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PRETO, INTELIGENTE E POBRE: ELE ERA ASSIM por ROGER BAIGORRA MACHADO

Na cadeira da sala de aula tinha um pedaço faltando. E naquela época era comum sempre faltar algo. Faltava comida, faltava saneamento, faltava segurança, faltava e faltava. E na cadeira onde faltava, o que não tinha era uma parte do encosto.

O encosto estava quebrado desde o início do ano letivo, mesmo assim, ele se sentava. Um pedaço das costas ficava no metal da base da cadeira e o outro pedaço no encosto. Desconfortável, era o que tinha. E ele se movia de tempos em tempos, como que se tentando migrar o incômodo de uma paleta à outra. Ele era o único negro da minha turma.

Era um cara legal, divertido, tinha uma adoração por livros, sempre de bem com a vida, mas que, por vezes, tinha momentos melancólicos. Nesses dias de melancolia, ele sentava sozinho no recreio, com a cabeça caída para o lado. No centro da escola tinha uma área aberta, padrão das escolas estaduais feitas lá pelos anos 70, uns bancos nas laterais e um espaço aberto, servia para matarmos aula ou jogar bola. Era lá que ele ficava, sentado num banco, bem no canto. Um tempo depois eu descobri que os motivos que faziam ele se sentar lá, era por que o pai bebia e batia na mãe, e ele, um menino, via tudo. No outro dia, a mãe em casa, machucada, ele na escola, machucando as costas numa cadeira quebrada. Nesses dias de melancolia nem futebol queria jogar. Nós éramos bons amigos desde o ensino fundamental. Sempre que lembro dele, a imagem de um guri magro, negro, sentado e lendo é o que mais me volta aos olhos a memória.

E naquele dia a aula se arrastava. No alto da sala de aula havia um ventilador girando, sempre sem pressa, era o tempo se decompondo num rangido intermitente, junto ao som de alguma mesa sendo arrastada para o centro da sala. Na nossa sala de aula só tinha um ventilador funcionando. A turma toda sentava no centro da sala, tipo os animais daqueles documentários sobre a África, todos ao redor de uma poça d’água, tentando beber e esperando a mordida do crocodilo. Dividir o pouco do vento quente que descia era um socialismo utópico.

Minha mesa ficava num canto daquela estranha romaria pelo vento, por vezes, eu recebia uma dose generosa dele, misturado com o ar que vinha da janela e o cheiro de escapamento de um caminhão que estava parado na rua ao lado. O caminhão estava uns trinta metros de distância, mas o escapamento parecia dentro da sala.

E o meu colega se movia, incômodo, jogando o corpo para frente, para longe do encosto da cadeira. Na classe dele, uma mesa velha cheia de marcas de corretor de texto e de frases de amor, não tinha muita coisa. Sobre a mesa havia um único caderno, uma Bic sem tampa e um lápis já pela metade.

A professora se esforçava para ser agradável, com ar de cansada, ela explicava uns tipos de organização social que se desenvolveram no século XX, dois períodos inteiros comparando o Capitalismo e o Comunismo. Entre uma frase e outra, ela escrevia com giz branco no quadro, pausava, escrevia de novo, acho que em cada pausa ela pensava que ninguém estava entendendo nada do que ela falava. E até que era verdade.

Ao todo, éramos uns vinte. Todos curiosos estudantes de um colégio pobre, crescidos em bairros pobres de uma cidade do interior que achava que era rica e que, curiosamente, tinha a maioria da população pobre. Uruguaiana nos anos 90 era assim, pobres que pensavam como ricos, mas que trabalhavam e até passavam fome como pobres.

Sempre que penso naquele dia, eu imagino uma imagem do Google Earth que parte da imensidão do espaço, ela foca o planeta Terra ao longe e vai se aproximando. Ela passa pela lua e entra na atmosfera da Terra e vai se aproximando, os continentes, os países, uns mais verdes, outros amarelados, o mapa gira, passa pelas luzes da Europa, a seca da África e passa pela América do Sul. A imagem volta e vai se aproximando, passa rápido por sobre o Chile, pela Argentina, foca num canto do mapa do Brasil, dois cliques na extremidade Oeste do Rio Grande do Sul e vai se aproximando. Um aglomerado de pontos brancos na margem de um rio, a imagem vai ficando nítida. A cidade aparece. No centro, asfalto, nas vilas, a terra. Um prédio grande rodeado de casas e ruas pintadas de pó. Lá estávamos nós. Em Uruguaiana em 1996, sentados em cadeiras velhas, cheios de ansiedade pelo futuro. E no nosso caso, o futuro mais próximo era o recreio que começava às 10h30min.

Foi naquela sala, naquele ano, que entendi pela primeira vez o conceito de ideologia e que mais tarde, numa madrugada, eu explicaria para um taxista que achava que eu era do MST. A professora secava pequenas gotas de suor da testa com uma toalha azul. Mesmo num calor de novembro, ela usava um vestido e uma jaqueta jeans, entreaberta, deixando a camiseta com uma imagem de Nossa Senhora aparecer.

A professora devia ter uns cinquenta e poucos anos, tinha o cabelo bem penteado, usava óculos e morava no centro da cidade. Dois anos antes, ela havia sido minha professora de Religião. Lembro como ela, nas aulas de religião, vibrava com a ideia de um paraíso e esforçava-se para demonstrar que o Catolicismo era a única religião correta no mundo. No fim, só conseguiu reforçar a religião dos evangélicos da sala e despertar o ateu que dormia em algum lugar do meu cérebro.

Outra secada na testa, uma encarada na turma, e agora a querida professora estava ali, frente a frente comigo de novo, esforçando-se para demonstrar que o Capitalismo era o céu na terra, o único modelo possível para a vida humana. E é claro, tentando também demonstrar que todas as experiências socialistas eram loucuras vãs, frutos da sede de poder de um pequeno grupo e que estariam sempre fadadas ao fracasso.

Ela afirmava que a propriedade privada era base da sociedade, qualquer afronta a este corolário seria um absurdo. Eu me lembro dela falando, com ar de discurso profético, era bonito de ver. Ela era uma boa professora. Não faltava. Sempre no horário. Cobrava os deveres de casa e demonstrava interesse em nos fazer aprender. Ela afirmava que o sol nascia para todos e que só com trabalho e fé poderíamos “ser alguém” e “dar certo na vida”. Na minha frente, a cadeira quebrada e o meu colega, ambos num balé lombar, ele acomodou novamente o corpo, conseguindo a maior parte das costas na metade boa do encosto.

De repente, ele levanta o braço, com o pequeno lápis em riste, e assim fica esperando. A professora olha com certo espanto, afinal, ela achava que todos nós estávamos em algum estágio avançado de coma. Então, com o braço levantado, meu colega fala.

– Professora, tudo bem que o “sol nasce para todos”, mas e a sombra?

A professora, surpresa, com a cabeça e a testa franzida pede para ele continuar no seu raciocínio.

– A sombra não é para todo mundo, o sol até pode ser, mas a sombra é para bem poucos, né?

Parada, nossa professora olha para o ventilador girando e fica alguns segundos em silêncio, então diz: – A sombra é para quem se esforça, ora! Olha tu, desde o início da aula nessa cadeira quebrada. Por que não levantou e foi pegar outra na sala ao lado? Se quer ficar melhor acomodado, tem que se esforçar.
– Mas eu fui! Só que não tinha mais cadeiras, então eu peguei essa que estava no corredor. Respondeu ele, depois continuou: – Quer dizer que a sombra, no caso, é essa minha cadeira aqui, ela independe do meu esforço. Eu posso me esforçar, mas se não tem uma cadeira boa para sentar, o que vou fazer? Sentar no chão? Não adianta a gente se esforçar se não tem uma cadeira boa para sentar.

Do jeito dele, ele falava sobre meritocracia, mas só fui entender isso depois de adulto. Toca o sinal do recreio. Todos saem, eu fico sentado. Na minha frente o meu colega se vira e me olha, como que me perguntando se eu concordava com ele. Eu dou um sorriso e digo:

– Professora, eu acho que esse lance da sombra e cadeira é como tu querer plantar e não poder. Tipo, tu sabe plantar, tu quer plantar, mas não pode. Não pode porque as terras já tem dono, ou seja, a terra é a sombra. E a sombra já tem dono.

– Não! A cadeira é a sombra. Retruca meu colega. E eu me calei, percebi que o debate sobre sombras, sol e cadeiras era uma luta dele, pessoal.

A professora segue parada em frente ao quadro negro. Ela me olha, suspira e fala.

– Aí não, né guris! Daqui a pouco vocês vão querer defender os sem terra, dizendo que eles têm o direito de invadir as propriedades rurais de pessoas que trabalharam para adquirir.

– “Invadir” não, ocupar, professora. Corrige meu colega, e ele prossegue: – Eu não invado uma cadeira que está sem uso, eu ocupo e me sento. Os sem terra ocupam as “sombras” que estão sem uso. Curiosamente, também só fui entender isso quando adulto, lá na universidade: ocupar e invadir são parte da mesma moeda, traços da mesma pobreza, mas não são a mesma coisa.

A professora, já perdendo o habitual ar calmo de todo dia, diz com a voz em tom um pouco mais alto e com a cara séria:

– Os sem terra não são agricultores, são bandidos que matam, estupram e usam drogas! E vendo que se exaltou um pouco, olha para o meu colega, breves instantes em silêncio. Eu no meio feito um juiz do UFC. Ela em silêncio, como que pensando sobre tudo aquilo, nós, as ruas de terra, a pobreza da vila, o ventilador com ar quente. Eu tenho a impressão que o mapa do Google Earthe dela foi ao contrário, foi se afastando, subindo e subindo, deixando tudo em perspectiva.

– Mas… tu foi muito inteligente na tua comparação. A verdade é que a sombra é isso mesmo, um lugar que deve ser para todos, mas que nem todos conseguem ter para si.

E assim acaba o debate, ela vai atender alguém na porta e nós saímos para o que restava de recreio. Meu colega se joga na cadeira quebrada e nem sente o encosto. Ele sorri. Guarda o caderno numa pasta preta e me convida para matar a aula. Saímos até o Rispoli, um supermercado que tinha bem pertinho, compramos um pacote de bolachinha recheada, metade para cada. Ele voltou, eu fui para a casa da minha vó, tomar mate e ver ela cozinhar.

Hoje, quando penso no conceito de ideologia, como versão falseada da realidade, eu sempre me lembro dessa aula. Curiosamente, alguns dos meus melhores professores foram os que tinham opinião totalmente diferente da minha. Os que eram de direita, os conservadores, os religiosos. Sempre gostei da oposição. Eles eram os que me instigavam ao debate. Com aquela professora tão esforçada, aprendi sobre o conceito de ideologia de um jeito direto, como o eco do discurso de classes dominantes que nunca entraram numa escola pública. Aprendi que a inteligência não tem cor e não tem classe social. Compreendi que no mundo a inteligência só não basta e que nem todo o esforço que se faça é da força o suficiente. Que meritocracia não faz sentido na pobreza, ainda que a maioria dos pobres tenha sido doutrinada que ela é o correto. E que não há mérito nenhum em ganhar uma sombra, quando por isso se acaba deixando outros no sol.

E sobre o meu colega, naquele dia ele acabou voltando para a escola, veio a aula de geografia e ele ficou lá, na cadeira quebrada até o meio dia. Depois, nunca mais vimos a cadeira. Não sei se foi a professora, só sabíamos que ela sumiu da sala. Deve de ter ficado numa pilha de outras cadeiras quebradas que tinha atrás de um dos prédios, todas no sol. E no fim do ensino médio, meu colega não se formou com a turma.

No mesmo ano, quando voltava para casa, depois de uma partida de basquete na quadra da escola, ele morreu, baleado com um tiro nas costas, numa rua de terra, ali perto da Árvore dos Enforcados, umas três quadras da nossa sala de aula. Disseram que ele ficou lá, caído, numa sombra do canto da rua, por seis horas, sozinho, preto, inteligente e pobre.

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.

 

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