura do país e a elite pecuária, que cada vez concentrava mais a riqueza, percebeu o bom negócio – business and pleasure – que havia à sua frente. Por isso, já no início do século passado Buenos Aires estava preparada para se tornar uma cidade referencia na América Latina. Do ponto de vista político, no entanto, é preciso lembrar que nem tudo eram flores na Argentina desse período.

O caos político e as disputas constantes pelo poder são uma característica argentina que atravessa toda sua história. Por isso, é impossível falar do período sem lembrar que o Presidente que sucedeu Bartolomé Mitre, Domingo Faustino Sarmiento (1868-1874) – ex-Embaixador da Argentina nos EUA, Ministro das Relações Exteriores, Senador e autor do livro “Facundo: civilização e barbárie” (1845), obra essencial não apenas para a Argentina, mas também para a América hispânica –, voltou-se para um plano nacional de incentivo à educação, ferramenta fundamental, segundo ele, para o desenvolvimento da nação. Para isso, Sarmiento promoveu a construção de escolas primárias em todo o país e defendeu a criação de um sistema educacional público e gratuito, que incentivou, inclusive, a educação para mulheres.

Sarmiento também foi um entusiasta da imigração europeia como uma maneira de povoar e desenvolver as vastas terras da Argentina – além de ajudar a construir as cidades –, bem como trazer novas ideias, tecnologias e habilidades para o país. Nesse sentido, o presidente argentino também promoveu a colonização de áreas rurais e a criação de assentamentos agrícolas para expandir a fronteira agrícola do país, principalmente para as terras ao sul, até então conhecidas como “territórios indígenas”. A modernização das cidades, tão almejada por Sarmiento, demandou a construção de infraestrutura urbana, incluindo sistemas de água, esgoto, iluminação pública e transporte – já vimos quem financiou e como se deu o financiamento dessas obras –, além de viabilizar a arborização das cidades e a criação de parques e espaços verdes. Apesar de suas realizações, no entanto, Sarmiento enfrentou forte oposição durante seu mandato presidencial. Foi atacado por seus oponentes políticos, especialmente os Unitaristas, que o acusavam de autoritarismo e de impor suas ideias de forma despótica, mas também os conservadores, que se opunham às suas reformas progressistas. Apesar de tanta resistência, de certa forma, Sarmiento parece que foi bem sucedido pois é reconhecido, até hoje, como um dos principais arquitetos da modernização e do progresso do país. Uma espécie de Haussmann latino-americano.

Tal lembrança nostálgica sobre o ex-presidente não ocorre por acaso. Após a Guerra do Paraguai, ao longo do final do século XIX e início do século XX, a Argentina viveu um período de extraordinário progresso. O dinheiro circundante permitiu obras de infraestrutura, tanto como investimentos público e privado (nacional e internacional), que fizeram a Argentina experimentar esse verdadeiro boom desenvolvimentista que transformaria, se não o país como um todo, as principais cidades. Parecia que o modelo agroexportador estava certo, uma vez que a economia argentina se mostrava sólida, as previsões quanto ao futuro otimistas e as cidades, em especial Buenos Aires, refletiam essa riqueza através do seu entusiasmante desenvolvimento urbano. Como vimos, a riqueza oriunda do campo foi aplicada nas cidades, percebidas por essa elite como vitrine do país que queriam exportar para o mundo. Não por acaso, situação semelhante, embora em menor proporção, ocorreu no Rio Grande do Sul onde, assim como a Argentina, o lucro provinha da pecuária, enriquecendo mais e mais a elite ligada ao campo que, por sua vez, gostaria de ser percebida pela Europa – no caso gaúcho, pelo Brasil – como culta e sofisticada.

No entanto, também de forma semelhante ao que ocorreu em toda a América Latina, nas regiões onde se deram períodos de desenvolvimento econômico, a mesma pujança econômica que marcou a riqueza e permitiu tal desenvolvimento nas principais cidades, foi, também, responsável pelo aumento do fosso que ampliaria a desigualdade social da Argentina, cicatriz, esta, que inclusive ajuda a explicar contemporaneamente o país. No final do século XIX, no entanto, não parecia evidente o tamanho do problema que a desigualdade social representaria para o futuro do país. Possivelmente, naquele momento, a construção de uma cidade europeia às margens do Rio da Prata, no sul da América do Sul, disfarçava o problema aos olhos de uma população que almejava respirar os mesmos ares cosmopolitas da Europa. As cidades, e mais uma vez é preciso chamar a atenção, a capital portenha em especial, se tornaram espaços extremamente atraentes por diversos motivos e para todas as pessoas. Aos mais pobres, a oferta de empregos e, consequentemente, as oportunidades que não poderiam ser obtidas no espaço rural, tornara-se um bom motivo para o êxodo. O simples footing pelas ruas iluminadas da capital, para admirar as vitrines, mesmo sem poder aquisitivo para consumir os produtos expostos, ou frequentar os cinemas que, nessa época, eram extremamente baratos, a exemplo do que ocorrera em Paris, enchia os olhos da população mais pobre e assalariada. Para aqueles que tinham condições financeiras, então, a capital representava um ambiente muito sedutor por conta de todo tido de atração social e diversão que ela passara a oferecer. Nesse sentido, é preciso lembrar que já em 1896, apenas um ano após os Irmãos Lumières apresentarem o cinematógrafo em Paris, já ocorria, na capital argentina, a primeira exibição de uma película cinematográfica. Ou seja, o cinema, assim como as principais tecnologias da época, atravessara o oceano numa velocidade até então impensada.

Da mesma forma, entretanto, o fariam os milhares de imigrantes europeus que perceberam a Argentina como o país das oportunidades e um solo seguro para fugirem da miséria e dos conflitos do velho mundo. Assim, a imigração para Buenos Aires, sobretudo, se daria em diversas levas. Começaria na virada do século, intensificando-se durante a Primeira Guerra e após a mesma, por conta da ascensão do Nazi-Fascismo e da miséria consequente do conflito. Mais adiante, seria ampliada consideravelmente quando estoura a Segunda Guerra Mundial na Europa e, em particular, a ditadura de Francisco Franco (1939-1975) na Espanha. Tais características imigratórias ajudam a explicar o porquê da Argentina receber tantos imigrantes europeus, de diversos países e culturas mas, sobretudo, espanhóis e italianos. Ao ponto de estas duas nacionalidades, em específico, ajudarem a definir os hábitos, costumes, a cultura, a gastronomia e até o sotaque dos portenhos.

A exemplo de outras capitais do mundo, a Belle Époque argentina, influenciada pela mescla de tantos povos e culturas, também foi marcada por um período de paz, pujança econômica e cultural, desenvolvimento de novas tecnologias e, portanto, de muita transformação urbana que se deve, também, a todos estes imigrantes.

Desde 1869 até 1914 a população da Argentina cresceu 300%, passando de 1.8 milhões para mais de 8 milhões. Só no porto de Buenos Aires, até 1914, chegaram mais de 4 milhões de estrangeiros, o que fez com que, proporcionalmente à sua população, a Argentina fosse o país do mundo que mais recebera estrangeiros no período. Dessa forma, no bojo das transformações urbanas da época, em 1913, Buenos Aires já inaugurava sua primeira linha de metrô, também a primeira em todo o hemisfério Sul, toda ela obedecendo a estrutura e estética do metrô parisiense do período. A exemplos das salas de cinema, os cafés, teatros e cabarés também proliferavam pelas ruas e bairros da capital, atendendo desde a elite, nas regiões mais centrais, até os operários, nos bairros mais periféricos. Realmente, naquele momento, nenhuma outra cidade latino-americana se mostrava tão cosmopolita e se assemelhava tanto à Paris como Buenos Aires.

O desenvolvimento do Tango, uma das principais expressões culturais do país, ocorreu nesse mesmo período por conta, também, da importância do rádio como veículo de comunicação de massa. E até a literatura desenvolveu-se vertiginosamente em uma Argentina que havia apostado, desde Sarmiento, na alfabetização do seu povo. Assim, em poucas décadas, o número de pessoas que não sabiam ler e escrever havia reduzido vertiginosamente. Se, em 1869 o analfabetismo atingia 77% da população, em 1914 esse índice já havia despencado para apenas 35% e, no caso específico da capital portenha. Tudo isso, claro, contribuiu para que já no final da década de 1910 a Argentina se tornasse um dos países mais urbanizados do mundo, embora, ao mesmo tempo, o país americano com sua população mais centralizada nas cidades. Todo esse progresso, no entanto, não contribuiu para que outros problemas deixassem de surgir. Além da ampliação da desigualdade social, a xenofobia se apresentou como um fenômeno emergente o qual, infelizmente, evidenciaria o carácter racista das elites portenhas. O preconceito voltou-se, sobretudo, contra os indígenas, a comunidade afro-americana e o próprio personagem do gaúcho, homem do campo que era percebido como símbolo do atraso – a exemplo do que ocorreu também no Rio Grande do Sul. Nem os imigrantes europeus, mesmo que brancos, por serem na sua maioria pobres, escaparam dos dedos inquisidores da sociedade portenha. Mas vai além, pois esse preconceito também evidenciará, a partir de então, uma certa esquizofrenia argentina típica.  

Nesse sentido, novamente a exemplo de diversos outros centros urbanos da América Latina, acirra-se a disputa entre o moderno e o arcaico. Em virtude da urbanização bem sucedida de Buenos Aires, tal característica típica dos países latino-americanos do período se mostrou ainda mais exacerbada na Argentina. Por isso, possivelmente a disputa entre um país dito civilizado e contemporâneo às grandes metrópoles da Europa, representado pelas cidades, mas objetivado por uma elite que, ironicamente, tem suas origens no campo, e um país atávico, selvagem, rústico e bárbaro, marcado pelo caudilhismo, pelos povos nativos e pelo personagem do gaúcho – el gaucho – o qual, por sua vez, é o símbolo maior do espaço do qual, justamente, se origina a riqueza dessa mesma elite que, agora, se vê essencialmente urbana, tenha se dado com ainda mais força na Argentina de Sarmiento. Não por acaso, ele mesmo o autor de um livro que discute o tema a partir da dicotomia civilização versus barbárie. Tudo isso, claro, vai produzir uma complexidade infinita de percepções e discussões, principalmente nos meios intelectuais, sobre o que significa ser argentino.

Haverá, num primeiro momento, a defesa intransigente pela modernidade e ruptura total com as origens campeiras. Nesse movimento, o personagem do gaúcho a cavalo – inclusive, novamente de forma muito semelhante ao que ocorre no Rio Grande do Sul décadas depois – será percebido como um inimigo a ser combatido. Num segundo momento, no entanto, alguns intelectuais mais ligados às correntes de esquerda perceberão nesse mesmo personagem elementos de coesão com a história e as raízes argentinas. Uma espécie de essência do país. Num terceiro momento, contraditoriamente, o mesmo gaúcho será adotado pelos conservadores, que o enxergarão como um símbolo nacionalista e, portanto, agregador. Embora a questão sobre a identidade argentina seja, obviamente, muito mais profunda e complexa que a ligeira ilustração feita acima, é possível percebermos, através destas sutis contradições, o quanto havia – e de fato, houve – temas a serem discutidos e elaborados para que se chegasse a alguns consensos sobre que tipo de Argentina estava surgindo da Belle Époque.

Vale ressaltar que esse conflito também marcará profundamente a Argentina até os dias de hoje afinal, é notório, e inclusive faz parte do folclore do país, o conflito entre portenhos e não-portenhos. Sobre isso, ironicamente – mais uma vez – parece que o portenho finalmente conseguiu alcançar uma certa equivalência com o parisiense, uma vez que, se na Argentina os argentinos de fora de Buenos Aires fazem questão de se diferenciarem dos nascidos na capital, também na França os franceses se dizem muito diferentes dos cidadãos ditos arrogantes e mal-educados da “cidade luz”. Naquele momento, no entanto, havia a crença, entre intelectuais de Buenos Aires, de que a capital deveria liderar o movimento progressista argentino. A civilização certamente não galopava campo afora sobre o lombo do cavalo mas, sim, transitava em suas carruagens ou calhambeques pelas ruas de Buenos Aires, frequentava os cafés e teatros da avenida Corrientes, dançava Tango e comprava seus livros em livrarias da calle Florida, que pouco ou nada deviam para as melhores da Europa. É preciso admitir que, no período em questão, Buenos Aires simbolizava o mais próximo que uma cidade latino-americana poderia chegar da cosmopolita Paris.

Nesse cenário cosmopolita e efervescente, a luta social, que tem início cedo na Argentina mas ganha força, apenas, com a chegada dos imigrantes e sua importância na construção e manutenção da cidade, irrompe com a falsa sensação de harmonia social. O primeiro sindicato criado em Buenos Aires, por tipógrafos portenhos, data de 1857. No entanto, no final do século XIX e início do século XX estes se fortalecem em diversas outras cidades e setores, ampliando as condições para que as reivindicações dos trabalhadores ganhem as ruas e forcem as transformações. Dessa forma, desde o transporte ferroviário, passando por bancários, servidores estatais, portuários, alcançando as primeiras fábricas, mas também o comércio e, certamente, a construção civil, sem distinção entre operários semianalfabetos ou funcionários diplomados, todos vão se organizar em categorias, fundar sindicatos e reivindicar melhores salários e condições de trabalho. Dessa forma, não tardou também para que surgissem as primeiras greves e, assim, se rompesse com a imagem de uma capital pacífica e sob controle.

Desde 1896, inúmeras classes de trabalhadores promoveram paralizações, mas foi em 1902 que ocorreu a primeira greve geral de alcance nacional. As exigências passavam por melhores salários, jornada de trabalho de oito horas diária, folga de final de semana e fim das medidas de repressão por parte do Estado. A resistência, obviamente, se deu em cenário de conflito. Inúmeras foram as greves repelidas pela força policial e, inclusive, com a morte de trabalhadores. Mas o tempo era de luta, e esta se dava através da organização. Assim, também os universitários se organizaram e o movimento estudantil incendiou a Universidade de Córdoba em 1918. Estes exigiam liberdade acadêmica, condições de estudo, qualidade da educação e renovação do plantel de professores. O movimento estudantil argentino e as reformas conquistadas em Córdoba inspiraram não apenas outros centros universitários no país mas em toda América Latina. Sarmiento estava certo, com a chegada dos imigrantes, além de mão de obra qualificada, viriam novas tecnologias, diversidade cultural e, sobretudo, novas ideias. Sobretudo, as ideias socialistas que dominavam o debate público na Europa. Assim, o conflito estava posto e o status quo seria, desde então, constantemente tensionado pelas mais variadas forças em todos os níveis possíveis.

Nesse momento, então, fruto do conflito e de um certo caos urbano com o qual muitas pessoas não souberam se adaptar, surge um movimento contrário, no entanto, compreensível. Assim como ocorrera na França e em diversas regiões urbanizadas do planeta – inclusive Porto Alegre, para não deixar de chamar a atenção para esses paralelos com Buenos Aires – muitas pessoas – intelectuais, sobretudo – cansadas da intensidade irracional que significava viver nos grandes centros urbanos, propaga, como tentativa de adaptar-se ao seu tempo, a utopia de retornar à tranquilidade interiorana. As lutas sociais, a confusão das ruas, o ar pesado e poluído pelas fábricas, o individualismo, tudo isso vai despertar esse certo romantismo em relação ao campo e o contato com a natureza. De certa forma, o próprio filme de Woody Allen, citado no início desse texto, chama a atenção para a natural dificuldade de lidarmos com os temas, características e necessidades do nosso próprio tempo. Em seu filme, o escritor vivido por Owen Wilson tem dificuldade de lidar com o pensamento e as práticas das pessoas que lhe são contemporâneas e, por isso, sente-se muito mais a vontade quando viaja para o passado, para uma época que lhe parece menos hostil. Uma vez na Belle Époque, no entanto, descobre que o mesmo sentimento está presente, também, nas pessoas daquela época. Assim, se ele, personagem do século XXI, nutre uma nostalgia por um tempo passado o qual ele não viveu, mas sobre o qual tem domínio histórico, o mesmo ocorre com os personagens contemporâneo à Belle Époque que expressam o desejo de terem vivido no período do Renascimento.

Deixando o cinema de lado para voltarmos à vida real, dimensão a qual, obviamente, regressar no tempo é impossível, a forma de lidar com a incapacidade de adaptar-se ao seu próprio período temporal é amenizada por um outro tipo de retorno. Se não temporal, espacial.

Na Argentina, em especial, esse sentimento pode ter sido reforçado pela publicação – e sucesso editorial – do livro “El gaucho Martin Fierro”, publicado em 1872 e escrito por José Hernandez. O conto, que a exemplo do já citado, “Facundo: civilização e barbárie, também contribuiu para com o debate sobre a identidade argentina, ironicamente, fora concebido como uma denúncia ao governo do próprio Domingo Sarmiento. Por esse motivo, também foi adotado por parte dos movimentos sociais, uma vez que o personagem, Martin Fierro, fora percebido como um rebelde com potencial revolucionário. Trata-se de um gaúcho subalterno que, após sofrer todo tipo de injustiça, rebela-se, tornando-se um fora-da-lei que luta contra a tirania dos policiais que o perseguem. Ao final do livro, ele abandona a sociedade dita civilizada – mas que o ataca – e busca refúgio entre os povos nativos que enxerga, estes sim, como civilizados e humanistas. É nesse momento, portanto, que a história também pode ter inspirado um novo olhar sobre os povos originários e sobre a vida no campo, reforçando um interesse já latente – uma vez que este sentimento não era exclusivo dos argentinos – de alguns entusiastas em romper com o espaço urbano em nome dessa relação harmoniosa com o interior do país ou, ao menos, com as áreas verdes nas periferias das cidades, onde muitas pessoas buscavam lazer em meio à natureza.

A força do personagem e da história de Martin Fierro é tamanha para o momento histórico da Argentina que foi além de simplesmente reforçar esse movimento parnasiano argentino. Também influenciou as lutas sociais, convertendo-se em um estímulo à causa operária ao mesmo tempo que passou a ser aceito, também, nas rodas intelectuais das grandes cidades e, até, pelo movimento anarquista. Quer dizer, uma discussão que, a exemplo do próprio personagem mítico argentino, o ex-Presidente Juan Peron, atravessou diversos níveis, setores e instâncias sociais em todo o país e que tem, nos espaços urbanos, um palco legítimo para o debate. Tal esquizofrenia – olha ela aqui de novo – argentina, no entanto, não é privilégio apenas da literatura mas está presente, na sociedade, de diversas formas e através das artes, principalmente. Por isso, não é de admirar que algo semelhante ocorreu com o Tango, ritmo musical o qual, embora criado ainda em 1880 como expressão artística marcada pela influência africana, e, portanto, periférica, graças ao rádio e ao cinema logo caiu, também, no gosto dos intelectuais que o introduziram nos cabarés do centro da cidade.

Nesse caso, no entanto, é preciso destacar outra característica dos povos colonizados. Contrariando a tendência natural de importarmos as expressões culturais europeias, o Tango virou moda nos cabarés parisienses e madrilenos, bem como, Carlos Gardel se tornou um artista internacional ao protagonizar filmes em Hollywood. À primeira vista, superficialmente, parece até que falamos de uma inversão de valores, uma exceção à regra. Entretanto, trata-se justamente de reforçar a regra em si, pois apenas robustece a histórica relação de dependência entre metrópole e colônia. Muito do sucesso do Tango, na própria Argentina da qual ele surgiu – e sobretudo entre a elite do país – se deve, justamente, por sua aceitação europeia. Quer dizer, “se este foi valorizado lá fora é porque algo de bom deve ter”. Esse é o pensamento colonizado. Isso, entretanto, mais do que expor a tendência colonialista da qual somos fruto e vítimas, serve, também, para evidenciar outra característica argentina – mas não apenas –, que tem a ver com a hibridez da cultura latino-americana. Constituída a partir da mescla entre a cultura hegemônica, oriunda da Europa, com aspectos locais, temos nos dois exemplos aqui citados – a literatura e a música/dança – uma espécie de cultura da mescla que está presente, também, na ideia de enxergarmos Buenos Aires como um pastiche europeu. Não por acaso, algo notadamente presente em praticamente todas as expressões culturais que permeiam o período da Belle Époque argentina.

Desde o Tango, já citado acima, passando pela importância adquirida pelos cafés no cotidiano das cidades argentinas, suas comidas principais, sempre adaptadas da culinária francesa, espanhola e italiana – o assado seria a única expressão, na culinária, essencialmente argentina embora, claro, jogar uma carne sobre o fogo remete à própria origem da humanidade –, passando pela característica eclética da arquitetura do período, Buenos Aires, principalmente, não deixa de ser o espelho que reflete a condição da mescla cultural desses dois mundos. Barbárie e civilização, Europa e América Latina. Não uma cópia, pois esta não o é e nem quando buscada se mostrou possível, mas uma permanente disputa, adaptação, transformação, conciliação, entre aquilo que é objetivado, ou seja, a cultura eurocêntrica, e aquilo que é possível alcançar quando aqui implantado. Conforme exposto anteriormente, não se trata de uma exclusividade portenha. Em toda a América Latina – e diria, inclusive, também nos EUA e Canadá – ocorreu esse processo que é natural entre metrópole e colônia. No entanto, excluindo os dois países da América do Norte, que seguem caminhos diferentes dos países latinos, posteriormente ditando referencias ao velho mundo, entre todos estes, desde o México até a própria Argentina, é Buenos Aires que potencializa tal hibridização sociocultural.

Toda essa experiência pujante, no entanto, sofreu um abalo significativo com a Primeira Guerra Mundial – embora a Argentina não tenha participado diretamente do conflito – e, principalmente, com a queda da bolsa em 1929. A Grande Depressão prejudicou as exportações, aumentou a inflação e reduziu o poder de compra dos salários. Nesse cenário complexo de crise econômica e pós-guerra, que se desenhou desde então, tem início um longo período de golpes na história política da Argentina que, certamente, vai influenciar e prejudicar sua economia. Eleito novamente em 1928, o Presidente Hipólito Yrigoyen não resistiu à pressão e caiu, empurrado por um Golpe de Estado impetrado pelos militares, findando, assim, a primeira experiência democrática do país que durara apenas quatorze anos. O que vem depois disso já não tem mais a ver com a Belle Époque mas, obviamente, segue os passos da Europa, ainda influente sobre a economia e cultura argentina. A ascensão do Fascismo e do Nazismo na Itália e na Alemanha, respectivamente, bem como a ditadura de Franco, na Espanha, seguirão influenciando a Argentina do pós-Segunda Guerra Mundial. Uma Argentina que, desde então, infelizmente, ruma para um futuro economicamente trágico o qual, consequentemente, influenciará o caos social que, pouco a pouco, dominará todo o cenário argentino. Assim, gradativamente, o país deixará para o passado distante a esperança e o sonho de se constituir, na América do Sul, um Estado forte e pujante, referenciado nos principais modelos europeus.

E aqui, então, chegamos à reflexão final desse texto. Uma reflexão que, no entanto, não pretende apresentar respostas mas, sobretudo, despertar perguntas. Levantar dúvidas, coçar os piolhos da nossa cabeleira latino-americana.

Nesse sentido, não deixa de ser simbólico olhar para esse passado em perspectiva para perceber o que a história tem a nos dizer e nos servir como base de análise para o presente. Afinal, seria possível estabelecer alguns paralelos entre o período marcado pela Belle Époque, e seu fim, com o nosso tempo presente? Naquele momento, como vimos até aqui, tanto na Europa como na América falamos de um fim de século marcado por transformações tecnológicas, revoluções comportamentais, lutas sociais, uma certa ascensão econômica em um cenário de paz internacional, decorrendo de um longo período de guerras e conflitos. A resposta a essa bela época compartilhada por diversos países, naquele momento, foi, justamente, a ascensão do Fascismo e do Nazismo, que impuseram uma guerra mundial sem precedentes, e a posterior implantação de diversas ditaduras em vários continentes. A caça aos comunistas e socialistas também é uma constante em praticamente todo o ocidente. E as constantes crises econômicas fazem parte do cotidiano dos países, cada vez mais integrados, desde a queda da bolsa de 1929.

Passadas algumas décadas após a Segunda Guerra Mundial e a certeza que outro conflito semelhante deveria ser evitado de todas as formas – está aí a criação da ONU como exemplo dessa vontade – houve, novamente, um novo período de pujança socioeconômica que é sentido pela geração baby boom, nos Estados Unidos, passa pela Europa reconstruída a partir do Plano Marshall e ecoa no pós-Ditadura Militar na América Latina da última década do século passado. Inclusive, permitindo, pela primeira vez, uma onda de governos progressistas em diversos países latino-americanos. Algo inédito para a história desse continente. Novamente vivencia-se uma revolução tecnológica radical – para a digitalização de toda a sociedade e suas práticas de produção – e novamente há uma nova onda de lutas sociais antirracistas, feministas, contra a homofobia e, sobretudo, de ascensão econômica por parte das classes sociais menos favorecidas. Mais uma vez o cenário é marcado pelo findar de um século e o limiar de outro tempo.

No entanto, retomando a reflexão proposta no início desse texto, acerca da possibilidade de a história repetir-se de tempos em tempos, como consequência a esse período progressista o qual marca o planeta após a Segunda Guerra Mundial, mais uma vez há uma nova – ou seria a mesma? – caça aos comunistas e o renascimento de uma extrema direita marcada por nuances fascistas, atualizando, dessa forma, em pleno século XXI, práticas conhecidas e reconhecidas desde o período entre-guerras. Dessa forma, teríamos, nós, latino-americanos, vivido nossa Belle Époque nas primeiras décadas do século XXI para, agora, nos encaminharmos para mais um período de terror e sombras? A ascensão internacional da extrema-direita, bem como o fortalecimento de uma política teocrática no Brasil, para falarmos do que é nosso, claramente evidencia que há um movimento preocupante ocorrendo em diversos países. A Argentina está nas mãos de um extremista e a pergunta que fica é se Javier Milei representa o nosso passado, ou seja, algo que já vivemos com Jair Bolsonaro, ou nosso futuro imediato. Conforme prometido no início desse texto, as perguntas são inúmeras. E os medos também. Certezas, no entanto, apenas uma. Se conhecer a História nos serve para melhor compreendermos nosso presente e imaginarmos um futuro possível, ao olhar para o passado da América Latina – e a Argentina aqui retratada é bastante ilustrativa – é possível afirmar que temos muito com o que nos preocupar. Une vilaine époque (uma época feia) pode estar surgindo na próxima esquina da História. É preciso, sempre, estarmos atentos e fortes.

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. Em 2021 lançou seu segundo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, resultado da sua pesquisa de doutorado. Em 2023 lançou seu terceiro livro “A última praia do Brasil” pela editora Bestiário em parceria com a Rede Sina. Atualmente é graduando em História- Bacharelado na PUCRS.
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