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Santa Maria entre a memória e os afetos por Rosana Zucolo

Santa Maria completa hoje, 17 de maio de 2021, 163 anos. Um pouco mais de um século e meio de história constituído por registros diversos, reveladores de vidas e construções que se diluem no tempo, na memória de uns e outros, não necessariamente na mesma direção ou versão. E talvez seja melhor dizer do tempo de Santa Maria como o das memórias afetivas que traçam um perfil de cidade a partir de cada pessoa e para ela.

Lembro de, criança, vir a Santa Maria visitar meus avós maternos, tias, tios e primas e primos. A viagem era feita de trem desde Rosário, passando por uma movimentada estação em Cacequi antes de chegar à gare, em Santa Maria. Para quem não deveria ter mais do que 6 ou 7 anos, chegar ao centro ferroviário do RS era se deparar com o progresso, a metrópole, outro mundo. Ainda lembro do fascínio que o enorme relógio, pendurado sobre a porta da plataforma da estação férrea, causava aos olhos da menina agarrada à mão do avô com medo de ser perdida na multidão que circulava a cada chegada e partidas.

Anos mais tarde, com o fim dos trens de passageiros, restava percorrer as estradas de chão em ônibus que carregavam muitos passageiros, sentados e em pé, por cerca de 4 horas. Ou ainda, vir de carro, “comendo” pó e enjoada com os cheiros de óleo dos motores. Mas ao chegar, percorrer a Borges de Medeiros e entrar na rua Dr. Bozzano ( o sentido era, então, inverso do atual) a primeira imagem que se via era o edifício Taperinha e um moderníssimo recurso publicitário no alto do prédio: uma enorme garrafa de Cyrillinha, em neón, enchia uma taça num movimento ininterrupto. Era outro e sedutor universo.

Meus avós moravam na Avenida Rio Branco, no apartamento do seu Brilman e acima da loja que ele mantinha no térreo,  ao lado do Hotel Tupy que recebia muitos viajantes. Sempre vou lembrar da Rio Branco e suas inúmeras revistarias com os expositores nas calçadas. Cada uma ofertava uma variedade de revistas às quais só se tinha acesso pela chave do dono. O mesmo para os bilhetes de loterias, as carteiras de cigarros Minister e Hollywood e as inevitáveis guloseimas para os pequenos.

Dias de feira livre eram também dias de festa. Elas ocupavam várias quadras transversais à avenida, reunindo gentes diversas e ofertas variadas. Meu avô sempre percorria a feira com os netos, buscando a encomenda da avó e da tia. Nunca faltavam as ervas medicinais, nem as longas conversas com os feirantes. Talvez venha daí o meu gosto por feiras ao ar livre.

À noite, as luzes da avenida iluminavam os bancos dos canteiros centrais onde os vizinhos e a gurizada se reuniam para conversar e brincar, cuidando o fluxo dos carros, uma vez que era a via mais disputada pelos passeadores. Vimos o início da construção do prédio nunca terminado e hoje à espera de uma decisão do poder público sobre o seu destino, e o deslocamento do centro da cidade para outras áreas, deixando a Avenida Rio Branco entregue ao seu passado.

Depois vieram as rápidas passagens pelos cursinhos numa época em que era possível  matricular-se em disciplinas isoladas. E todos corriam ao Master para as aulas de matemática do Ivo, ao Agostinho para as de química com a Ana Jamille, e o Riachuelo, instalado na esquina da Rio Branco com a Vale Machado, recém iniciava sua jornada. Vestibular, faculdade, as turmas, a militância estudantil, a Resistência e a luta pelo fim da ditadura, debates, a criação  Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria, a Cesma.  As ruas, o café Cristal, a sorveteria São João, a confeitaria Copacabana, os cines Glória e o Independência, o RU, a boate do DCE, a organização da primeira feira do Livro na praça Saldanha Marinho desenhavam o circuito dos universitários.

E veio a greve pela autonomia da universidade e o plano de carreira dos professores. Durou três meses e teve corte de salários, também o apoio da cooperativa que ficava nos fundos da antiga reitoria e do sobrado que abrigou a primeira sede da Cesma, do comércio local que rolou as parcelas do crediário dos professores até que a greve terminasse com a queda da última Ministra da Educação do período da ditadura, Esther de Figueiredo Ferraz, e a única mulher a ocupar a pasta até hoje.

Em meio a isso, veio a família e os dois filhos, o mestrado na UFSM, o trabalho simultâneo de assessoria ao Sindicato dos Bancários e ao Sindicato dos Professores Municipais, ao Movimento pela Constituinte junto ao Sindicato dos Metalúrgicos e aos Movimento de Defesa dos Direitos Humanos.  Nasceu também aí o movimento cineclubista precursor da TV OVO que está completando 25 anos também nesse mês de maio. Depois o trabalho na UFSM e na UFN, então Unifra, e ciclos de idas e vindas.

Um amigo diz que Santa Maria sempre traz de volta, de algum modo, quem passa por ela. Narrativas históricas e pessoais não cabem num artigo, mas Santa Maria é assim, um espaço de memórias e de afetos que a gente carrega vida a fora, aonde quer que esteja.

 

 

 

 

 

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