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Tudo por um celular por Natália Balbino

Semana passada eu saí pra pedalar na orla no fim da tarde. Com muito suor e muita instabilidade, hoje eu sou uma favelada moradora da orla. Vamos vendo enquanto dá.

É impressionante, mas eu não consigo me acostumar. Todos os dias ao pedalar eu sou arrebatada de uma forma diferente com a beleza do Rio de Janeiro. Seja um dia ensolarado com um céu azul que faz o contorno perfeito do Pão de açúcar; seja um dia como aquele, cinza, mas ainda assim era possível ver os raios de sol alaranjados que resistiam entre as nuvens. Parei para fazer uma foto. Não só eu, mas todos que presenciaram aquela pintura às 17h38 também pararam. Celulares apontados. Aos poucos, todos foram retomando suas caminhadas enquanto eu fazia o meu post. Hoje em dia é quase impossível vivenciar um espetáculo daqueles sozinho. É preciso dividir com as centenas de pessoas que tem um interesse inexplicável pelas coisas que eu faço, falo e divulgo. É preciso também dizer para todas essas testemunhas que eu sigo resistindo, do lado de cá, morando na parte da cidade que expele pessoas como eu diariamente. Vamos vendo enquanto dá.
Foi nesse momento que eu senti o meu celular ser puxado das minhas mãos. Por um segundo, ele esteve nas mãos de Outrem e no segundo seguinte ele permanecia nas minhas mãos, intacto, onde eu podia visualizar aquela paisagem, viva na tela, mas se desfazendo na minha frente. Olhei para o lado e vi Outrem pedalando em velocidade, descontente com o fracasso da tentativa de me furtar, mas já pronto para dar o bote na próxima “vítima”.
Minha cabeça foi tomada por um sopro de vazio, uma raiva, um desejo de vingança, uma adrenalina que por um impulso alienante eu montei na minha bicicleta – que nem é minha, é do banco – e pedalei o mais rápido que pude perseguindo Outrem. Foram poucos segundos de perseguição, uma ânsia de vômito, uma falta de ar, um silêncio, um sopro de vazio na mente, as minhas pernas pedalando quase num espasmo involuntário. Alguns metros à frente, eu fui de encontro a uma viatura. Convoquei aqueles quatro trapalhões a se juntarem a mim naquela perseguição. Boné vermelho e bermuda preta. Ali! Outrem seguia seu rumo, sua correria, ainda sem conseguir executar a sua missão e por essa razão pedalava não como quem foge, mas como quem estuda o ambiente.
A viatura seguiu à caça de Outrem e por poucos instantes eu perdi ambos de vista. Uma curva adiante e lá estava ela, parada. Nesse momento, a minha adrenalina foi baixando e alguns pensamentos foram retornando à minha mente muito lentamente. Um dos trapalhões acenava para mim, eu precisava confirmar se era realmente Outrem. Ali mesmo, na orla, sem nenhum protocolo, eu precisava ficar frente a frente com aquele que, segundo o meu depoimento, tentara furtar o meu celular – sem sucesso – alguns metros atrás. Eu fui pedalando cada vez mais devagar. Era como se já soubesse. Os quatro trapalhões ostentavam diante dos passantes o seu dever cumprido. “Menos um”. “Esse hoje não volta pra casa”. Boné vermelho e bermuda preta. Era ele. Outrem preto. Negro como eu. Alguns metros atrás meu algoz. Alguns meses atrás provavelmente meu vizinho. Algumas encarnações atrás provavelmente meu irmão de quilombo. E agora, eu era o seu algoz. Por causa de um celular que ainda me faz refém de suas prestações intermináveis, eu havia entregue um irmão nas mãos do sistema. Um sistema que não reconhece a nenhum de nós dois como seres humanos. Um sistema que por algum motivo de repente parecia dar credibilidade às minhas palavras. Seria pelo celular que ainda não é meu? Seria pela bicicleta que é do banco? Seria pelo CEP que igualmente não me pertence? Seria porque o sistema precisava fazer mais uma vítima e não importava quem estava do outro lado se estivesse disposto a colaborar com essa empreitada. Eu agora era uma colaboradora do sistema e teria que ir até o fim. “Se você não for até a delegacia a gente não vai poder fazer nada com ele”. “Se você não fizer a denúncia, amanhã ele vai estar aqui e vai tentar te roubar de novo”. Outrem e eu agora éramos inimigos diante do sistema. No boletim de ocorrência a constatação: Outrem era um jovem negro, usuário, morador de uma favela do subúrbio do Rio e tinha apenas 16 anos. Tudo por um celular.

Por um celular também o cineasta Cadu Barcelos fora esfaqueado nessa madrugada. Retornando da Pedra do Sal, ele pegou uma carona com uma amiga até uma rua do Centro do Rio. Enquanto tentava uma condução para voltar pra casa, Outrem apareceu e o esfaqueou durante o assalto. Cadu ficou ali, sangrando até a morte pelas mãos de um irmão. Eu não tive a oportunidade de conhecer Cadu pessoalmente, mas a sua morte me toca agora pela sua trajetória. Cadu era casado, tinha um filho de dois anos. Cadu é cria da Maré e foi co-diretor do longa “Cinco vezes favela – agora por nós mesmos”. Cadu também estava resistindo ao sistema enquanto contava pro mundo a nossa história, a história da favela. Cadu falava de si mesmo, de mim e de Outrem. Cadu fora assassinado por Outrem que já não podia mais reconhece-lo como irmão, mas como inimigo. Tudo por um celular.

Talvez hoje eu devesse olhar para a notícia do assassinato de Cadu e achar que eu fiz a coisa certa denunciando Outrem. Será? O sistema não tem interesse algum em recuperar aquele irmão. Pelo contrário, ao capturá-lo o sistema fará de tudo para destruir a vida de Outrem. Seja assassinando-o, seja fazendo dele uma máquina de morte colaboradora do próprio sistema.
Durante a minha vida eu fui privada em níveis similares, mas não iguais, dos mesmos direitos que Outrem fora privado. Um sistema de educação que não ensina, um sistema de saúde que não acolhe, um sistema de segurança que não protege, um sistema de narrativas que silencia. Alguns poucos, como Cadu e eu, encontramos brechas. Ao encontrar essas brechas somos usados pelo sistema para escarnecer ainda mais de Outrem. “Com esforço e trabalho é possível”. Não, não é. Você que me lê sabe que não é. Eu que escrevo sei que o sistema está à procura do primeiro mole para me sucumbir. Mas o sistema é cruel e nem sempre ele suja as próprias mãos. Ele faz desse mesmo Outrem que ele não ensina, não acolhe, não protege e silencia, o algoz de seu próprio irmão. E muitas vezes, na primeira oportunidade, nós colaboramos com o sistema. Nós escolhemos ser o algoz. Ontem, Outrem fora o algoz de Cadu. Semana passada, eu fora o algoz de Outrem. Tudo por um celular.

 

 

 

Natália Balbino

é bacharel em Artes cênicas pela PUC-Rio e mestranda em Artes da cena pela UFRJ. Atriz independente e roteirista pela TV Globo. Pesquisadora de formatos artísticos engajados com a representação negra com atenção às subjetividades de homens e mulheres negras.

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