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“PRA ENCHER A BOCA DOS FILHOS E A VIDA VAZIA” POR ROGER BAIGORRA MACHADO

Eu cresci em Uruguaiana, e acho que como todo mundo da Fronteira Oeste, vivi cercado por campos verdes, vacas, ovelhas e muitas (mas muitas mesmo), lavouras de arroz.Tive uma infância relativamente feliz.

Na minha rua todas as casas eram de madeira, umas casas com mais frestas, outras com menos. O esgoto era a céu aberto e o futebol de pé no chão. Nos dias de chuva a rua virava rio e o barro era coisa normal. As minhas férias de verão quase sempre eram no campo. Do final dos 80 até meados dos 90, essa era a tradição. Ficava dias no interior, a uns 45 quilômetros da cidade, na Vila das Chácaras. Era a casa dos meus tios, Adulte e Odelí, uma pequena propriedade rural de uns 15 hectares, um lugar onde tinha quase de tudo. Do campo, meus tios retiravam o necessário para manter sua família, pequenos agricultores na sina da subsistência da terra, do plantio, dos pomares, da caça, da pesca e das pequenas criações. Eu, criança, corria desviando das rosetas, brincava com osso e tampa de lata, comia pão com mel, colhia melancia, banho no açude até o fim da tarde, nos fins de semana o churrasco de ovelha recém carneada. Estar no campo, em meio as coisas do campo, era um dos melhores momentos do ano. Eu cresci acreditando que enquanto estas coisas “iam bem” no campo, a cidade onde eu morava iria bem também.

É que eu cresci ouvindo que se “o campo vai bem, a cidade vai bem!”. Eu torcia pelo bem do campo, afinal, meus tios e primos moravam nele. Meus avôs eram do campo, um agricultor, outro peão tropeiro. Tinha outros tios que trabalhavam em cabanhas e lavouras de arroz, eram capatazes de estância ou gerentes de granjas. E eu crescendo no Pampa, ouvia radialistas, jornalistas, políticos, produtores rurais, todos, uníssonos no mesmo mantra: – Se o campo vai bem, a cidade vai bem! Por sinal, hoje, adulto, ainda ouço essa máxima.

E durante todos os anos 90 a vida foi se arrastando nessa tese. Mas tinha vezes em que eu ficava confuso. A voz do radialista dizia o mantra: “se o campo vai bem, cidade vai bem”, mas a canção que ele tocava na sequência dizia outra coisa. E eu ouvi muitas vezes essa contradição. Lembro de Os Posteiros, cantando na Rádio São Miguel, especialmente, a canção “Descaminho”, música de Califórnia da Canção Nativa e com letra de Marco Aurélio Vasconcelos. Cantavam um campo que não estava indo bem e uma cidade tampouco melhor.

“Sorte melhor ao campeiro, que se consome na lida. Seguir o rastro dos outros que ergueram rancho na vila, (…) Lá se vai o plantador, vender as terras que tinha. Buscar trabalho no povo, operário de oficina. Vender a força e saúde, soltar as filhas na vida. A carreta vai envergada, os ombros vão mais ainda. Logo, logo estão changueando por um prato de comida. Lavando roupas pra fora, pegando frete e capina. Pra encher a boca dos filhos e encher a vida vazia”. 

Versos que desfaziam a máxima que cresci ouvindo. A ideia de que a economia baseada nas atividades agropecuárias era o que de melhor poderia acontecer para a cidade. Com canções como esta de Os Posteiros, com o tempo e um pouco estudo tudo foi ganhando outro sentido.

No Jornal do Almoço do dia 23/06/2021, uma matéria sobre a super safra de Trigo no Estado me fez voltar aos anos da minha infância e adolescência. “Todos devemos vibrar!”, dizia a Cristina Ranzolin. Noutras palavras, era o mantra de novo: “se o campo vai bem, a cidade vai bem”. Mas não é bem assim, a cidade e o campo não estão no mesmo lado da moeda. Basta uma olhada rápida nos números da economia de Uruguaiana ao longo dos anos para comprovar isso. Ao longo da série histórica do IBGE, nossa cidade sempre ocupou as primeiras posições quando o assunto é atividade agropecuária. É o campo indo bem! E a cidade?

Uruguaiana é a 14° maior cidade do Rio Grande do Sul, com uma população estimada em 126 mil habitantes. Em 2017, foi a 4° maior economia do RS em PIB oriundo de atividades agropecuárias, ficando na frente de Caxias do Sul, Santa Maria, Rio Grande e todos os outros 493 municípios. Agora, quando o assunto é PIB, a riqueza total da cidade, Uruguaiana cai muitas posições, oscilando entre 25° e 31° lugar. Mas a pior parte ainda está por vir. Agora é que a coisa fica triste.

Quando olhamos para o PIB per capta da cidade, seja, quando dividimos a riqueza do município, seja de origem agropecuária, serviços ou industrial, pelo número de habitantes, Uruguaiana cai para 414°, essa foi sua colocação em 2018. Nesse mesmo ano, a economia baseada em atividades agropecuárias colocava a cidade na 10° colocação no PIB de atividades agropastoris. O PIB per capta em Uruguaiana em 2018 foi de R$21.808,00 por habitante, no Rio Grande do Sul estava em média R$40.000,00 e na capital, Porto Alegre, era de R$51.149,00. Parece bastante óbvio. Mas nem sempre o óbvio é claro. 

Assim, vou explicar. Em 2017, o PIB de atividades agropecuárias de Uruguaiana era o 4° maior do Estado, ao mesmo tempo em que a cidade tinha um PIB per capta que a colocava na 392° colocação, seja, uma das cidades mais pobres do RS, com uma elite econômica riquíssima no campo. Muita riqueza concentrada e pouca distribuição da mesma. Logo, quando o campo vai bem, a cidade de Uruguaiana, na maioria das vezes, foi mal. 

E ainda, há que se lembrar que quando o “campo vai bem”, nem todo o “campo” experimenta isso de maneira igual. Voltemos aos Posteiros e a canção sobre o êxodo rural. Os grandes produtores experimentam a lucratividade das safras de forma diferente daquela do pequeno produtor, cujas lavouras de subsistência sofrem com os venenos despejados pelos aviões.

Numa cidade onde os donos das grandes lavouras rodam ao redor das praças, desfilando carros novos todo ano, os pequenos produtores conseguem vir na cidade uma vez por mês e lutam para comprar remédios, comida e torcem para vender uns cordeiros no final do ano. Não raro são os pequenos agricultores que precisam abandonar suas propriedades para trabalhar nas grandes lavouras. A letra da canção ganha vida diante dos nossos olhos, diante da dificuldade da vida campesina, muitos pequenos produtores acabarão até mesmo vendendo suas terras para poder sobreviver, buscando “trabalho no povo”, como operários de oficinas. Vendendo a força e a saúde, em descrença, soltando as filhas e os filhos na vida.  

Mas e os impostos? Eu sei que você está pensando nisso: Os impostos gerados pelo agronegócio são importantes! No mesmo ano em que a produção agropecuária foi a 4° maior do Estado, Uruguaiana ocupava a 41° posição em arrecadação de impostos sobre produtos. Ou seja, mesmo sendo o carro chefe da economia da cidade, o agronegócio pouco deixa em impostos para a cidade. Mas e os impostos federais frutos da exportação? Caso você também tenha pensado nisso, aqui a coisa ainda fica pior. 

Mesmo que boa parte da produção de grãos seja voltada para a exportação, o que fica para o Estado brasileiro é ultrajante. Em 2019, as exportações, todas as vendas de produtos do agronegócio para outros países, deixaram para os cofres públicos o valor de dezesseis mil reais. Isso mesmo, não escrevi errado e nem devorei sete ou oito dígitos. Vou colocar em números: R$16.000,00. Quase um Uno Mille. Dezesseis mil reais é o que ficou para o país.

Para cada R$323.000,00 que os empresários do agronegócio lucraram em 2019, o Brasil ficou apenas com 1 centavo de imposto. Não bastasse isso, o setor ainda faz lobby constante em todos os escalões dos governos, usando de empresas e partidos políticos, com apoio financeiro em eleições em todos os níveis, do executivo ao legislativo. O fruto disso? Isenções, liberação de agrotóxicos, empréstimos com juros irrisórios, financiamentos de todo tipo, desde carros, imóveis, até aviões e maquinário agrícola de última geração. O modelo econômico baseado no agronegócio tem como característica a concentração de renda e a ampliação da pobreza. O que resta é lavar roupas para fora, fazer frete e capina.  Sorte melhor ao campeiro, pois quando o campo vai bem, ele empobrece e a cidade vai mal.

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.

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