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Uma cidade que vivi intensamente por Jair Alan

Na realidade eu gosto mais dos amigos que eu tenho em Santa Maria. Mas eu vivi essa cidade intensamente. Eu e minha família conhecemos a cidade em 1959 quando viemos visitar uns parentes, que nos levaram a um pic-nic no então morro da casinha branca.

De lá via-se toda a cidade. Nos apaixonamos e os planos era morar em Santa Maria. Isso aconteceu em 1963 quando viemos de Resende (RJ) para morar num local que então era um arrabalde: o fim da rua Tuyuti, próximo a Borges de Medeiros. A impressão não foi das melhores. Quem construiu a casa foi um tio. Foi então que vivi uma realidade que, para um garoto de 10 anos, era assustadora. Era uma vida marginal que se avizinhava. Era próximo dos cabarés do Alberi, da Valda e do 1001 Noites, antros de lenocínio. Vi muitas prostitutas brigando na rua por disputa de “macho”.

Contudo o ambiente influenciou meu caráter. Tínhamos a única televisão do bairro comprada antes de Santa Maria receber sinal de algum canal, o que aconteceu em 1964 quando a TV Piratini instalou ume repetidora. A novidade chamou a atenção de todos os vizinhos e minha casa lotava, com gente até pelas janelas para assistir a grande novidade. Vinha gente de todas etnias e classes sociais. Pobres moradores das favelas conhecidas como Vila da Pulga e Vila da Lata, que eram próximas de nossa casa, prostitutas, cafetões, gigolôs, homossexuais… não havia como discriminar e a amizade com essas pessoas fez eu me criar sem preconceitos.

Por chamar a atenção, na minha casa formou-se dois times de futebol. Tínhamos uma mesa de ping-pong e vários torneios realizamos com a gurizada. Para os mais intelectuais, havia torneio de jogo de damas e até boxe se praticou graças a um amigo que tinhas luvas, mas não dispunha de local para a prática. Já nosso galpão enorme, constituiu-se um excelente ringue.

Estudei o primário no Grupo Escolar Gomes Carneiro. Salvou meus estudos, pois quando chegamos do Rio, as matrículas já haviam encerrado. O Grupo estava sendo inaugurado e pude estudar aquele ano. A maioria dos alunos era de meninos provenientes das favelas e da vila militar. Com eles aprendi a frequentar o Cine Imperial nas famosas sessões de preço único, infernizando o velho lanterninha Aurélio.

Para o ginásio, meu pai escolheu para mim o Maria Rocha. Não gostei. Era uma escola nova sem tradição. Não previa que essa escola marcaria minha vida. Lá fui componente da Banda Marcial Professora Maria Rocha, onde aprendi a ter disciplina, garbo e tratar as pessoas com educação. Graças ao seu coordenador, Amaury da Luz, jovem estudante de Medicina que não admitia preconceito.

No Maria Rocha participei do Centro Cívico e ajudava o Gremar sempre que me pediam. Fizemos teatro e Renor Beltrami me convidou para fazer parte da USE onde pude agilizar o teatro da entidade. Depois conheci Freire Jr. Fizemos super 8 pelas ruas da cidade, conheci a classe intelectual e fiz teatro. No curso de Comunicação Social, apoiamos o Paulo Barrios e criamos o grupo ArteFatos. A intenção era criar um grupo que discutisse a realidade, mas morremos na primeira peça. Uma crítica ferina do Humberto Zanatta e Dilan Camargo derrubou nosso sonho.

Fui para o Grupo Presença, do Freire, onde me consagrei na peça “Este Ovo é um Galo”. Fui ovacionado na maioria das apresentações. Até me convidaram para fazer comerciais. O primeiro era para a foto Imperial e foi o comercial que mais impacto causou em Santa Maria e região. Era sobre uma máquina fotográfica e eu fazia um tímido ensinando como operá-la.

Também estive no TUI (Teatro Universitário Independente), do Clênio Faccin. Viajamos por todo o estado e sempre com casas lotadas e muitas apresentações extras. Era o tempo que Santa Maria era conhecida como o melhor teatro amador do interior do Brasil.

Formei-me em jornalismo e ajudei na criação dos cineclubes da biblioteca pública e da Aliança Francesa, que tiveram vida efêmera. Um deles ainda existe. É o Cine Clube Lanterninha Aurélio. Dei o nome, embora preferisse que se chamasse Cine Clube Acende a Luz Aurélio, que era o grito de guerra de quem frequentava o velho Imperial.

A ditadura pegou meu pé. Um deputado de Santa Maria pressionou a direção da Caldas Junior, onde eu trabalhava, para me demitir juntamente com mais cinco colegas, o que aconteceu. Tentei a sorte no Rio de Janeiro, mas acabei indo para Santa Catarina onde trabalhei em Concórdia, Florianópolis, Lages e Joinville. Até me outorgaram o título de Cidadão Iraniense, por matérias sobre o Contestado. Então fui convidado pela Zaira de Grandi para voltar para Santa Maria e ser editor de A Razão.

Pude integrar a turma do cinema digital participando de duas produções: “Centopeia”, que ganhou o prêmio de melhor curta universitário em Gramado, e “1969” que levou seis prêmios no Santa Maria Vídeo e Cinema.

Desde que iniciei no jornalismo fiz crônicas sobre filmes e programas de rádio voltados ao cinema. Como cidadão, me orgulho de ter criado a AMAR (Associação Maria Rocha de Ex-alunos e professores) única entidade de ensino público estadual no RS. Congregamos colegas de várias partes do mundo num grande encontro anual, o que ocorre há 22 anos.

Hoje sou servidor da UFSM e escritor. Em meus livros a cidade sempre é uma inspiração. Vivi uma fase de efervescência cultural de Santa Maria nos anos 60/70 e me orgulho de ter convivido com Freire Jr, Yvone Freire, Edmundo Cardoso, Zanatta, Adelmo Genro Filho, Adelmo Genro pai, Sergio Jacaré, Jota Bica Larré, Ruth Larré, Ana Maria Noro Grando, Titi Roth, Antônio Carlos Machado, Luiz Carlos Borges, Orlando Fonseca, Eduardo Trevisan, Prado Veppo, Beto São Pedro, Nelson Canário Pessano, Luiz Bastos, Carlos Leandro Cachoeira, Antônio Augusto Ferreira, Vinícius Pitágoras Gomes, Nilton Monti, Antônio Carlos Lemos, Sergio Blattes, Júlio Monteiro, Marô Vieira da Cunha, Tau Golin, Rita de Assis Brasil, Circe Rocha, José Itaqui, Luiz Carlos Grassi, Rogério Lobatto, Sergio de Assis Brasil e muitas pessoas que cometo a indelicadeza de não lembrar. Prefiro pagar pela omissão, mas esses nomes que vem à memória faço questão de salientar. Infelizmente nossa mídia vive de presente e relega ao esquecimento quem já fez por essa cidade. Quando fui homenageado no Santa Maria Vídeo e Cinema, um repórter maroto me perguntou seu eu merecia a homenagem. Claro que me ofendeu, mas respondi com todo o meu currículo e ele se surpreender. “Não sabia que tu tinhas feito tudo isso”. Na maioria das vezes, não estive na linha de frente, mas sempre estive carregando bandeira. Com tudo isso, posso afirmar que vivi intensamente essa cidade. Obrigado Santa Maria, obrigado meus amigos que ajudaram a moldar meu caráter.

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