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Jaider Esbell

Um salve à sofrência brasileira: um verão escaldante e uma alienação inquietante por Graziela Miolo

Os dias são agitados. Existe uma bruma de mudanças que parece insurgirem na busca por respostas. O pensamento parece optar por um passeio. Ele oferece-se ao tempo uma agitação de quem conhece uma nova paisagem.

Aquele corpo que sustenta esse movimento insólito passa a questionar o porquê daquelas condições. De repente observa-se um desvelar que atrela-se aquilo que toma o corpo. Existe um calor. Uma retórica de movimentos no corpo que anseia por um refresco. São olhares cansados. São posturas curvadas. Algumas caretas. Parece que há um desespero no olhar. Um vestuário que parece estar sempre em lugar impróprio, por mais natural ou menor que ele possa ser. Pode ser que ele permita liberdades, mas nunca suficientes. A pele naquele encontro se repele. É quase uma condição de agonia. As ruas expressam a necessidade de fuga. Bares cheios. Garrafas, muitas garrafas pelas mesas. Isso claro, depois do sol se pôr. A noite invade, e junto dela a esperança de que a agonia possa ser aplacada toma conta. Os clubes. As águas. Elas emitem o alerta do recorte de classes. Há quem desfrute. Há quem busque. Há quem não tenho outra saída a não ser buscar abrigo numa sombra, sem imaginar um conforto mais que esse, afinal, a água pode ser artigo de luxo.

Se o frio demanda campanhas de abrigos compartilhados, agora se inaugura outras campanhas, e das águas aos animais de rua, a da doação de ventos doa-se vento artificial. Isso mesmo! Vento artificial doado. Ou seria dignidade doada?  Não há permissão para respiros. Num lampejo de sorte brota um frescor que surge de uma brisa. O frescor acaba ensejando vida. Como se houvesse chance de novamente respirar. O dia acaba. A noite termina. E a agonia delirante de que esses corpos terão outras liberdades aparece numa  catatonia alucinógena.

A reclamação do que aquele clamor suscita não é conversada, espelhada e refletida. Ela apenas invade de forma definitiva, mas ainda assim sem observar as condições que formaram aquilo. Nem de relance! Ninguém (ou raríssimas pessoas) se observa. Ninguém (ou quase ninguem) se critica. Que capacidade alienante de observar a queixa sem compreender a construção da mesma. Parece que a humanidade tem dessas coisas… que capacidade intrigante essa de desenvolver as condições de inteligência para garantir recursos reparadores, sem pensar na prevenção.

Porque é disso que se ocupa nosso maior dispêndio de energia. Gostamos muito tempo para reclamar. Uma vitimização. Mas pouco conseguimos realizar quanto à dimensão da compreensão do todo. Da condição de propor o cuidado, a atenção e, por isso, a responsabilização. Seria isso uma tendência infantil? Aquela que nos abriga nas asas das figuras parentais, demandando a outro a responsabilidade de nossas vidas?!?

E a quem agora imputaremos a  responsabilidade pelo desconforto térmico do planeta? Obviamente existem níveis diferentes de responsabilização, mas o que cada um de nós abriga de inquieto que permite apenas agradecer ao inventor do ar condicionado nas redes sociais pela sua genialidade, sem observar a nossa limitação enquanto coletivo humano? Obviamente que a reparação é um processo importante frente à dor e o incômodo.  Mas a repetição incrustada apenas no conformismo e na tentativa de reparar os danos pode ser incapacitante.

A frase: “fazer o quê, é assim mesmo, temos que aguentar”, é um tiro de mortificação na existência humana individual em qualquer situação, ainda mais no coletivo. O eco dessa frase traz a sonoridade de uma prisão.

Fato é que: esforçamo-nos ao máximo para chegarmos a sensações térmicas de 48graus nos nossos verões (e de forma irreversível, diga-se de passagem). Fizemos todo possível para isso, na nossa corrida alienante pelo progresso, e agora reclamamos da conta de luz (e com razão). Poderia dizer que “sob o céu de blues” escaldante, “assim caminha a humanidade”…, teimando em acreditar que é para um futuro melhor. E a única coisa que parece ser possível refletir é que o Brasil é mesmo o país da sofrência, um salve a Marília Mendonça, e um urgência das condições do clima para todos nós: “Esqueça-me se for capaz!”.
Na retórica da dor: salve-se quem puder!

Graziela Miolo é Psicóloga e Psicanalista. Especialista em Clínica Psicanalítica, Mestre em Psicologia Clínica. Experiência na docência superior por 14 anos, entre cursos de graduação e pós graduação. Amante de leitura e de música. Sou inquieta com tudo que mobiliza e toca o ser humano e suas complexas formas de expressão. Me considero alguém atenta à vida. Mulher e mãe.

 

 

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