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Argentina,1985. Ricardo Darin e elenco que constituiu a equipe do promotor Strassera.

“Senhores juízes, nunca mais” por Rosana Zucolo

Ninguém pode permitir que sequestro, tortura e assassinato constituam incidentes políticos ou “eventualidades de combate”. Agora que o povo argentino recuperou o governo e o controle das instituições, assumo a responsabilidade de falar em nome dele que o sadismo não é uma ideologia política, nem uma estratégia bélica, mas uma perversão moral.

Julio Strassera

A referência às palavras Julio Strassera, aqui transcritas, constituem o ápice de um filme  emocionante que captura boa parte dos incautos espectadores brasileiros, de modo a instigar a análise sobre os nossos obscuros processos nacionais e a provocar inveja diante da coragem dos vizinhos latinos, aquela que o Brasil não teve no final da ditadura.

Nestas duas últimas semanas, assisti ao filme Argentina, 1985 (disponível na Amazon Prime Vídeo) por duas vezes. A primeira foi no tenso dia que antecedeu o segundo turno da eleição para presidente; a segunda, nos  sucessivos e inquietantes dias após os resultados das urnas darem vitória a Lula, e quando o movimento de ultradireita ocupou a frente dos quartéis aqui e em muitas cidades país a fora.

O fiz  – e provavelmente o assista novamente – porque o filme, baseado em fatos reais, mostrou ser um norte poderoso e um fomento à memória histórica neste momento em que o mundo e o Brasil se debatem em meio ao esquecimento das atrocidades das ditaduras e de suas consequências.

A alma precisa ser lavada várias vezes e de diferentes formas.

Lançado no Brasil no dia 21 de outubro, às vésperas do segundo turno, o filme assinado pelo cineasta argentino Santiago Mitre é um drama histórico-político narrado a partir do protagonismo do promotor Julio César Strassera(interpretado pelo ator Ricardo Darín) e de sua jovem equipe no processo judicial que julgou e sentenciou a alta cúpula militar responsável pela ditadura argentina (1976-1983) e pelo desaparecimento de 13 mil pessoas, segundo dados oficiais. Movimento dos direitos humanos daquele país apontam 30 mil desaparecidos.

Integrante da Operação Condor, a Argentina passou pelo estado de exceção nos mesmos moldes do Brasil, cujas consequências ainda se fazem sentir. No entanto, a ditadura argentina foi muito mais sanguinária e apontada como uma das mais cruéis da contemporaneidade.

A principal diferença entre ambas talvez esteja no fato de que, enquanto no Brasil uma anistia conciliatória livrou os militares de serem investigados e julgados, na Argentina, logo após a eleição democrática em 1983, o então presidente Raúl Alfonsín, enviou um projeto de lei ao Congresso para revogar a lei de autoanistia estabelecida pelos militares e instaurou a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP).

Numa  Argentina pós-ditadura e ainda marcada pela herança da arbitrariedade, a lentidão do julgamento militar se arrastou pelo ano de 1984, o que levou o governo de Raúl Alfonsin a instaurar um processo civil contra o alto escalão militar que dirigiu o país por quase uma década. O processo se tornou conhecido como Julgamento das Juntas, e foi o primeiro tribunal civil a condenar uma ditadura militar por crimes contra a humanidade, algo considerado inédito desde o julgamento de Nuremberg (1947-1948).

Durante a instauração do processo houve inúmeras tentativas de abafar o julgamento militar e muita interferência da mídia conservadora. Mas à medida que a investigação prosseguia, vieram à público os fatos mais tenebrosos daquele período documentado na publicação do relatório Nunca más”, também conhecido como Relatório Sabato, emitido pela CONADEP.Organizado por uma equipe que teve à frente o escritor Ernesto Sabato, o relatório reúne as denúncias de desaparecimentos, sequestros e torturas acontecidas  no país.

O filme  de Santiago Mitre reconstrói boa parte desse momento numa impecável e imprescindível narrativa acerca do papel da claridade dos processos e do ritual judiciário, sem abrir mão das incertezas e contradições humanas numa “abordagem  adulta e matizada dos traumas políticos nacionais”, como bem situa José Geraldo Couto.

A narrativa fílmica se dá num movimento ascendente entre o tensionamento das vidas pessoais e a transformação social que se impõe  com força própria e à revelia das tentativas de contê-la.

Um dos momentos mais impactantes  e decisivos do filme  é traduzido  pela fala do dramaturgo  e membro da CONADEP, Carlos Somigliana ( representado pelo ator Claudio Dá Passano), parceiro de Strassera no processo. Somiglia afirma: ” É preciso evitar que a classe média exerça o seu papel histórico de sempre ser conivente com ditaduras militares.” 

Se de início nem mesmo Strazzera acreditava ser possível conduzir a ação na qual seus pares não desejavam se envolver, o fôlego foi dado por uma equipe de advogados mais jovens liderados pelo promotor adjunto Luis Moreno Ocampo, à época com 32 anos e representado no filme pelo ator Peter Lanzani. A equipe mapeou e levantou  mais de 4 mil casos de abusos e ilegalidades cometidas durante o governo militar, e arrolou testemunhas dispostas a falar, apesar do medo de represálias.

Libertador, o filme consegue trazer às telas a força daquele momento histórico argentino. O emocionado discurso de acusação de Strassera – no filme e na vida real – arrebatou os juízes e todos os presentes.

Sua frase final se tornou símbolo da retomada democrática na Argentina e um marco na luta pela democracia: ” Senhores juízes…quero utilizar uma frase que não me pertence, porque pertence a todo o povo argentino. Senhores juízes, nunca mais!”  

A Argentina, ainda hoje tão criticada e estigmatizada em suas crises políticas, conseguiu deter o que ainda nos ameaça em solo brasileiro: Ditadura nunca mais!

Embora não se pretenda neste texto analisar o complexo cenário da sociedade brasileira radicalmente polarizada nestes  últimos quatro anos,  cabe refletir a partir do filme de Mitre a necessidade de que a história seja mantida como uma memória viva, sob pena de termos, de tempos em tempos, a institucionalização da arbitrariedade.  Penso ser essa a função deste filme e o papel social do cinema e do audiovisual.

Democracia é uma construção recente na história da América Latina. E a exemplo do país vizinho, é necessário sim revisitar o passado – também o passado recente -, investigar a fundo as ações que tantos danos causaram  a uma grande parcela da população, responsabilizar a quem de direito para que nunca mais torne a acontecer.

ROSANA ZUCOLO

Jornalista, professora universitária aposentada, mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa. Se diz  ” parideira de jornalistas” e renasce com eles todos os anos. Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois gatos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs,  duas casas, dois irmãos, dois cachorros, duas cachorras…

 

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