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FOTO: DIVULGAÇÃO COLETIVO DE PSICANÁLISE DE SANTA MARIA

Onde estávamos no dia 27 de janeiro de 2013? | por GRAZIELA MIOLLO

Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013?

Essa questão tem sido marcada pelo Eixo Kiss, do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, em potentes intervenções ao longo do tempo.

E essa palavra tempo parece fazer enredo para essa questao proposta pelo Coletivo. Porque para responde-la faz-se necessário “voltar no tempo”. O que em certa medida não é desafio! Facilmente os cidadãos e as cidadãs desse Estado relembram os momentos em que se depararam com aquelas cenas, seja pelas mídias, ou ao vivo. É um marca. Uma marcação no tempo. Um trauma. Uma quebra. Uma ruptura. Uma tragédia!

A marca, marca de tal forma que produz uma marcação de tempo, espaço, sensações e sentimentos. Ela nos convoca a paralisação. É como se o corpo se entorpecesse e não permitisse que algo avançasse. E como avançar frente a atrocidade da morte? A morte paralisa. Não há recursos reais que alcancem a ideia de vivenciar a morte de 242 jovens, e da consequente vulnerabilidade da vida dos que sobreviveram. Pensar sobre essa questão proposta pelo Eixo Kiss do Coletivo, é sustentar a ideia do que esse trauma nos produziu em corpo, olhar, cheiro e sentimento. Uma localização geográfica que teima em sustentar a busca por uma borda. Algo que limite a dor que transborda.

Mas me atrevo a buscar uma rede um pouco mais extensa para essa questão. Porque sabemos onde estávamos naquele dia nutrido de terror. Mas e onde estamos hoje, frente aquele terror?

É claro que não esquecer. Relembrar. Lembrar. Falar. Sustentar. Reeditar. Dar nome. Dar palavra. Dar abraço. Tentar buscar sentidos… tudo isso, eu poderia do alto da arrogância psicanalítica, dizer que é uma forma de buscar cuidar do que se passou. E me refiro a arrogância aqui, como um lugar de poder, que por vezes é tomado como ferramenta de trabalho por muitos e muitas de nós, em nome de uma apropriação de saber, em detrimento do sentir.

Mas…O que se sabe da perda de um filho ou uma filha? O que se sabe da perda de dois filhos e filhas? Ou que se sabe sobre sobreviver a fumaça? Ao desespero? O que se sabe sobre se garantir vivo, vendo escapar por entre as mãos a mão de um amigo ou amiga? Ou, o que se sabe sobre um celular que não é atendido, porque está perdido pelo chão de uma boate em chamas?

Não se sabe nada. Ou quase nada. Podemos questionar: Como não sabemos? Sabemos sim… e os fatos? Sim! Sabemos de fatos. De retratos. De traduções. Ou de tentativas de…! Mas sabemos onde estamos? Onde estamos hoje?

Parafraseando Daniela Arbex, sim, é uma noite que nunca teve fim. Ela acabou. Mas não teve fim. Onde estamos hoje? Onde estamos hoje no incendio da Kiss? Onde estamos hoje como cidadãos e cidadãs naquele incendio? O que afinal de contas estamos fazendo com aquelas cinzas? Com aqueles escombros? Com os escombros de uma cidade, ou de muitas vidas?!?

Tentando saber onde estávamos naquele dia? Reconstruindo na memória a ilusão de que se tivéssemos feito diferente tudo seria muito diferente. Sem garantias,retomamos aquele dia. Repassamos enquanto cidadãos e cidadãs afetados (as)que somos, revivendo as cenas, na tentativa de… de que mesmo???

Não esquecer? Resignificar?

Onde estamos hoje em relação a tragedia da Boate Kiss? Continuamos no mesmo ponto. No mesmo lugar. Na mesma marcação de desespero que aquele intercurso de tempo nos garantiu.

Em Psicanálise, a ideia de buscar recontar e reviver, é o que pode dar algum sentido para uma possível restauração de novos sentidos. Dia 27 de janeiro de 2013, está sendo repetido com eco, mas sem contorno. Mesmo aqueles que tomam por assalto a ideia de que esquecer é o melhor caminho fazem eco. Se é preciso esquecer, é porque tem algo pra ser esquecido, que é insuportável de ser lembrado.

Desmentir a lembrança é a pior forma que podemos encontrar enquanto cultura de sustentar o cuidado com o trauma. Como encontrar outra forma? Onde estamos hoje? No mesmo lugar. Com as mesmas significações. Os mesmo medos. E ainda mais desespero. O desespero de quem refaz as cenas na memória, e não encontra enquadre para produzir uma colagem na ruptura.

Indicar esse desespero paralisador que acompanha a cultura dessa cidade, pode passar pela ideia de que quando o luto se faz, nesse estrondoso trauma de que somos tomados, não choramos somente por quem se foi. Pela falta da presença física. Do cheiro. Dos sonhos que foram embora. Do convívio. Choramos por quem deixamos de ser com aquelas pessoas que partiram. Partiram de nós e em nós!

E nós estamos onde hoje? Estamos aqui nesse lugar ainda, esperando dar contorno e sentido. Esperando que a palavra justiça e judiciário possam sustentar pontes e produzir dialogos. Que aquilo que as instituições não sustentaram como proteção e garantias possam hoje encontrar restauração. Que seja restaurada a ideia de que podemos contar com a proteção e amparo daquilo que sustenta nosso laço social: as nossas instituições, e o simbolismo que delas ees públicas. Palavras e acenos. Acolhimento. Narrativas transgeracionais. Contar e recontar. Contar denovo. Contar para a geração de filhos, sem esquecer jamais da geração de pais. E daqueles que podiam ser. Todas as proposições que nos cabem enquanto cultura, devem ser olhadas com atenção e cuidado, para que possamos restituir a esperança de caminharmos. De seguirmos.

Não me refiro aqui a seguir adiante sem olhar para trás. Sequer me atreveria a supor que em algum momento isso é possível,e mais, que seria plausível e saudável. Mas sim, a seguir caminhando de mãos dadas com a experiência traumática. Um trauma não se apaga. Ele pode se transformar, mas nunca se apaga. Mas não existe transformação sem trabalho e colaboração, na partilha da legitimação de uma dor.

Se nos questionamos onde estávamos naquela noite, que nunca terminou, também precisamos nos questionar onde estamos, e para onde vamos, enquanto cultura… enquanto sociedade.

O caminhar vem do sentido. O sentido só existe por onde passamos. E só passamos por onde podemos construir laços.

A única certeza que podemos ter, é que mesmo que os esforços de esquecimentos sejam intensos, NADA, será como antes. Onde estamos hoje, é o que pode nos garantir, lidar, acolher, cuidar e buscar dar resignificação para a fumaça preta que teima a sair do centro da cidade de Santa Maria, seja no calor incessante, seja no frio congelante, característicos do coração do Rio Grande, que pulsa mais lento e desritimado, desde o dia 27 de janeiro de 2013.

Onde estamos, senão lá ainda?!?

O Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, Eixo Kiss, convida:

INTERVENÇÕES EIXO KISS – COLETIVO DE PSICANÁLISE DE SANTA MARIA:

*25/01 – 19h: Colagem de frases*

Colagem no chão de 500 frases, perguntas e fotografias de abraços e mãos dadas feitas por Dartanhan Baldez Figueiredo que percorrerá o caminho da Praça Saldanha Marinho até a Kiss.

_Observação:_esse caminho será percorrido no dia 26/01 após a apresentação do documentário da Globo Play no Theatro Treze de Maio, onde acontecerá a vigília e homenagens em frente à boate.

*26/01 – 21h: Recortes e colagens*

Luiza Roos, psicóloga, colagista e componente do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, estará no saguão do Theatro Treze de Maio recortando e dando suporte para pessoas não quiserem assistir o documentário da Globo Play e sentirem-se convidados a criar suas próprias colagens. Serão oferecidos materiais (imagens, folhas, cola, tesoura) para os participantes.

*26/01 – 22h: Exposição _“Abraços_*

Exposição de fotografias feitas pelo fotógrafo amador Dartanhan Baldez Figueiredo no Theatro Treze de Maio. A proposta dessa intervenção é receber e acolher as pessoas que estiverem saindo da exibição do documentário da Globo Play com música e fotografias de abraços feitas pelo fotógrafo. Essas fotografias foram registrada em ações promovidas pela AVTSM e outras instituições ao longo desses 10 anos para falar sobre a Kiss.

Juntamente estará a Exposição _“10 anos de histórias em imagens”_ com fotografias de momentos marcantes nessa primeira década feitas pelo mesmo fotógrafo.

*26/01 – 23h: Mãos dadas*

Intervenção em frente à Kiss após apresentação de uma coreografia prevista na programação. Serão realizadas colagens na fachada da Kiss de fotografias de mãos dadas também realizadas por Dartanhan Baldez Figueiredo. A intervenção acontecerá ao som do poema _“Mãos Dadas”_, do escritor Carlos Drummond de Andrade.

⁉️Confeccionamos marca-páginas que estarão nas cadeiras do Theatro e também nas cadeiras da Praça Saldanha Marinho. Esse marca página tem o slogan/frase _“Resgatar a memória é construir o futuro”_ e a marca do evento dos 10 anos.

Graziela Miolo é Psicóloga e Psicanalista. Especialista em Clínica Psicanalítica, Mestre em Psicologia Clínica. Experiência na docência superior por 14 anos, entre cursos de graduação e pós graduação. Amante de leitura e de música. Sou inquieta com tudo que mobiliza e toca o ser humano e suas complexas formas de expressão. Me considero alguém atenta à vida. Mulher e mãe.

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